Por: Jonas | 24 Março 2013
Contrários à percepção de que são os mercados que conquistaram os Estados, ditando as políticas que devem seguir, os pensadores franceses Christian Laval (foto) e Pierre Dardot defendem, no livro “La nueva razón del mundo”, que são os Estados que introduziram na economia, na sociedade e até em seu próprio seio, a lógica da concorrência regida pelo modelo neoliberal.
A exigência da universalização desta lógica ultrapassa as fronteiras do Estado, alcançando diretamente a vida pessoal de cada indivíduo, que se vê obrigado, dentro deste sistema, a estabelecer relações de tipo capitalista consigo mesmo e com os demais.
Conversamos com o professor de sociologia Christian Laval, na sua passagem pela Espanha, em razão da apresentação de seu livro em nosso país.
A entrevista é de Rebeca Mateos Herraiz, publicada no sítio espanhol Periodismohumano, 11-03-2013. A tradução é do Cepat.
Eis a entrevista.
“Não acabamos com o neoliberalismo” é a primeira frase com que nos deparamos antes de começar a ler seu livro. Qual é o erro, de acordo com a sua opinião, de que tal afirmação tenha sido escutada tantas vezes, nos últimos anos, em consequência da crise pela qual atravessamos?
Desde 2008, alguns autores muito famosos, como Joseph Stiglitz, anunciaram o fim do neoliberalismo. Seu diagnóstico defendia que o neoliberalismo iria desaparecer quando descobríssemos as consequências desastrosas para as quais nos conduzia. Em nosso livro, buscamos demonstrar que isto não é assim, partindo de uma análise histórica do neoliberalismo, em que se conclui que além do neoliberalismo ser uma doutrina, é um sistema de normativas em que toda a sociedade está imersa, também aqueles que nos dirigem. Trata-se de um sistema que se impõe tanto aos dirigentes, como aos dirigidos. Hoje em dia, nós o observamos na Europa, com todos os governos, sejam de direita ou de esquerda, que estão se vendo obrigados a seguir as normas que eles próprios ditaram: a regra de ouro do equilíbrio orçamentário, a estabilidade monetária, a luta contra a inflação... Tudo isso está nos levando a consequências sociais desastrosas.
Neste sentido, no livro, vocês afirmam que longe de acarretar um enfraquecimento das políticas neoliberais, a crise levou a um fortalecimento brutal das mesmas. E mais, leio textualmente: “A crença de que a crise financeira é o sopro do fim do capitalismo neoliberal é a pior das crenças”. Explique por que.
A crise do neoliberalismo atrai ainda mais o neoliberalismo. Já estamos muito distantes das predições de 2008, que anunciavam o fim deste sistema. Atualmente, vemos que as normas do neoliberalismo estão mais assentadas na sociedade em que vivemos do que nunca.
“A economia é o método. O objetivo é mudar a alma”. Margareth Thatcher 1988. Este era o espírito do paradigma socioeconômico que iria se hegemonizar no final do século XX até os nossos dias? Em que situação nos deparamos na atualidade?
Daquele período até agora, as coisas pioraram bastante. Como nos aprofundamos mais nas normas neoliberais que governam a sociedade, cada pessoa em si mesma ficou prisioneira desta lógica e, cada vez mais, estamos presos às normas que nos regem atualmente.
Essa é a nova razão-mundo de que vocês falam no livro, que se impõe a todos os âmbitos sociais, inclusive, chegando a atingir a gestão da vida privada de cada um de nós?
Atinge a vida, a gestão do planeta, do equilíbrio das relações sociais... e nos leva a uma situação catastrófica. Por isso, o conceito ‘razão-mundo’ pode ser entendido até num sentido irônico, uma vez que o melhor seria a “desrazão-mundo”, pois com esta lógica chegamos a situações absurdas. Quando utilizamos o termo “razão” é no sentido de uma lógica normativa, uma lógica de normas gerais dentro da construção do sistema hegemônico, em que estamos, e que conseguiu estender para todos os âmbitos sociais a normativa das regras do mercado, regidas pela concorrência. Isto implica na questão de cada um de nós gerenciarmos nossa vida particular, do mesmo modo como se gerencia uma empresa, ou seja, tratando de tirar o máximo rendimento possível, inclusive, nas relações pessoais. Isso implica certa subjetividade que atinge nossa própria intimidade.
Um exemplo disso é a forma como a relação entre os estudantes e os estudos está se transformando. Aumentam as taxas universitárias, considerando-se a educação como um investimento, o que insinua que, posteriormente, terá um retorno financeiro da mesma. Deste modo, é estabelecida uma subjetividade financeira, que faz com que cada um de nós estabeleça, consigo mesmo, uma relação de tipo capitalista. O mesmo ocorre com a moradia e com a saúde, num momento em que tanto se fala do capital saúde. Isto significa que o neoliberalismo se introduziu em todos os âmbitos sociais, até ao ponto de se tornar uma forma de vida.
No livro, vocês afirmam que só entendendo esta complexa racionalidade, poderá se fazer uma verdadeira resistência e encontrar novos caminhos para outro futuro. Neste sentido, em que ponto nos situamos, atualmente, na Europa?
Este tipo de sistema não apela à consciência, muito menos para a adesão. Todos nós estamos dentro da sociedade, ninguém escapa do sistema dominante regido pelas regras neoliberais. Entretanto, para todo sistema dominante existe uma resistência.
O sistema neoliberal é um sistema que funciona de maneira oblíqua, insidiosa, que não passa por mandamentos objetivos enunciados. Uma vez que possui como efeito o fato de que nos obriga a atuar de maneira individual e não coletiva, é muito difícil organizar a resistência. Neste sentido, vivemos continuamente enfrentando situações esquizofrênicas e apresento um exemplo: quando temos a necessidade de escolher um hospital se estamos doentes, como agimos? Apesar de ser a favor da saúde pública, individualmente nos vemos obrigados a escolher um bom hospital, para além do fato de que seja público ou privado. O mesmo acontece na hora de escolher um colégio para nossos filhos, independentemente de que sejamos a favor do ensino público, se não há um colégio público que nos pareça bom, no final, acabaremos apelando ao ensino particular, da maneira como nos apontam as regras do mercado.
Isto é consequência das normas que os próprios governos deram para nossas sociedades, baseadas na concorrência do mercado, abaladas pelo poder executivo e judicial e cujo fim é tirar o máximo rendimento possível de tudo. Diante de uma situação concreta, ao escolher um hospital ou uma universidade, somos obrigados a atuar como homens ou mulheres econômicos e decidimos em função de nosso nível de renda, mesmo se somos a favor da igualdade, com estes conceitos muito bonitos na teoria, mas que na prática, muitas vezes, não desempenhamos porque o sistema nos obriga a atuar como homens ou mulheres econômicos individuais.
Ao contrário do que se nota como uma percepção imediata, de que são os mercados que, do exterior, conquistaram os Estados e lhes ditam as políticas a serem seguidas, certamente, são os Estados – começando pelos mais poderosos – os que introduziram e universalizaram na economia, na sociedade e até em seu próprio seio, a lógica da concorrência e o modelo da empresa. Apresente exemplos concretos que nos ajudem a entendê-lo melhor?
As fronteiras entre o público e o privado desaparecem. O Estado foi quem proporcionou as regras do mercado que, em seguida, se estenderam para outros âmbitos sociais. Erramos quando falamos do poder do capital, pois são os próprios Estados os que dotaram os mercados da lógica que hoje impera. Não é uma causa, mas um efeito. Por exemplo, quem permite as agências de dotação ser a instância de disciplina que são? São os Estados que se apoiam sobre essas agências de dotação para legitimar as políticas que colocaram em marcha.
O ordoliberalismo [forma alemã do neoliberalismo, surgida entre a década de 1930 e 1940, que se estabelecerá, após a guerra, na Alemanha] alemão mostrava que o Estado tinha que atuar para manter a ordem do mercado e isso, hoje, é precisamente o fundamento da União Europeia. O ordoliberalismo se diferencia do neoliberalismo no sentido de que, neste último, os Estados são os que outorgam uma normativa jurídica e política à ordem do mercado, legitimando-lhe e ficando, desta forma, submetidos a ele.
Chega-se à implementação de um princípio inscrito na Constituição Europeia: a concorrência entre as economias europeias, combinando com a existência de uma moeda única gerenciada por um banco central garantidor da estabilidade dos preços.
Marx, Weber e Polanyi já diziam que o mercado não apenas atua, mas sempre é apoiado pelos Estados. As teorias destes autores, distantes de serem anacrônicas, são necessárias para compreender o que acontece atualmente?
Todos estes autores clássicos disseram que os Estados foram chaves para a criação do capitalismo. Existe uma armadilha quando criticamos o neoliberalismo como um fanatismo do mercado, considerando que as regras do mercado surgem de forma espontânea, sem levar em conta o que existe por trás disso, que é toda uma normativa jurídica e política que o dota de sentido e o mantém vivo. Não se deve subestimar o adversário (sorri). Aqueles que continuam dizendo que o mercado se regula por ele mesmo, mostram-nos uma fachada, mas é preciso saber enxergar por trás dela. A Comissão Europeia, a Corte Europeia... são instâncias que dotam de uma normativa jurídica-política o tipo de sociedade que hoje existe na Europa. São os Estados que construíram o sistema neoliberal em que vivemos.
Na França, muitas pessoas descobriram, com este livro, que o sistema neoliberal em que vivemos foi construído, não sendo o que nos querem fazer acreditar: que surge de forma espontânea. Isto demonstra até que ponto nós desconhecíamos nossa história.
Por isso, a necessidade de refundar a Europa, de acordo com o seu livro, não pode se dar por uma instância governamental, nem sequer pode ser monopólio de um Parlamento. Somente pode ser o ato dos próprios cidadãos europeus. Como fazer isto?
Atualmente, não vivemos apenas uma crise econômica e social, vivemos numa crise de refundação da Europa. De forjar os próprios alicerces de uma nova Europa. Toda a rigidez, a disciplina e as normas nos levaram a um tremendo fracasso. A “democracia” europeia foi criada e sustentada sobre o peso da mutilação de uma parte da sociedade. A construção da Europa se realizou mediante uma normativa rígida, baseada na concorrência do mercado, fazendo-nos crer, além disso, que o construído é inamovível e intocável para os cidadãos, tornando a democracia inacessível para a maior parte da sociedade.
Atualmente estamos em pleno processo de revolução democrática. Prova disso é o que os espanhóis chamam de “Democracia Real”, que coloca em julgamento o marco normativo neoliberal. Esta “Democracia Real” implica que os cidadãos têm o direito de mudar o marco normativo legal, quando este é contrário ao que significa a democracia. Existem duas maneiras possíveis para realizar isto: com os responsáveis europeus sendo capazes de reconduzir as regras para favorecer o crescimento econômico e manter o emprego, ou, caso isso não aconteça, haverá uma possível explosão social e política, portanto, histórica. Poderia significar a ruptura do marco normativo em que nos encontramos. Será preciso uma coordenação nacional e internacional de um movimento social, o que quer dizer que a população deverá superar o momento de resignação que vive no seu cotidiano.
O mais difícil será institucionalizar a autonomia diante do sistema, pois, não podemos nos apoiar mais nos partidos políticos, o que supõe que precisamos ser capazes de inventar uma alternativa crível e viável. Estamos diante de uma situação difícil porque as antigas formas de socialismo estão esgotadas, o que faz com que estejamos diante de uma situação curiosa: por um lado, há uma grave crise do neoliberalismo, mas também de alternativa. Daí, a grande tarefa que os intelectuais europeus possuem: por um lado, devemos fazer o que estamos fazendo, realizar uma análise da situação e, por outro lado, estar sintonizados com os movimentos sociais, para trabalharmos juntos na redefinição dos critérios de um mundo pós-capitalista, que não signifique uma regressão nas liberdades individuais e que favoreça o desenvolvimento das capacidades de cada um, para poder viver em harmonia. Há um imenso trabalho intelectual a ser feito ao mesmo tempo em que se desenvolve o movimento democrático e social na rua.
O difícil é que estamos fragmentados e não temos objetivos comuns diante dos quais lutar? Você concorda que a desobediência civil não-violenta organizada deve ser o caminho?
A linha diretriz deve ser a coerência nos objetivos e supõe propor uma alternativa válida a que está vigente. As antigas formas políticas de esquerda, o comunismo e o socialismo, estão esgotadas. Precisamos encontrar novas formas.
Deve haver uma coordenação de lutas, mas também de experiências que sejam distintas e, inclusive, totalmente opostas à lógica dominante. É preciso trabalhar sobre o tema do “comum”, da comunidade. Se o neoliberalismo veio através de um construtivismo, temos que criar novas normas, novas instituições, que se baseiam sobre princípios diferentes. Segundo o nosso ponto de vista [o seu e o de Pierre Dardot, o outro autor do livro “La nueva razón del mundo”], o que faltaria a ser feito é voltar a definir este princípio do ‘comum’, que na teoria histórico-social apareceu em diferentes momentos, podendo se representar como vida humana, livre e dinâmica. Penso, por exemplo, no socialista francês Proudhon, que fazia da própria força coletiva, a essência da sociedade.
Onde a esquerda europeia esteve durante todo este tempo?
Reinventa-se, de vez em quando há novos partidos que aparecem, como o "Frente de Esquerda". Porém, o mais impactante é a descomposição da social-democracia. Ela já não possui espaço próprio, pelo fato de ter participado da construção das regras neoliberais. A França é um claro exemplo disso. Em seus 10 meses, o novo presidente Hollande cumpriu perfeitamente todos os objetivos apontados na Europa: austeridade, competitividade, inflação... e, nesses 10 meses, se esqueceu por completo das promessas eleitorais feitas, que diziam o contrário do que está fazendo.
De acordo com o seu livro, não enfrentamos um simples “desencanto democrático” passageiro, mas uma mudança muito mais radical, cuja grande envergadura se manifesta na “desimbolização” que afeta a política, talvez numa situação como nunca vivida antes pela Europa, desde que alcançou a democracia?
Atualmente, estamos falando de uma saída da democracia. Estamos entrando numa era pós-democrática em nível institucional. Hoje em dia, a democracia se descompôs, já não provoca satisfação à grande maioria dos cidadãos. As políticas democráticas se desarmaram, perderam por completo sua iniciativa própria, apenas seguem ordens que vem do exterior. Porém, não acredito que os povos possam se desfazer deste modelo de estrutura política e social de forma tão simples. Apesar disso, e do fato de que as manifestações são intermitentes e desorganizadas, existe certa revolução social que está em marcha, mesmo não estando coordenada.
Em seu livro não as encontro, mas acredita que existem razões para o otimismo?
Todo sistema hegemônico gera resistência, essa resistência precisa reinventar novas maneiras de atuar, de ser... de forma objetiva. As pessoas sem trabalho, que estão na precariedade mais absoluta, estão se vendo obrigadas a estabelecerem novos laços solidários, o que pode desembocar numa nova explosão social.
Exceto pela distância, como exemplo existe a invenção do socialismo entre 1820-1850, embora sejam momentos históricos muito diferentes que é necessário saber diferenciar. Aguardemos que do “comum”, da nova racionalidade do ‘comum’, seja constituído e elaborado este novo sistema político. Ao longo da história, muitas vezes se pensou na insistência humana, baseada no critério do coletivo e do bem comum. É nisso que temos que pensar no futuro. O comum deve ser algo instituído por regras e se basear na cooperação entre indivíduos, não na concorrência.
Existe um eixo histórico muito importante, desde fins do século XVIII, com o qual temos que nos reconectar, para pensar na nova sociedade como uma coprodução de regras, que serão as mesmas que reorganizam as relações entre indivíduos. Trata-se de voltar a pensar em novas formas sociais a partir de experiências muito concretas, como internautas, jovens artistas... que colocam em comum sistemas de normas não em pequenos comitês, mas em nível social, e assim poder escolher juntos as novas regras democráticas de conduta que regerão a nova sociedade.
A nova racionalização do comum está se elaborando, atualmente, por todas as partes do mundo, apesar de ser ainda imprecisa. Por exemplo, o movimento altermundialista que nos permite repensar o uso do planeta para o bem comum. Existe uma necessidade histórica de reinventar uma nova gestão, porque estamos diante de um sistema produtivista que não é viável, começando pelo fato dos recursos do planeta ser limitados. Há uma obrigação absoluta de inventar algo novo, o que nos dá um impulso de esperança para que a humanidade não se jogue no suicídio coletivo, nas próximas décadas, e atue de maneira revolucionária, não necessariamente violenta. Novas formas de compartilhar o planeta deverão ser inventadas. Isto fará que se chegue numa outra razão-mundo.
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Os Estados construíram o atual sistema neoliberal. Entrevista com Christian Laval - Instituto Humanitas Unisinos - IHU