16 Setembro 2016
Empobrecido e dizimado, país vive sua terceira guerra civil em quarenta anos. Agora, em fase aguda do conflito, exércitos têm como alvo central a população civil e as colheitas.
O artigo é de Vinicius Gomes Melo, formado em Relações Internacionais, escritor e repórter, publicado por Outras Palavras, 13-09-2016.
A primeira parte do artigo pode ser lida aqui.
Eis o artigo.
Em 2011, o mundo ganhou um novo país. Após um referendo aprovar a divisão do Sudão, nascia o Sudão do Sul. O futuro parecia radiante e promissor. A independência finalmente chegava após duas milhões de pessoas mortas e duas guerras civis, que totalizavam 38 anos de conflito. Porém, uma terceira guerra civil espreitava o maior país da África.
Quando a contagem se encerrou contabilizando 99% de votos pela independência e as fronteiras entre Norte e Sul foram desenhadas, duas regiões acabaram ficando do lado “errado” do mapa.
As províncias do Cordofão do Sul e Nilo Azul estão localizadas na região dos Montes Nuba – exatamente no enclave entre Sudão e o Sudão do Sul – e apesar de ambas também terem lutado junto ao Exército Popular de Libertação do Sudão (SPLA, sigla em inglês) contra o regime em Cartum, elas foram deixadas para trás quando o novo país foi formado.
A promessa era de que em breve elas também teriam a oportunidade de realizar um referendo sobre a secessão. Mas apenas um mês da separação formal dos dois países, o governo de Omar al-Bashir lançou uma ofensiva-surpresa contra os rebeldes em Cordofão do Sul, primeiramente indo de casa em casa confiscando as armas que encontrava, realizando prisões e assassinatos de lideres e ativistas políticos da região, e em seguida um ataque total contra o território rebelde. Os revoltosos atacaram de volta e o confronto se espalhou para a província do Nilo Azul. Cinco anos depois não há fim à vista para o conflito.
Mas agora as províncias rebeldes não querem fazer parte do Sudão do Sul, ou até mesmo a independência de Cartum. Após serem esquecidos pelo resto do mundo, eles mudam seu nome para SPLA-Norte, se unem ao movimento de resistência em Darfur e formam a Frente Revolucionária do Sudão, cujo maior objetivo é a derrubada do regime de Bashir e a criação de um Novo Sudão.
É claro que, como uma reportagem da Time apontou, isso significa que eles “conseguiriam algo que o Tribunal Internacional em Haia, as décadas de sanção por parte do Ocidente, o barulho de celebridades militantes, infinitas investigações de grupos de direitos humanos, e até mesmo um bombardeio norte-americano, em 1998, fracassaram em fazer: reestruturar, domar ou simplesmente derrubar o governo de um dos países párias do mundo”.
O criador desse termo foi John Garang, o homem que durante 22 anos liderara o SPLA contra o regime em Cartum durante a segunda guerra civil sudanesa. Garang “foi um dos mais complicados rebeldes em um continente que viu todos os tipos de autoproclamados libertadores e revolucionários”, como descreveu a BBC.
Mesmo assim, foi sob sua longa liderança que o movimento libertário e multiétnico SPLA manteve-se relativamente coeso, talvez por ser um dos poucos que, apesar de enfrentar o governo em Cartum, acreditava em um Sudão unido. Tal visão conseguiu atrair até mesmo os movimentos oposicionistas no Norte árabe do país.
Um dos homens que compartilhavam dessa visão era Yousif Kuwa, o mais carismático líder que a região já teve. Sua figura talvez resumisse muito do que Garang acreditava, que as diversas etnias e religiões do Sudão podiam coexistir: Kuwa era negro, mas muçulmano; combatia um governo predominantemente árabe ao lado de um movimento rebelde predominantemente cristão.
Nenhum dos dois chegaria a ver suas terras independentes. Kuwa morreu de câncer em 2001 e Garang sofreu um misterioso acidente aéreo poucas semanas após a assinatura do acordo de paz de 2005 e ser empossado presidente da região, ainda autônoma, do Sudão do Sul.
É provável que os dois ficassem desalentados em saber que não há nada de novo no front no país: o Sudão do Sul independente entraria em sua própria guerra civil (ainda mais brutal) e os Montes Nuba continuariam a ser massacrados pelo regime em Cartum e esquecidos pelo resto do mundo.
Assim o jornalista Nicholas Kristoff descreveu a situação nos Montes Nuba, em 2015. Mas desde que entrara na segunda guerra civil do país, essa é a região que mais sofreu com as represálias de Cartum, e não foi sem razão que sua população assistiu com desconfiança a assinatura do acordo de paz de 2005, onde previa-se que eles também teriam direito a um referendo separatista. Temiam que após lutarem ao lado do Sudão do Sul, seriam deixados para trás, ainda dentro de um país governado por uma ideologia fundamentalista e, comprovadamente, vingativo.
“A memória histórica nessa parte do Sudão é definida pelas terríveis experiências da década de 1990, quando Cartum lançou uma guerra total de claros tons genocidas contra o povo de Nuba, matando e desabrigando centenas de milhares de pessoas”, escreveu Eric Reeves, um dos maiores especialistas quando o assunto é Sudão.
Reeves afirma que a ofensiva tinha caráter “genocida” por não ter a menor preocupação em distinguir civis de combatentes, além de sofrerem um embargo humanitário: mesmo com a região isolada e as pessoas famintas, não era permitido a entrada de qualquer suprimento de emergência ou assistentes humanitários estrangeiros.
A mesma estratégia viria a ser aplicada mais de 20 anos depois. Reeves afirma ter recebido em setembro de 2014, um documento oficial do governo contendo as minutas da “Reunião do Comitê Militar e de Segurança no Colegiado de Defesa Nacional em Cartum”.
Nela, os oficiais militares discutem de maneira explícita como aumentar o bombardeio nas produções agrícolas do povo Nuba. Essa campanha, Reeves aponta, acontece desde 2011, no resumo dos confrontos.
“Neste ano, o SPLA-N conseguiu cultivar grandes áreas no Cordofão do Sul. Nós não podemos permitir que eles colham essas plantações. Uma boa colheita significa suprimentos para o esforço de guerra. Nós devemos matá-los de fome, para que assim os comandantes e os civis desertem os combatentes, então nós recrutamos os desertores para usá-los na guerra contra os rebeldes”, lê-se em uma das páginas.
Apesar de o suposto relatório estar em árabe e Reeves ter sido o único a divulgá-lo, uma investigação de 2015 da Human Rights Watch confere substância à revelação. “A força área sudanesa tem repetidamente, e indiscriminadamente, bombardeado áreas civis, matando e mutilando pessoas, destruindo casas e plantações, e danificando escolas, hospitais e outras instalações civis, nestes quatro anos desde o início do conflito, em 2011”.
O site Nuba Reports mantém uma contagem sobre as bombas lançadas na região desde 2012. Até o momento, o número é de 4.082. Em uma reportagem especial para a Al-Jazeera, o repórter Callum McRae visitou a região em abril. As imagens que ele documentou confirmam que a “terceira guerra civil sudanesa” é uma guerra direcionada contra civis. “Bombas são jogadas aleatoriamente contra alvos civis […] O governo também alveja terras agrícolas, numa tentativa de matar a população de fome. A população local alerta sobre o aumento da incidência de má nutrição e doenças epidêmicas por conta da falta de programas de vacinação e instalações médicas”.
Ao passar por Kauda, a capital administrativa do Cordofão do Sul, McRae viu que o principal hospital da região estava abandonado, pois as três bombas que ali foram lançadas falharam em explodir, impossibilitando o seu uso. “Não há ninguém que possa desarmá-las, pois todas as ONGs foram banidas por Cartum, incluindo as especializadas em desativação de minas”, explicou o repórter, que também teve que entrar na região de forma clandestina, pois Cartum proíbe a presença de jornalistas estrangeiros por questões de “segurança nacional”.
Estima-se que pelo menos um milhão de pessoas estejam desabrigadas e necessitando desesperadamente de comida e medicamentos. Com o contínuo bombardeio, as pessoas têm que se esconder dentro entre ravinas e as cavernas das montanhas. Muitas delas estão morrendo por ali mesmo. Nesta guerra longa e cruel, o tempo está ao lado de al-Bashir, o único chefe de Estado a receber um mandado de prisão ainda no exercício do cargo, e é ele quem está vencendo.
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Sudão do Sul: mais uma guerra esquecida na África (II) - Instituto Humanitas Unisinos - IHU