07 Janeiro 2017
"Todas as grandes religiões do mundo afirmam ser baseadas na revelação, e não apenas na razão. Infelizmente, a revelação tende a ser entendida como um dado a mais de Deus que a ciência não consegue alcançar. Bem entendida, a revelação é como se apaixonar: nós não nos voluntariamos a nos apaixonar, mas simplesmente acontece, e fomos 'recrutados'", escreve George Dennis O'Brien, presidente emérito da Universidade de Rochester, em artigo publicado por Commonweal, 03-01-2017. A tradução é de Luísa Flores Somavilla.
Eis o artigo.
Não há melhor texto para começar um efervescente grupo de discussão local do que Talking God, de Gary Gutting. Gutting é professor de filosofia na Universidade de Notre Dame e colaborador do blogue de filosofia Stone, do The New York Times (e também do Commonweal). Talking God é uma compilação de doze entrevistas sobre questões de Deus e da religião realizadas por Gutting e publicadas na internet para o Stone. A maioria dos entrevistados são filósofos acadêmicos, com alguns historiadores e cientistas. No capítulo final, Gutting entrevista a si mesmo.
Por que a ênfase em filósofos? Gutting cita uma pesquisa recente indicando "que 62 por cento dos filósofos são ateus (e mais 11 por cento ‘tendem’ a esse ponto de vista.)" Se Deus sobreviver às questões desse cético grupo, talvez a religião tenha futuro. Mas uma coisa que as entrevistas sugerem é que a religião pode ter menos a ver com a existência de Deus do que a maioria de nós acredita.
Alvin Plantinga, um filósofo analítico cristão, defende que há argumentos contundentes, se não conclusivos, sobre a existência de Deus e dos nossos deveres religiosos.
Em contrapartida, Howard Wettstein afirma que "a crença não é uma noção judaica. "O Deus que existe ou não dos debates entre a maioria dos teístas e ateístas "é uma ideia errada de Deus". A participação na oração judaica não exige o apoio da metafísica teológica.
John D. Caputo, descrito por Gutting como um "Derrideano Católico", trabalha com a tradição fenomenológica continental. Para ele, também, não importam as declarações sobre a existência ou não de Deus. São irrelevantes para a religião genuína.
Para completar o assunto das religiões líderes abraâmicas, há uma entrevista fascinante com Sajjad Rivzi, diretor do Instituto de Estudos Islâmicos da Universidade de Exeter. Rivzi defende que Abraão é o fundador do Islã. E Mohammed, o seu profeta final. Rivzi acredita que o judaísmo e o cristianismo são subprodutos do Islã. A palavra "Islã" pode ser traduzida como "obediência" ou "submissão" à vontade de Deus. Considerando a obediência de Abraão aos mandamentos de Deus para deixar seu lar ancestral e mais tarde para sacrificar seu filho Isaac, ele representa o próprio paradigma do Islamismo.
Religião-sem-Deus soa estranho para os cristãos, muçulmanos e muitos judeus que discordam de Wettstein, mas há grandes religiões não-teístas: o hinduísmo e o budismo, por exemplo.
Jonardon Ganeri, atual editor do The Oxford Handbook of Indian Philosophy, aponta que os pressupostos ocidentais sobre a estrutura da religião distorcem o hinduísmo. Os hindus acreditam no "divino", mas também acreditam em muitos deuses - alguns grandes, outros menores - ou mesmo não acreditam em nenhum deus. Não existe um "Deus único e verdadeiro" no hinduísmo. "O hinduísmo é uma figueira em cuja sombra da copa, apoiada não por um, mas por muitos troncos, é sustentada uma grande diversidade de pensamentos e ações."
O budismo, em oposição tanto ao hinduísmo quanto às religiões ocidentais, é, segundo Jay Garfield, "uma religião sem divindade". Garfield, que tem relações com a Universidade Central de Estudos Tibetanos dentre suas várias afiliações acadêmicas, ressalta que para o Buda não só não há Deus, como também não há ego ou alma. As práticas espirituais budistas têm a intenção de nos despertar da ilusão do eu e dos seus desejos.
Gutting não entrevista apenas pessoas que pertencem a religiões não-teístas; ele também conversa com vários ateus convictos - filósofos que julgam haver boas razões para negar a existência de Deus. Louise Anthony, que leciona na Universidade de Massachusetts, em Amherst, perdeu sua fé católica na sua primeira aula de filosofia. Como poderia o Deus todo-poderoso de pura bondade de sua fé infantil ser o Criador de um mundo com tanta maldade? A ideia de um Deus assim é contraditória. Ela não é uma simples agnóstica: "Eu defendo que sei que Deus não existe." Se Anthony é um "ateu convicto", Gutting classifica Philip Kitcher, professor da Columbia University, como um "ateu moderado". Kitcher não rejeita tanto a religião ou a crença em Deus quanto rejeita as doutrinas religiosas, que, segundo ele, inevitavelmente geram intermináveis confusões e conflitos. Há algo que ele chama de "religião refinada", que não é uma crença na doutrina, "mas um compromisso de promover valores mais duradouros".
Gutting observa que as entrevistas "enfatizam principalmente a religião natural", ou seja, não colocam a "revelação" como uma fonte de crença ou prática. Segundo ele, "a religião baseada na revelação divina... simplifica a justificação de reivindicações religiosas". A religião natural enfrenta o desafio da ciência natural, e há entrevistados que são experts em física e biologia.
Tim Maudlin é um filósofo da ciência cujo trabalho recente tem sido desenvolver uma linguagem matemática para descrever o espaço e o tempo. Ele é franco em sua declaração de que "o ateísmo é a posição padrão em qualquer investigação científica". Michael Ruse, autor de Darwinism as Religion, considera a religião a partir do contexto da evolução biológica. Ele destaca a possível função adaptativa da religião e admite que a ciência "não explica tudo".
Ao final das entrevistas, o leitor pode compartilhar das visões dos dois últimos filósofos. O epistemólogo Keith DeRose, de Yale, sugere que "nem teístas nem ateus sabem se Deus existe... não sabem mesmo". Argumentos a favor ou contra a existência de Deus podem ser mais ou menos plausíveis, mas nunca conclusivos.
O filósofo e historiador de Princeton Daniel Garber se pauta na complexa história do ateísmo moderno. No século XVII, a maioria dos filósofos eram religiosos. Se a maioria dos filósofos do século XXI são ateus, não é por causa da ascensão da ciência, como muitas vezes se defende, mas por causa de uma mudança cultural mais ampla, provocada por eventos como a Revolução Industrial e as guerras mundiais. Tanto quanto ele possa acreditar, Garber encontra uma barreira na questão do mal. Gutting pergunta a Garber se ele tende a aceitar a aposta de Pascal. Pascal argumentou que considerando a escolha entre a existência ou não de Deus, era mais racional apostar na sua existência. Se existir, se ganha uma bênção infinita; se não, não se perde nada. Garber não está apostando. "O que me preocupa... é a possibilidade de eu corromper a minha alma, enganando-me ao acreditar que algo existe só porque eu quero que exista. Para um filósofo, isto é uma espécie de condenação na vida."
Depois de avaliar as várias opiniões apresentadas nas outras entrevistas, Gutting - o entrevistado - opta pelo agnosticismo. Um tanto surpreso, o Gutting entrevistador pergunta: "Como você pode ser agnóstico e dizer que é católico?" Ao que Gutting entrevistado responde: "A revelação 'fundamental' é o ideal moral expresso no relato bíblico da vida de Cristo".
Apesar de sua brevidade, Talking God contém uma rica variedade de ideias sobre Deus e religião. Minha apresentação das diferentes posições das entrevistas é feita de modo grosseiro: perde muito de suas nuances e sofisticação. Se você realmente escolher este livro para discutir em grupo, reserve vários encontros e não espere chegar a um consenso. Embora eu não hesite em recomendar o livro, tenho que confessar que, por todo o vai e vem dos argumentos, não tenho certeza de que se chegou ao assunto de Deus e da religião. Considerando os pressupostos básicos da maioria, se não de todos os interlocutores de Gutting, eu me pergunto o porquê de 27 por cento dos filósofos não serem ateus. O ateísmo faz parte do seu território.
Em um diálogo imaginário, Iris Murdoch pede que Platão caracterize a religião e ele diz: "[a religião] tem de ser o centro de tudo... ela é mais real do que nós... nós não somos voluntários, fomos recrutados". Filósofos são "voluntários" a Deus e à religião. Eles querem justificativas racionais para aceitar a causa. Este modo de Filosofia foi justamente chamado de "ateísmo metodológico". Mesmo que se aceitem argumentos em prol da existência de Deus e se conclua que a religião é valiosa, se permanece um espectador racional, e não um participante religioso. Há filósofos que rejeitam o modelo racional-espectador da filosofia, mas eles são geralmente vistos com desconfiança pela maioria. Pensadores como Kierkegaard, Nietzsche e, à sua própria maneira, Wittgenstein não eram filósofos racionais-espectadores. E Nietzsche não era um ateu comum: para ele, Deus estava morto.
Todas as grandes religiões do mundo afirmam ser baseadas na revelação, e não apenas na razão. Infelizmente, a revelação tende a ser entendida como um dado a mais de Deus que a ciência não consegue alcançar. Bem entendida, a revelação é como se apaixonar: nós não nos voluntariamos a nos apaixonar, mas simplesmente acontece, e fomos "recrutados".
Dois dos entrevistados no livro de Gutting estão no rastro da "revelação". Howard Wettstein encontra a religião na oração. John Caputo encontra Deus não em doutrinas racionalizadas, mas em "uma forma intrínseca de viver... os desejos do nosso coração". Amém.
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62% dos filósofos são ateus. A religião sobreviverá? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU