26º Domingo do tempo Comum - Como passar pela vida sem se importar com a vida do próximo, como a vida de Lázaro?

Foto: Unplash

Por: MpvM | 23 Setembro 2022

 

"Ao ler o Evangelho de Lucas 16,19-31, conhecida como a parábola do 'homem rico e o pobre Lázaro', importa lembrar que é Jesus nos questionando no hoje: Como passar pela vida sem se importar com a vida do próximo, com a vida de tantos Lázaros?", escreve Simone Furquim Guimarães na reflexão a seguir. E continua: "Com essa parábola, Jesus mostra aos fariseus que porta que separa o rico do pobre Lázaro é a injustiça social, fruto da ausência de uma ética relacional. Hoje, devemos nos questionar sobre as naturezas das relações éticas que unem cada pessoa a seu próximo e fazer essa pergunta: Como passar pela vida sem se importar com a vida do próximo, sobretudo dos mais vulneráveis, como a vida de Lázaro?"

 

Simone Furquim Guimarães, leiga, teóloga, é mestre em teologia bíblica pela Faculdades EST. É assessora e coordenadora do Cebi-Planalto Central.

 

 

Leituras do dia

 

1ª leitura: Am 6,1a.4-7
Salmo: Sl 145 (146), 7.8-9a.9bc-10 (R.1)
2ª leitura: 1Tm 6,11-16
Evangelho: Lc 16,19-31

 

Eis a reflexão

 

Ao ler o Evangelho de Lucas 16,19-31, conhecida como a parábola do “homem rico e o pobre Lázaro”, importa lembrar que é Jesus nos questionando no hoje: Como passar pela vida sem se importar com a vida do próximo, com a vida de tantos Lázaros?

 

No texto, a parábola é direcionada aos fariseus, conforme os versículos anteriores. Jesus os chama de “amigos do dinheiro” (v. 14). Jesus os critica, dizendo: “vós sois os que querem passar por justos diante dos homens, mas Deus conhece os corações; o que é elevado para os homens, é abominável diante de Deus” (v. 15). Esses religiosos não mais cuidavam de suas ovelhas, estavam insensíveis à miséria e a fome; fechados em seus ciclos, usufruindo o poder e o bem estar, gozando de suas riquezas materiais.

 

Com essa parábola, Jesus mostra aos fariseus que a porta que separa o rico do pobre Lázaro é a injustiça social, fruto da ausência de uma ética relacional. Hoje, devemos nos questionar sobre as naturezas das relações éticas que unem cada pessoa a seu próximo e fazer essa pergunta: Como passar pela vida sem se importar com a vida do próximo, sobretudo dos mais vulneráveis, como a vida de Lázaro?

 

Nesse sentido, nos ensina o pensador contemporâneo Emmnuel Levinas, que vivenciou o holocausto, as guerras e percebeu que o que nos torna humanos é a ética nas relações. Percebeu que a ética relacional é o permanente reconhecimento do outro, numa relação que nos faz ir do “um ao outro” e revela-se na transcendência do “para-o-outro”, conduzindo-nos a descobrir o sujeito-ético que perfaz a relação, o entre, este espaço entre mim e você que nos faz nós e dá legitimidade às identidades e singularidades humanas. Essa ética relacional tem a ver com o amor ao próximo, que é o mandamento proferido por: “que vos ameis uns aos outros como eu vos amei” (Jo 15,17). Não é uma lei imposta, mas que nasce da nossa identidade humana.

 

Mas o que faz com que percamos a humanidade? A parábola vai dizer que existe uma “porta” que vem nos separando e distanciando de nossa essência humana.

 

Em vida, a porta revelava o abismo social que separava o homem rico do pobre Lázaro. Depois que os dois morrem, cria-se um abismo instransponível entre eles; Lázaro agora está no seio do pai Abraão. O homem rico pede para Abraão deixar Lázaro alertar seus cinco irmãos sobre essa “porta” que deve ser rompida para viver a ética relacional, que se constrói com o mandamento do amor e da justiça social. Mas Abraão o adverte, dizendo: “Se seus irmãos não escutam nem a Moisés nem aos Profetas, mesmo que alguém ressuscite dos mortos, não se convencerão” (cf. v. 31). Ou seja, se os textos sagrados não provocam em nós as mudanças (metanoia, do grego: conversão de perspectiva e de prática) para construir o Reino de Deus aqui neste mundo, nem se Jesus, que se fez pobre e humilhado, vir até nós em carne e osso, não provocará a mudança esperada. A parábola vai nos alertar que devemos ler a Bíblia atentos à nossa realidade, sensíveis para enxergar a necessidade de se fazer justiça social e para romper a porta e fazer irromper os sinais fortes do Reino de Deus no desde agora de nossa história no mundo.

 

O texto impressiona pela sua atualidade, não obstante os milênios que nos separa. Impressiona, sobretudo agora, em tempos de eleições, quando se veem inúmeras pessoas religiosas, lideranças das igrejas, deixando-se instrumentalizar por candidatos supostamente defensores da família tradicional e da moral; porém são insensíveis, ou seja, nada dizem sobre o exponencial crescimento da fome, do desamparo, da fratura social e da violência política.

 

Diante disso, percebe-se um sentimento predominante no povo brasileiro: o desejo por justiça, o desejo de reconstruir o país após as várias crises que sofremos nos últimos anos. Primeiro, o discutível impeachment contra o governo legitimamente eleito; depois os sucessivos governos, que podem ser conhecidos também como aqueles que são “amigos do dinheiro”, pois estão alinhados e subservientes aos donos do poder econômico, mas totalmente descolados e surdos aos gritos dos novos Lázaros, sobretudo durante a pandemia da Covid-19.

 

Nos Evangelhos, Jesus ensinava sobre o projeto de Deus, projeto de vida e libertação, por meio das parábolas. E na parábola de hoje, Deus quer nos ajudar a romper com esse abismo social e a construir o Reino de igualdade aqui mesmo neste mundo. O nome Lázaro significa “Deus ajuda”. Deus ajuda como? Deus envia Lázaro em nossas portas. Quem são os Lázaros de hoje? São as 33 milhões de pessoas que não têm o que comer hoje. São os mais de 10 milhões de desempregados e de desempregadas. São as pessoas que não têm o mínimo de infraestrutura para viver: saúde, segurança, moradia, emprego, educação, direitos trabalhistas e previdenciários. Lembremos também dos trabalhadores e trabalhadoras em aplicativos, aqueles/as que muitas vezes carregam comida nas costas e não tem o que comer. Pois, quando a concentração de renda se exacerba sob a égide de modelos e planos econômicos que priorizam formas mais e mais lucrativas para seus “investidores” (aqueles que impõem as regras da economia), deflagram-se verdadeiras catástrofes sociais por meio de convulsão social, aumento da violência urbana e no campo, adoecimentos físicos e mentais, precarização da vida social, abuso e exploração de pessoas mais vulneráveis (crianças, mulheres e idosos) e o surgimento de bolsões de miséria e extrema pobreza. As ruas, os sinais de trânsito, as avenidas, calçadas e praças públicas voltam a ser ocupados por pessoas com dificuldades financeiras que dia a dia suplicam uma ajuda. São os nossos Lázaros...

 

É triste afirmar que estamos distantes de construir os sinais do Reino de Deus enquanto mantivermos a cultura do acúmulo, propagado pelos homens ricos da parábola. Quem são esses homens ricos de hoje? São “os amigos do dinheiro”, como critica Jesus. São os que idolatram o dinheiro (o deus Mercado), conforme critica o Papa Francisco. Esta “idolatria” se faz evidente no estudo da organização não governamental britânica Oxfam: No Brasil, os 20 maiores bilionários do país têm mais riqueza do que 128 milhões de brasileiros (60% da população). Na pandemia de Covid-19, vimos aumentar a quantidade de bilionários, que tomam parte do perverso jogo financeiro em que “os ricos estão cada vez mais ricos, às custas dos pobres que estão cada vez mais pobres” (São João Paulo II).

 

As leituras de hoje convidam-nos a falar sobre Justiça social, e exorta-nos a sermos profetas e profetisas. Justiça social foi invocada pelo profeta Amós que, em nome de Deus (oráculos do Senhor), denunciava as injustiças causadas pela elite de Israel, denunciava a situação de desigualdade social que levava o povo a ficar na miséria. Amós também denunciava os religiosos do seu tempo, que acobertavam esse sistema político e econômico e que usufruíam de vida luxuosa e de banquetes.

 

A segunda leitura (1Tm 6,11-16) é uma contundente crítica aos que visa somente o lucro, a riqueza e o poder. São os falsos profetas apresentados no conflito anterior (cf. v. 3-10). Estes pretendiam ocupar o lugar de Deus. Por isso, o autor da carta exalta Deus como único Senhor, único Rei, único imortal. A Carta a Timóteo nos alerta a não esquecer quem é Deus. Toda a Bíblia quer nos alertar que Deus é aquele que ouviu o grito dos excluídos, ouviu os Lázaros, os escravizados, desceu e caminhou e caminha sempre com seu povo. Deus é YHWH, que significa aquele que está sempre com seu povo. Por isso, nas liturgias, os salmos de louvor a Deus, santificam o seu nome para sempre (Sl 145,1); pois bendizer o nome de Deus tem como compromisso fazer memória de um projeto de vida e libertação.

 

Celebramos hoje a Páscoa de Jesus, que se manifesta no pão partilhado em comum união para lembrar a todos e todas que não deve faltar alimento e nem dignidade de vida para ninguém. Mas na casa do Grande Capital não há espaço para Jesus e para as pessoas simbolizadas em Lázaro da parábola. Por isso, tomo uma frase de Dom Helder Câmara, para dizer: “Pelo Amor que tenho aos ricos - a quem não devo julgar, a quem não posso julgar e que custaram o sangue de Cristo - eu te peço, Lázaro, não fiques nas escadas e não te deixes enxotar… Irrompe os banquetes adentro, vai provocar náuseas nos saciados convivas. Vai levar-lhes a face desfigurada de Cristo de que tanto precisam sem saber e sem crer…”.

 

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