07 Março 2016
Como viver a espiritualidade nos dias de hoje, diante de um contexto de intolerância religiosa? Em entrevista exclusiva à Adital, o teólogo jesuíta Pedro Trigo explica que ser cristão não é algo fundamentalmente religioso, mas uma experiência vivida nas relações, saindo para o mundo e não "ensimesmando-se”. Ele defende que a paz está associada a nos definirmos primeiramente como humanos, antes de qualquer outra categoria. Trigo, que é espanhol naturalizado venezuelano, destaca a "urgência do essencial”, que, para ele, significa viver como irmãos de todos, a partir de baixo.
O teólogo é também autor de livros, professor de Teologia e um dos coordenadores do Centro Gumilla, organização de pesquisa e ação social que acompanha setores populares na Venezuela. Trigo comenta ainda sobre a vida na Venezuela, a atuação do governo bolivariano e os desafios para a população, que enfrenta longas filas diárias para comprar alimentos. Segundo o jesuíta, o país enfrenta um "empobrecimento espantoso”, com a evasão de profissionais para outros países.
A entrevista é de Cristina Fontenele, publicada por Adital, 04-03-2016.
Eis a entrevista.
O que é a urgência do essencial?
É importante, primeiro, observar que, para os cristãos, o essencial não é o estático, aquilo que é sempre igual a si mesmo. Para os cristãos, diferente dos gregos, o que tem mais realidade não é a substância, mas o atuar. Deus diz que é o ato puro. O Deus cristão é relação, ou seja, para nós, a relação é o que tem mais realidade. A relação faz a diferença, para que o pai seja pai, o filho seja filho e se mantenha a unidade. Então, para nós, o essencial sempre tem que ter esse elemento dinâmico e relacional. Por isso o essencial não pode ser dito de uma vez por todas, tem que ser dito novamente, em cada situação, porque, se não é dito na situação, é uma ortodoxia que resulta insignificante.
‘O que está falando esse senhor? Uma coisa arcaica que não tem nada a ver com o que estamos vivendo?’. É muito arriscado dizer o que é o essencial em cada situação. Eu parto da novidade do [Concílio] Vaticano II e estamos nos 50 anos de sua realização. Para mim, o mais essencial que precisa ser dito é que, a respeito do Cristianismo, no qual nasci, a instituição eclesiástica dizia que era necessário salvar-se do mundo, que o mundo moderno estava perdido, e que teria que ser feita uma institucionalização paralela, sindicatos cristãos, por exemplo, havia um cinema para cristãos, um bar para cristãos. O primeiro concílio pleno latino-americano, além de dizer isto, disse também, por exemplo, que uma mulher que vai dar à luz tem que ser atendida sempre e somente por uma parteira que seja cristã. Isto é totalmente inacreditável, não?
A respeito, o que disse o Concílio? Disse que, se eu, para encontrar Deus, me aparto do mundo, cruzo com a direção de Deus que entra no mundo. Se o fundamental do Deus cristão é a encarnação, como vou sair do mundo? Estou fazendo o contrário de Deus. Então, o que é o mais fundamental de tudo? Encarnar-me na situação que tenho que viver. Poderíamos dizer ‘não, como Jesus era filho de Deus, ele teve que ser um ser humano, mas, se você é um ser humano, não tem que encarnar?’ Sim, porque na encarnação de Jesus se fez não apenas um ser humano, mas também nosso irmão. Então, o que se pede a mim? Que não seja um entre tantos de uma espécie, de uma cultura, de uma classe social, de um país, mas que seja um irmão de todos.
Jesus encarnou a partir de baixo, nasceu pobre, viveu pobre e morreu como havia nascido. Se não teve uma casa para morrer, tampouco teve uma cama para morrer, morreu em uma cruz, sangrando. Então, a encarnação cristã solidária tem que ser feita a partir de abaixo, porque somente de baixo pode se chegar a todos. O que esteve dizendo esse sistema, é que se a sociedade fosse como um recipiente, o recipiente se enche, se enche, até que transborda. E, quando transborda, atinge todos. Isto é o que o Banco Mundial e o Fundo Monetário tiveram que dizer, que não é uma teoria científica, porque aumentou muito a riqueza, nas últimas décadas, e, no entanto, a desigualdade é cada vez maior. Quer dizer que o aumento da riqueza não se traduz em que esta riqueza seja distribuída.
Para os cristãos, os pobres são o único lugar de universalidade real. Isto é o mais elementar de tudo, mas o que parece é que o mais elementar é o menos praticado. Não é isso o que se costuma ouvir nas missas, nem nas dissertações de teólogos. O que se costuma definir por algo mais específico - eu sou jesuíta e me defino como jesuíta, ou sou cristão e me defino como cristão, ou sou empresário e me defino como empresário, ou sou deste partido e me defino como deste partido. Ou sou eu e me defino por mim e tudo o mais vem depois, o que importa sou eu, e as pessoas com quem quero me relacionar, enquanto quero me relacionar.
Em todos esses casos, não acontece a encarnação como a entende o Cristianismo, como a praticou Jesus. Quer dizer que eu, se me identifico como a instituição eclesiástica, não sou cristão. Jesus não foi da instituição eclesiástica. Então, o que isto significa? Que eu tenho que me identificar como um ser humano e que ser cristão é uma especificação de ser um ser humano. Se não é uma especificação do ser humano, ou mesmo um veículo para ser mais humano, então, essa encarnação já não será solidária.
Isso que pode parecer óbvio de óbvio não tem nada. Por exemplo, todas as pessoas falam sobre os direitos humanos, mas, para mim, parece que é um falar vazio, porque o problema não é salvar ou não os direitos humanos, o problema é o quanto são humanos. Este é um problema que se vê claramente. Há muitas pessoas que, em seu âmbito, respeitam completamente os direitos humanos, mas fora do seu âmbito não. Significa dizer que eu considero que são humanos somente os meus e que os demais poderão ser candidatos a seres humanos, ou meio humanos. Mas todos deveriam ser humanos, para mim, todos têm dignidade. No comportamento, parece que não, porque muitas pessoas eu desconheço e já outras tenho versão, de maneira absoluta.
Esta época em que vivemos poderia ser a primeira época da história mundial, mas não é, porque, embora seu âmbito seja mundial e todos possamos ver todos, embora todos possamos assistir ao que se passa em qualquer local do mundo, em tempo real, no entanto, nem todo somos sujeitos, alguns poucos. Qual é a prova mais clara disto? Que as mercadorias são jogadas em todos os locais livremente, que os capitais não têm nenhuma fronteira, que os gerentes, os grandes empresários ou os grandes financistas não têm nenhuma fronteira, mas, para a gente de baixo as fronteiras são absolutamente drásticas. Cada vez mais, estão colocando muros e, se as coisas não mudarem substancialmente, dentro de pouco tempo, assistiremos ao assassinato massivo de centenas de milhares de pessoas, porque já não há outro modo de conter isto. Se não reconheço como pessoas, se não ajudo a desenvolver os lugares de origem, em vez de empobrecê-los, não tem remédio.
A falta de consideração de que todos somos seres humanos, de que todos somos irmãos, está nos levando a ver que já é impossível viver assim. Ou isto muda, ou se torna cada vez mais inviável. Isto que poderia parecer algo muito elementar não é.
A fraternidade é uma magnitude absolutamente transcendente. Os seres humanos, nos momentos melhores, por exemplo, no momento dos estoicos, chegaram a dizer: ‘eu sou um cosmopolita’, ou seja, não sou um cidadão de Atenas ou de Tebas, e sim do cosmos e de todo o mundo. Isto foi uma coisa maravilhosa e totalmente inassimilável para a ordem estabelecida. O mesmo fizeram Kant e outros [filósofos] e voltaram a falar de cosmopolitismo, dizendo que, de alguma maneira, a paz tinha a ver com isso e como definimos como seres humanos.
Encarnar-se como irmão neste mundo é ser cristão. Ser cristão não é algo fundamentalmente religioso, não é fazer práticas religiosas, não. É, como filho de Deus, viver como irmão de todos a partir de baixo. Isto é o essencial.
Como viver a espiritualidade, hoje, diante da intolerância religiosa?
A minha percepção é que, se nós não temos mais densidade humana do que as corporações mundiais, temos que nos resignar ao que elas nos dizem. A proposta é que temos que adensar o sujeito, de tal maneira que podem me afetar o que fazem, mas não me influenciam em absoluto, porque minha vida nasce de mim.
Como se faz isto de forma cristã? Não se faz ensimesmando-se. Cristianamente, isto só se faz por meio das relações, pondo-me nas mãos de Deus, sabendo que o amor é a origem da vida e, portanto, nada pode me separar da vida, porque nada pode me separar do amor. Poderão, em todo caso, matar, mas não vão me separar do amor.
Em que se manifesta essa confiança de fundo? No que me dedico a ser fraternidade a partir dos de baixo. Quando eu atuo densamente, em ambas as dimensões, libero minha liberdade e essa liberdade liberada se aplica na capacidade de fazer fraternidade.
Qual a prova de que há confraternidade a partir de abaixo e que incluo os meus inimigos? O sinal de que é a verdadeira
fraternidade, como humanos, é que logo de baixo incluo meus inimigos. Por exemplo, na Venezuela, o que eu disse todos esses anos?
Se você é antichavista, não é cristão se você não pede, com toda as inceridade, com toda a alma a Deus, a cada dia, que Chávez acerte. Se você é chavista, não é cristão se você não pede, com toda a sinceridade, que os não chavistas acertem. Isto é um teste e não significa que me faça bem ou mal, não tem a ver com sentir, tem a ver com querer, com o que sai mais fundo de mim. Eu quero o seu bem, mesmo que você me considere seu inimigo.
Essa perspectiva é a única que pode nos salvar, porque essas diferenças se fazem absolutas e não podem ser. No caso de Chávez, por pouco marxista que fosse, teria que reconhecer que a política é uma superestrutura. E uma superestrutura não pode definir minha vida, isto seria totalmente irracional. Há coisas muito mais profundas do que esta, não posso me definir por isso. Para poder pensar, tenho que tomar decisões mais profundas, senão, como me identifico com isso, não posso pensar. Em todo caso, posso pensar ideologicamente como uma declaração de princípios, mas não como uma realidade atuante em minha vida.
Como avalia a relação entre a Venezuela e a Colômbia tendo em vista os problemas ocorridos na fronteira e os casos dos migrantes expulsos?
Este não é o problema. Eu sempre uso o transporte público, caminho e vivo numa zona popular. E 80% das conversas são sobre se você obtém um alimento ou não obtém, se tem ou não dinheiro para comprá-lo, quantas horas de fila são necessárias. As pessoas estão tão sobrecarregadas disso que precisam se distrair. A prova maior de que o que se diz não é o problema é que, certamente, foram detidos o comércio e o contrabando regular, mas não contiveram o grande contrabando.
Isto é o que se chama "bachaqueo”?
Sim. Os varejistas são os ‘bachaquitos’, que vão como formigas [caminhando e levando mercadorias]. Por exemplo, a gasolina continua passando [pela fronteira] e são detidos os que vão com um recipiente, mas não os outros. O que fez o governo? Concentrar o contrabando de forma que seja o único beneficiado, mas o mais importante não é isto e sim distrair, porque a situação está tão mal, tão mal, que o governo vê que, para as eleições, não há outras coisas e as pessoas querem acabar com essa situação.
Sim, há o desabastecimento de produtos e, quando chegam, onde chegam, fazem-se filas enormes. Mas quem pode fazer filas? As filas que chegam até quatro horas ou mais. Se eu sou um médico e me pagam menos de U$ 100 por mês, não posso fazer nenhuma fila, necessito trabalhar mais do que o normal para sobreviver. Por isso a Venezuela, que tem sido sempre um país que acolheu imigrantes, pela primeira vez, há 1,5 milhão de profissionais que querem sair, um empobrecimento espantoso do país, professores universitários, médicos muito bem formados na Venezuela, ficamos sem eles. Muitos foram para o Equador, porque na política de [Rafael] Correa o mais importante é a educação, os mais bem pagos têm que ser os educadores. Se uma pessoa está ganhando U$ 100 e lhe oferecem U$ 4.000, é quase impossível que diga não quando com issso não se pode viver.
Como a população avalia o governo?
Os que estão, como se diz, em ‘apoio duro a Chávez’ são cerca de 20%. Muita gente que vive do governo, o governo ameaça e diz que, ‘se você não votar em mim, você fica sem esse sustento, sem esse emprego’. Naturalmente, que o governo não pode saber quem votou, mas há uma chantagem muito forte. Então, se a coisa não muda muito como está, é claro que o governo perderá por mais de 10 pontos.
Quais os desafios para a Igreja na Venezuela?
O que precisa fazer a Igreja, hoje, e em qualquer outro local, por causas distintas, no nosso caso, é o governo, em outros casos é o que Papa tanto disse: ‘esse sistema que é fetichista e que mata’, é transmitir com tal profundidade a relação de Deus conosco através de Jesus, que eu viva como filho e daí viva como irmão, e que possa viver assim nas boas, nas más e nas péssimas e aja com alegria, apesar de qualquer dor, não como um dever. O Cristianismo não conhece deveres, conhece a entrega do coração, como agradecimento, como resposta à entrega de Deus em Jesus.
A partir daqui tem que se pensar tudo isso, de maneira que possa haver comunidades, fraternidades e que possa haver outra lógica completamente distinta da lógica atual, que é sempre adversativa – eu te dou para que você me dá. Essa outra lógica nossa não pode ser feita como um dever, nem para fazer méritos, somente quando é uma boa nova. Quando eu percebo que a relação de Deus comigo e Jesus é o maior bem que pode haver, então, eu vou querer ser irmão de todos. E ter muitos irmãos e irmãs, como cantava Mercedes Sosa, é a coisa maior que pode haver.
Eu leio o Evangelho em sete comunidades, uma é a Universidade Central, que não é gente rica, mas tampouco pobre, as outras são em bairros. Através disto tenho muitos irmãos e muitas irmãs.
Sobre isso é o que nos fala constantemente o Papa, e diz que não se trata de proselitismo. Por que falar em ‘Igreja em saída’? Porque, se estou encerrado em mim, tenho que sair ao mundo, e foi o que Deus fez ao enviar seu filho. Por meio da leitura do Evangelho, se vê claramente que Deus fala para os simples.
Sobre a história da evangelização na América Latina, que herança ela tem, hoje?
A América Latina nasce com uma contradição constituída. A contradição é que eu te batizo e você é meu irmão, saindo do templo eu sou senhor e você é servo. Os melhores momentos da história da América Latina são os que quiseram superar esta contradição, de maneira que pensa a fraternidade sobre a opressão.
Eu escrevi um longo artigo, com a leitura da história da América Latina, que diz que os momentos que dizemos que são bons, são os que triunfou a fraternidade sobre a opressão do homem pelo homem. Os melhores evangelizadores se colocaram em favor dos indígenas e contra os que haviam chegado. E os indígenas captaram essa contradição.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Como viver a espiritualidade nos dias de hoje - Instituto Humanitas Unisinos - IHU