02 Março 2017
Nesta época do ano, no meio da semana, católicos do mundo todo aparecem na escola ou no trabalho, na academia, no ônibus ou na fila do supermercado, com uma espécie de mancha estampada na testa.
A reflexão é de Patrick T. Reardon, autor de Faith Stripped to Its Essence: A Discordant Pilgrimage Through Shusaku Endo’s Silence, publicada por National Catholic Reporter, 01-03-2017. A tradução é de Luísa Flores Somavilla.
É quarta-feira de cinzas, e essas manchas são como cruzes desenhadas com cinzas acima dos olhos para lembrar duas coisas. Sinalizam que o nosso tempo na terra é curto. "Lembre-se de que você é pó." E também nos lembram que somos todos pecadores.
Como católicos, a aceitação das cinzas em nossas testas é um ato de fé. É também uma proclamação ao resto do mundo de que acreditamos na mensagem e no caminho de Jesus, que a nossa fé dá sentido, bem como uma estrutura moral e ética para as nossas vidas.
Cada ser humano decide o que dá sentido à vida. Cada um de nós mostra nas ações como estamos respondendo a essa pergunta. Esta escolha, que ocorre diariamente, é a essência do que significa ser humano.
No entanto, a cultura popular raramente enfrenta esta decisão humana crucial tão direta e inequivocamente quanto o romance Silence de Shusaku Endo e o novo filme de Martin Scorsese, baseado no livro.
Quando Endo, um romancista católico japonês (1923-1996), publicou Silence em 1966, houve um rebuliço religioso e literário no Japão. Três anos depois, o livro foi traduzido para o inglês, recebendo elogios de nomes como Graham Greene, John Updike e Garry Wills.
Este trabalho complexo e intenso conta a história de um padre jesuíta de Portugal - Padre Sebastian Rodrigues - que, no início do século XVII, viaja ao Japão durante um período em que centenas de cristãos estão sendo rotineiramente torturados e executados.
Ele é um dos últimos missionários, um símbolo da Igreja, referência e modelo para aqueles que vão até ele em busca de consolo e apoio espiritual. No clímax do romance, Rodrigues é posto à prova, é forçado a escolher.
Dizem que, caso ele mantenha firme a sua fé cristã, cristãos serão continuamente atormentados e mortos. De sua cela, ele ouve os gemidos de cristãos suspensos de cabeça para baixo sobre um poço de tortura, não muito longe dali.
Mas diz-se que Rodrigues pode aliviar seu sofrimento se apenas passar pela formalidade de rejeitar o cristianismo pisando em uma imagem rudimentar e desgastada de Jesus, em um ritual.
Angustiado, ele pisa na imagem. Amanhece e o galo canta.
Esta é a história contada por Scorsese em seu filme, estrelado por Andrew Garfield no papel de Rodrigues. E não é de se estranhar que, como o romance, o filme tenha tirado muitos espectadores do eixo. Embora tenha sido produzido por um dos grandes diretores estadunidenses, "Silence" não pode ser considerado entretenimento Hollywoodiano.
A cultura pop norte-americana está enraizada em perguntas e respostas precisas: os cineastas de Hollywood e o público norte-americano não estão acostumados com ambiguidades morais e a história de "Silence", tanto o romance de Endo quanto o filme de Scorsese, tem muito disto. Trata de dúvida no centro da fé.
No filme, Garfield é a antítese do herói Hollywoodiano. Rodrigues não é corajoso, inabalável e forte, mas magro, indeciso e muitas vezes aparece à beira das lágrimas. O jovem jesuíta é ainda menos heroico no romance.
Endo pinta Rodrigues como alguém imaturo e emocionalmente instável, recém saído do seminário, com pouca ou nenhuma experiência pastoral com que contar. Com ilusões idealistas de ser herói e santo, o padre português fica desnorteado e desmoralizado pela diferença extrema da vida no Japão. Ele desdenha os japoneses, descrevendo-os como macacos e vacas tolas, e não faz amigos japoneses. Ele entende a fé de cima para baixo. Comunidade, especialmente com este povo tolo, não faz parte do seu vocabulário.
No romance, Rodrigues sonha acordado com o rosto de Jesus e repetidamente implora a Deus por respostas: por que ele e os cristãos japoneses têm de enfrentar perseguições? Por que inocentes têm que sofrer e morrer? Por que Deus está em silêncio? É este silêncio que dá nome ao romance.
Então, ao ter de escolher, o jovem jesuíta ouve a voz de Jesus dizendo-lhe para pisar na imagem da crucificação.
A representação de Rodrigues no filme de Scorsese tem menos nuances do que no romance de Endo, mas os principais aspectos de sua personalidade são apresentados no filme, mesmo que sutilmente. Isto inclui a sua vida depois de sua escolha - uma prisão em que ele é forçado continuamente a rejeitar o cristianismo, chegando ao ponto de se unir à perseguição identificando alvos cristãos aos sequestradores japoneses.
No fim do filme, o Rodrigues de Garfield demonstra profunda infelicidade na sua nova existência, miséria compartilhada por seu mentor, o apóstata jesuíta Padre Cristóvão Ferreira (Liam Neeson). Essa angústia fica ainda mais evidente no romance.
Rodrigues diz a si mesmo que ele não é apóstata. "Senhor", diz ele nas profundezas de sua alma, "só o senhor sabe que eu não renunciei à minha fé".
No entanto, enquanto ele diz isso, ele também tem outros pensamentos: "pelas palavras tentadoras de Ferreira, pensei que se eu renunciasse à minha fé esses pobres camponeses seriam salvos. Sim, era isso. E, no entanto, em última análise, pergunto-me se toda essa conversa sobre o amor não é, afinal, apenas uma desculpa para justificar minha própria fraqueza".
Depois da apostasia do padre, Inoue, mandante das perseguições, diz que o cristianismo está diminuindo no Japão porque as raízes foram cortadas - porque Rodrigues e outros sacerdotes escolheram negar sua fé a permanecer firmes nela.
Rodrigues sente-se um traidor e despreza seu antigo mestre e a si mesmo. Ele ora a Jesus: "Minha fé no senhor é diferente de antes; mas eu ainda lhe amo". Ele relembra a voz que ouviu de Jesus no momento da sua renúncia, mas passa o resto de sua vida sentindo vergonha e culpa.
Este é o centro inquietante do romance de Endo e do filme de Scorsese. Rodrigues, na noite escura de sua alma, toma uma decisão moral, mas não temos certeza se foi a escolha certa, nem o leitor de Endo ou o espectador de Scorsese.
Quando o jovem sacerdote pisou na imagem de Jesus, ele salvou cristãos japoneses da tortura e da morte. Mas, ao fazê-lo, será que sua ação significou que todos os cristãos japoneses martirizados antes - e todos os fiéis que, ao longo dos séculos, sacrificaram suas vidas pela fé - haviam morrido em vão?
Ao longo da história humana, os quem creem deram suas vidas por suas crenças, sejam cristãos, muçulmanos, judeus ou de qualquer filiação. Eles ainda estão morrendo no mundo de hoje. O primeiro mártir cristão foi Jesus e não haveria Cristianismo se ele tivesse se esquivado da cruz.
A ação é a fé visível. É por isso que, na quarta-feira de cinzas, há rastros de cruzes nos rostos dos católicos e eles usam-nas frente ao mundo.
Como cristãos, somos chamados a defender a nossa fé e fazer o possível para aliviar o sofrimento. É por isso que o filme e o romance Silence são tão perturbadores.
Rodrigues escolheu corretamente? Ele era santo ou pecador? O jovem padre e apóstata não tem certeza. E nós também não podemos ter.
O romance de Endo não é sobre julgamento: é sobre a dúvida que reside no coração da fé. Em nossas vidas, temos de fazer escolhas morais e elas nem sempre são evidentes.
A fé não é certa. Aquele que crê dá um salto no escuro - uma escolha de acreditar apesar da dúvida, apesar da falta de provas, apesar das pressões externas. Há apenas a decisão de aceitar um estilo de vida e vivê-la.
Silence tem muita fé - com a dor e as dúvidas que vêm com ela.
A fé é um mistério. Cada um de nós, apesar de todas as questões que nos confrontam, somos chamados a abraçar o mistério e incorporá-lo à nossa existência diária.
Questões para reflexão:
Inoue acredita que o jovem sacerdote está enganando a si mesmo sobre sua decisão de pisar na imagem de Jesus. Rodrigues reconhece que talvez ele esteja certo. Em seu coração, porém, ele diz a Jesus que a sua fé é diferente agora, mas o seu amor pelo Senhor permanece forte. O que você acha? Como se sente?
— de Faith Stripped to Its Essence: A Discordant Pilgrimage Through Shusaku Endo’s Silence (ACTA)
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Fé e dúvida em 'Silence': uma reflexão quaresmal - Instituto Humanitas Unisinos - IHU