08 Março 2017
Na noite de 17 de novembro de 1978, Bob Dylan está se apresentando em San Diego. Alguém da platéia joga no palco uma pequena cruz de prata. O cantor se inclina, recolhe-a e guarda-a. Na noite seguinte, no seu quarto em um hotel de Tucson, Arizona, Dylan remexe no bolso. Encontra a cruz; coloca-o no pescoço. E encontra Jesus. Seguem-se a trilogia gospel, a pregação do Evangelho durante os shows, o anúncio do Apocalipse em um mundo cada vez mais analfabeto de Deus: "Sabemos que o mundo será destruído. Temos certeza. Jesus vai instaurar o seu reino em Jerusalém por mil anos, e ali o leão e o cordeiro se deitarão juntos. Alguma vez vocês já ouviram coisa igual? Pergunto-me quantas pessoas realmente acreditam nisso".
A reportagem é de Marco Ventura, publicada no caderno La Lettura, do jornal Corriere della Sera, 05-03-201. A tradução é de Luisa Rabolini.
A conversão do futuro ganhador do Prêmio Nobel, pouco menos de quarenta anos atrás, está no centro da psicobiografia de Dylan publicada pela Oxford University Press nos Estados Unidos no início desse ano e que deve estar nas livrarias este mês no Reino Unido e no mercado europeu: Light Come Shining. The transformations of Bob Dylan (Luz que chega brilhando. As transformações de Bob Dylan). Para o autor, o psicólogo e escritor estadunidense, Andrew McCarron, a conversão ao cristianismo segue um roteiro fundamental na vida do artista, já vivido durante a crise de 1966, a que coincidiu com o misterioso acidente de motocicleta, e que uma década depois de seu renascimento como um cristão seria repetido naquele bar de San Rafael, na Califórnia, onde, em 1987, Dylan experimentou uma nova transfiguração que motivou sua volta à produção musical.
Andrew McCarron descreve os estágios desse roteiro. Uma crise existencial, física e criativa que afunda o cantor na sensação de perigo iminente, na perda da identidade e no medo da morte; sua forte ligação com a música durante a adolescência, com os sons e as palavras que formaram o jovem Robert Zimmerman (o verdadeiro nome de Bob Dylan), para o destino que sempre o impeliu em direção a mais autêntica auto-realização; e por fim o renascimento e a transformação de um homem que volta a encontrar uma direção.
A estrutura do roteiro é reiterada nas três grandes crises e se expressa nas músicas que McCarron identifica como representativas de cada um dos grandes momentos de passagem, cujo significado particular é documentado pela atenção especial reservada para elas pelo próprio Bob Dylan. I Shall Be Released de 1967, In the Graden, de 1979 e WhereTeardrops Fall de 1989 testemunham a desorientação, a queda, o medo, e depois o reerguimento, o retorno à consciência de seu próprio destino e o renascimento subsequente.
Se o tema religioso é decisivo para a conversão ao Evangelho do judeu Bob Dylan, é igualmente forte e presente nos outros dois momentos-chave. O renascimento depois do acidente de moto de 1966 é, nas próprias palavras de Dylan, uma experiência de "transfiguração" como a de Jesus no Evangelho de Mateus, o favorito do artista. As três composições, escreve McCarron, interconectam-se e narram uma história permeada de "inspiração bíblica", que espelha a mesma "acidentada experiência de luta, destino e transformação" vivida por Dylan. O tema religioso é também crucial para o retorno constante às músicas que o Robert adolescente ouvia no rádio ou nos toca-discos portáteis dos anos Cinquenta, que um Dylan mais maduro descreveu como seu "vocabulário" e seu "livro de orações".
Em uma entrevista sobre a sua religiosidade concedida ao "New York Times" em 1997, Bob Dylan explicou como tudo tinha ligação com “aquelas velhas canções”: “Creio no Deus do tempo e do espaço. Mas se realmente me perguntam sobre isso, instintivamente, eu olho para trás e penso naquelas canções. Eu acredito em Hank Williams que canta I Saw the Light. Eu também vi a luz”. Portanto, comenta McCarron, Hank Williams e outros "velhos artistas" transmitiram certamente para Bob Dylan a forma de tocar guitarra ou alguma técnica vocal, mas principalmente o introduziram para um mundo rural em que os únicos livros em casa eram a Bíblia do Rei James e o Almanaque do fazendeiro, em uma cultura americana profundamente influenciada pelo despertar evangélico do século XIX, e ensinaram-no principalmente a "orientar-se no mundo".
McCarron declara que não quer se engajar em uma das tantas reconstruções enciclopédicas da vida do ícone. Não quer ser um dos milhares de dylanólogos obcecados por detalhes. Usa a técnica narrativa da psicobiografia, envolve o leitor em uma trama densamente documentada e argumentada, para se aproximar da essência. As transformações de um Dylan proteiforme e jamais estático, conclui McCarron, respondem à incessante preocupação de ser fiel ao próprio destino; ao medo, expresso pelo próprio Dylan, de não realizar aquilo para o qual cada um é chamado: "Quantas pessoas não conseguem tornar-se o que deveriam ter sido. Perdem-se. Seguem por outro caminho. Isso acontece muito frequentemente. Nós todos conhecemos pessoas assim. Reconhecemo-las nas ruas".
Com ele não, com Bob Dylan isso não aconteceu. "Dylan sugere que não se sente como eles" escreve McCarron: "Ele é um dos poucos transfigurados".
Por esse enfoque, a conversão de 1978 não é um episódio isolado, menos ainda a súbita irrupção de uma inspiração religiosa em uma vida até então insensível a Deus.
Não só de referências religiosas está disseminada a carreira artística de Dylan, aliás, John Wesley Harding, em 1968, rotulou como obra pioneira de “rock bíblico” o seu primeiro álbum após o acidente de moto. De forma mais significativa, defende McCarron, o elemento religioso é parte integrante do roteiro que acompanha as grandes rupturas da vida do cantor: a perda de propósito e de identidade que o tornam vulnerável ao perigo e à morte, a resolução da crise através da recuperação das canções da juventude, o renascimento com um renovado sentido de propósito e de si próprio.
O roteiro renova-se no momento da conversão, quando pesam as experiências religiosas de Dylan como a presença do grupo Jews for Jesus, a exposição à New Age californiana e a própria experiência como descendente de judeus que fugiram da perseguição na Lituânia nativa. O ponto central da transfiguração, dessa vez, é Jesus; em nome de quem Bob Dylan nasce novamente. Born again Christian: "Você acorda um dia e renasceu, você se tornou outra pessoa. Se você pensar sobre isso é assustador. Isso acontece no plano espiritual, e não no mental ". Não é o primeiro renascimento, e não será o último, de um homem que tantas vezes transfigurou-se para ser fiel ao seu destino.
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Renascido em Cristo. E Dylan viu a Luz - Instituto Humanitas Unisinos - IHU