Por: MpvM | 06 Setembro 2019
Antes de comentar os textos bíblicos eu gostaria de comentar a enorme importância deste projeto - Ministério da Palavra na Voz das Mulheres, não só pela voz, mas pelo olhar que podemos dar a essas leituras. É um olhar das mulheres, que tem um outro lugar de fala, e é desse lugar que venho falar hoje.
E não posso falar em nome de todas as mulheres, posto que também temos experiências muito diferentes, mas essa primeira condição – a de ser mulher – já nos dá a primeira união e o primeiro tombo: somos consideradas inferiores na Igreja para a qual viemos aqui falar... (uma rápida olhada na palavra inferior no dicionário reforça essa afirmação). Quando não se tem os mesmos direitos... acontece a condição de superioridade de alguns..
A reflexão é de Beatriz Gross, leiga. Ela possui mestrado em Teologia Sistemática e graduação em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro - PUC-Rio (2015). Também graduada em Letras - Português e Literaturas pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (1979). Atualmente desenvolve projetos na área da escrita acadêmica na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Coordena a revisão da Enciclopédia Teológica Latino-americana, junto à FAJE, e coordena a equipe de revisão da revista Dignidade Re-Vista, da PUC-Rio, na área de direitos humanos. Tem experiência na área de Teologia, com ênfase em Teologia Sistemática, em revisão de textos de artigos científicos, dissertações e teses, e adequação de linguagem.
Referências bíblicas
1ª Leitura - Sb 9,13-18 (gr.13-18b)
Salmo - Sl 89,3-4.5-6.12-13.14 17 (R.1)
2ª Leitura - Fm 9b-10.12-17
Evangelho - Lc 14,25-33
Não quero fazer uma reflexão-padrão sobre os textos, mas é a construção coletiva dos vários pensares (que gostaria de provocar) que pode nos tornar mais habilitadas para a escuta de Deus... não se trata de repetir as ideias de sempre dos mesmo domingos A, B e C litúrgicos: é preciso sentir as leituras mais na carne discriminada e atacada que temos... é preciso ver o que isso me diz enquanto mulher, ser humano subjugado social e culturalmente (sem falar nos reflexos políticos e econômicos consequentes).
Sb 9,13-18: conhecer a vontade de Deus
“pois que homem conhece o desígnio de Deus?
quem pode conceber o que deseja o Senhor?
os pensamentos dos mortais são tímidos e falíveis os nossos raciocínios
(...) quem rastreará o que está nos céus?"
Lendo isso, a pergunta que faço é: será que os homens que dirigem a Igreja há tantos séculos têm prestado a devida atenção a essa leitura? Sabem eles se realmente é desejo do Senhor que não haja relações de total paridade e igualdade entre homens e mulheres na Igreja? Sabem eles se, com o passar do tempo, também não nos é pedido pelo Senhor (tal qual Paulo faz, na próxima leitura) que olhemos as configurações estagnadas pelo tempo e pelo machismo das nossas sociedades e promovamos um novo olhar sobre as relações que se estabelecem entre nós, seres humanos diferentes uns dos outros por desejo do criador? Não estarão os homens da Igreja mantendo outras escravidões por acharem que conhecem os pensamentos do Senhor de forma absoluta?
Se nós mulheres temos a resposta? Não sei... só sei que temos passado os últimos tempos refletindo sobre nosso papel, dialogando com Deus para fazer valer o que consideramos a sua melhor criação: a criação dos seres humanos livres e amados em igualdade de condições. Temos visto, em várias áreas, da religiosa à científica, da artística à esportiva, e tantas outras, que a mulher se sente sub-representada, tutelada... isso nos têm dado nova voz (ou nova disposição para antigas vozes): será que é esse mesmo o desígnio de Deus para nós? Ou há um monopólio de interpretação (masculina) que nos quer alijar da totalidade da experiência humana?
Fm 9b-10.12-17: a fraternidade nega a dominação
Seguidores de Cristo – discípulos – não devem promover relações de escravização, de submissão e de despersonalização do outro. Não podem sequer compactuar com elas. Paulo indica que o evangelho tem – ou deveria ter – o poder suficiente para fazer com que os discípulos e discípulas, aqueles que realmente seguem os ensinamentos cristãos, não mais promovam, proporcionem ou sejam coniventes com relações que escravizem o ser humano, que o subjuguem à dependência de outro ou mesmo que promovam a injustiça e desigualdade. Não preciso lembrar que as escravidões modernas são as das mulheres, dos LGBTQIs, dos refugiados e dos pobres (e outras tantas que não tem o rosto branco e masculino, normalmente bem instalado em carros e cargos confortáveis). Essas escravidões são sempre incapacitadas de serem alforriadas pelo poder dominante pela sua simples condição de “diferentes”. É importante lembrar que não somos chamados por Jesus Cristo por nossa igualdade de condições sociais, culturais, étnicas ou econômicas. No seguimento de Jesus, não se pode estabelecer relações de dominação, não se pode promover a exclusão de alguém da ceia, não se pode permitir que a diversidade nos coloque em patamares diferentes. A criação divina nos colocou em um mesmo e único patamar: o mundo. Nele é que vem Jesus nos chamar ao discipulado. Como veremos no evangelho de Lucas, Jesus não dá instruções aos apóstolos apenas, Ele chama todos que o acompanhavam naquela caminhada a serem discípulos.
Lc 14,25-33: condições para ser discípulo de Jesus
Havia uma multidão seguindo Jesus, certamente não homogênea: ali estavam pessoas do povo. De comum tinham o desejo de segui-lo, ouvir a sua palavra e praticá-la. Mas certamente eram diferentes entre si, e havia mulheres...
Jesus deixou claras algumas condições para o discipulado e indicou que eram inegociáveis. Aí reside o problema contemporâneo: uma dessas condições (não é retórica, não, embora as condições socioculturais sejam muito diferentes) mexe exatamente com a cultura da propriedade individual... o acúmulo de bens para garantia de uma vida plena... ícone da sociedade contemporânea.
O que se pode dizer? Será que Jesus pedia só a entrega do que tinham? Ou exatamente o que tinham não era condição para serem discípulos?
O que Jesus pede é radicalidade: para segui-lo não se pode escolher com o quê ou com quem ficar... esse compreender radical da missão é que nos mostra como viver o evangelho e construir o Reino. E Jesus indica que não é missão fácil: mostra, em duas parábolas, que isso requer um planejamento, ou seja, a radicalidade deve ser calculada para ser parte integrante da vida do sujeito (não é um faz-de-conta só com o que é leve ou agradável).
Ainda que não se possa, conforme vimos na leitura do livro da Sabedoria, afirmar a vontade de Deus, sabemos que a radicalidade do amor ao próximo é condição para o discipulado... assim como se sabe (e às vezes muitos fingem esquecer) que o próximo é qualquer um, o outro que de mim difere.
Incompreensível é ver como hoje se esquece facilmente dessa indicação de Cristo: atacam-se os diferentes (só por romperem com antigos padrões pré-estabelecidos), atacam-se mulheres por sua suposta fragilidade e inferioridade, atacam-se os pobres e os migrantes... enfim, a radicalidade parece hoje prescindir da palavra amorosa de Deus para seus filhos. É preciso retomarmos a radicalidade pedida por Jesus para viver no amor e no respeito às diferenças, é preciso retomar a radicalidade para promover a igualdade entre todos os seres humanos, para exigir o fim da violência contra as mulheres, é preciso retomar a radicalidade para erradicar a pobreza que nos escraviza uns aos outros enquanto raça humana. É preciso radicalidade para colaborarmos de modo igualitário na construção do Reino.
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23º domingo do tempo comum - Ano C - Mulheres e homens colaborando de modo igualitário na construção do Reino - Instituto Humanitas Unisinos - IHU