09 Dezembro 2013
O Papa Francisco é o primeiro papa filho do Concílio Vaticano II. Ele o "recebeu", não o determinou, nem fez parte dele. Ele foi marcado no modo de habitar a "forma Ecclesiae", no modo de pensar a caridade, no modo de comunicar a fé e no modo de pensar o ministério. O Vaticano II, para ele, foi o horizonte no qual ele especificou a sua vocação, deu os primeiros passos como religioso e como presbítero, interpretou a fé, viveu o chamado episcopal e o seu ministério na Igreja argentina e sul-americana.
Essa é a opinião do teólogo italiano Andrea Grillo, professor ordinário de teologia sacramental e de filosofia da Pontificio Ateneo S. Anselmo, em Roma. Leciona liturgia no Instituto de Liturgia Pastoral da Abadia S. Giustina, em Pádua, e no Instituto Augustinianum, em Roma. O artigo foi publicado no blog Come se non, 27-11-2013. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
Desde as primeiras palavras pronunciadas por Francisco da loggia de São Pedro, na noite de 13 de março passado, todos nós percebemos – ora com espanto, ora com escândalo – algumas novidades surpreendentes, e não foi fácil colocar esse imprevisto "fenômeno novo" na "corrente" dos papas do último século.
O que pode ajudar a fazer as contas com a realidade é a consideração que eu já havia proposto em um post anterior deste blog (La via del Concilio di papa Francesco: abitare, celebrare, incontrare, de 15 de outubro de 2013) e sobre a qual eu gostaria de voltar brevemente.
Com efeito, essas novidades podem ter diversas razões: o primeiro papa que "vem do fim do mundo" traz a Roma uma cultura humana, uma atitude espiritual, modalidades de discurso e de encontro, aspirações e prioridades às quais não estávamos acostumados, de fato.
Mas o motivo principal da surpresa está ligado a um fator geracional pouco considerado. O Papa Francisco é o primeiro papa filho do Concílio Vaticano II. Ele o "recebeu", não o determinou, nem fez parte dele. Ele foi marcado no modo de habitar a "forma Ecclesiae", no modo de pensar a caridade, no modo de comunicar a fé e no modo de pensar o ministério. O Vaticano II, para ele, foi o horizonte no qual ele especificou a sua vocação, deu os primeiros passos como religioso e como presbítero, interpretou a fé, viveu o chamado episcopal e o seu ministério na Igreja argentina e sul-americana.
Para compreender plenamente a continuidade do Papa Francisco com relação aos seus antecessores do século XX – de Pio X a Bento XVI –, é preciso fazer referência a esse dado biográfico e cultural: ele está em continuidade com os seus antecessores como um filho está em continuidade com o pai. Pertencendo a uma "geração diferente" com relação a Bento XVI, é difícil poder bloqueá-lo e fixá-lo sobre as formas papais que o seu antecessor encarnou em plena coerência com a sua própria biografia e com a sua própria história. Mas Francisco vem de outra história, além de outro mundo.
Em particular, é muito curioso que hoje se queira "garantir" a continuidade de Francisco com relação a Bento XVI, forçando o primeiro a "compartilhar" as opiniões que, no segundo, brotavam de "vivências", de "práticas", de "juízos" que são desconhecidas ao novo pontífice. Buscar-se-ia, desse modo, vincular as vivências, as emoções e as experiências às "doutrinas", segundo a pior inclinação (e tentação) intelectualista.
E podem ser consideradas arbitrariamente cartas "ad personam" (como as enviadas ao arcebispo Marchetto ou ao cardeal Brandmüller) como atos "irrevogáveis" de magistério apenas se não se considerar que o verdadeiro "magistério conciliar", para Francisco, não depende das opiniões que ele expressa sobre os estudos em torno do Vaticano II, ou sobre a importância do Concílio de Trento, mas sim do modo solto e aberto com que ele concelebra de manhã, com que encontra os presos ou os emigrantes, com que dialoga com os ateus ou com que ironiza o clericalismo ou a Cúria Romana, com que se refere à pobreza ou convida à liberdade.
A "irreversibilidade" do Concílio, para Francisco, não é uma doutrina, mas sim uma forma de vida.
É esse traço surpreendente que todos captamos, nitidamente, desde a noite de 13 de março. E é esse o lado irreversível do Concílio que se afirma justamente por ocasião do seu 50º aniversário, exatamente no ponto mais alto da hierarquia eclesial. Francisco, com o seu ser e com a sua linguagem, desmente com clareza todas aquelas tentativas "teimosas" de impedir a liberdade do Espírito.
É suficiente ler pacatamente a nova Exortação Apostólica Evangelii Gaudium no número 41 para captar a perspectiva de interpretação que o Papa Francisco nos oferece sobre o Concílio Vaticano II:
41. Ao mesmo tempo, as enormes e velozes mudanças culturais exigem que prestemos uma constante atenção ao tentar expressar as verdades de sempre em uma linguagem que permita reconhecer a sua permanente novidade. Pois, no depósito da doutrina cristã, 'uma coisa é a substância (...) e outra é a formulação que a reveste'. Às vezes, mesmo ouvindo uma linguagem completamente ortodoxa, aquilo que os fiéis recebem, devido à linguagem que eles mesmos utilizam e compreendem, é algo que não corresponde ao verdadeiro Evangelho de Jesus Cristo. Com a santa intenção de lhes comunicar a verdade sobre Deus e sobre o ser humano, em algumas ocasiões, damos-lhes um falso deus ou um ideal humano que não é verdadeiramente cristão. Desse modo, somos fiéis a uma formulação, mas não entregamos a substância. Esse é o risco mais grave. Lembremos que 'a expressão da verdade pode ser multiforme. E a renovação das formas de expressão torna-se necessária para transmitir ao homem de hoje a mensagem evangélica no seu significado imutável'."
Justamente na obstinação com que se quer procurar no Papa Francisco uma "afirmação doutrinal" ou uma "linguagem completamente ortodoxa", que possa desmentir essa forma de vida aberta e serenamente conciliar, manifesta-se um grande paradoxo: o Concílio Vaticano II – que já chegou a tal maturação, a ponto de gerar a forma de vida de um papa – pode permanecer totalmente estranho à compreensão de alguns observadores atentos na medida em que mostrem conhecer bem todos os bastidores, mas não conseguem aceitar o bem que apareceu em cena.
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O primeiro papa ''filho do Vaticano II'' e o debate sobre a descontinuidade. Artigo de Andrea Grillo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU