Por: Jonas | 05 Dezembro 2014
Guy Debord (foto) foi um revolucionário, filósofo, aventureiro, escritor e cineasta francês, nascido em 1931. Fundou o grupo e a revista Internacional Situacionista (IS), considerado por Mario Perniola como “a última vanguarda do século XX”. Em 1967, publicou “A sociedade do espetáculo”, um livro mítico e uma referência de primeira ordem no debate crítico sobre a natureza do capitalismo moderno. “Tudo o que era diretamente vivido, hoje, alheia-se em uma representação”, afirmava Debord na primeira tese do livro. A IS teve uma influência significativa nas linguagens, estéticas, estilos e conteúdos da revolta de Maio de 1968.
Fonte: http://goo.gl/ROrIRY |
Guy Debord tirou a sua vida no dia 30 de novembro de 1994, há 20 anos. Aproveitamos a oportunidade deste aniversário para se voltar sobre a teoria e a prática situacionista. Não apenas de Guy Debord, porque a IS foi uma aventura coletiva com muitas contribuições e diferentes protagonistas. Retomamos essa temática com Luis Navarro, filósofo e ativista, teórico da arte e das redes, que nos anos 1990 foi pioneiro na Espanha no resgate daquela experiência, traduzindo textos, colocando-os em circulação por meio de livros, fanzines e redes como o “Archivo Situacionista Hispano”, estabelecendo contatos entre os documentos e os movimentos críticos vivos naquele momento (insubordinação, ocupação, antiglobalização, etc.). O que foi e o que fica da teoria crítica dos situacionistas sobre a sociedade do espetáculo?
A entrevista é de Amador Fernández-Savater, publicada por El Diario, 29-11-2014. A tradução é do Cepat.
Eis a entrevista.
Em que sentido, você acredita que os situacionistas possuem atualidade, hoje, para além do estudo do passado ou nostalgia?
Eu gosto de contemplar a experiência dos situacionistas, mais do que como um corpus teórico ou um sistema, como um relato, uma espécie de ciclo épico que ilumina as mobilizações que aconteceram desde então, de maio de 1968 até o 15M. Existe um antes e um depois da prática dos situacionistas que a converte em referência imprescindível para todos os movimentos sociais e artísticos, e a chave fundamental está na ruptura consciente com os velhos códigos de representação e a busca experimental de novas formas de política e de produção cultural.
Os velhos códigos de representação, suponho, é o que eles chamavam “sociedade do espetáculo”. O que é o espetáculo?
Assim como Debord nos apresenta, nas sociedades marcadas pelo modo de produção capitalista avançado, o espetáculo é tudo, em sua indefinição e em sua concretização absoluta.
É a forma como nos relacionamos através das imagens que são construídas a partir dos grandes meios de comunicação e não da experiência viva. É a forma como consumimos um menu de mercadorias degradadas e aceitamos uma construção artificial e dirigida do sentido do mundo, como se fosse nosso meio natural.
Na sociedade de massas, o espetáculo cumpre uma função equivalente a que cumpria a religião nas sociedades tradicionais ou a arte na formação do capitalismo. Sua lógica consiste em fazer da representação, que mostra algo mais real que a experiência vivida, algo mais real do que nossas próprias necessidades, reduzindo o indivíduo à condição de espectador passivo na política, na produção e no consumo, na aceitação do estado de coisas existente.
A vida cotidiana como campo de investigação e de batalha
O espetáculo, dizia Debord, é a reconstrução material da ilusão religiosa, o “céu” onde os seres humanos situam seus próprios poderes separados deles, as “nuvens” onde projetamos nossos desejos, capacidades e possibilidades. “Desse modo, é a vida mais terrena que se torna opaca e irrespirável”, concluía. Ao contrário, a aposta dos situacionistas era, acredito, descer das nuvens e retornar a essa vida terrena, torná-la vivível, respirável, intensa. Politizar a vida. Como os situacionistas pesquisaram a vida cotidiana de sua época e buscaram transformá-la? Por meio de quais procedimentos, de quais dispositivos, de quais invenções?
Em sua primeira época, os situacionistas desenvolveram uma série de práticas que – talvez em um excesso de racionalização – pretendiam elevar à condição de técnicas, mas que em seu campo não deixaram de ser, como você bem diz, “procedimentos”. Alguns muito eficazes, como a “deriva” experimental, o passeio sem meta como forma de romper com as rotinas que regem os comportamentos habituais e propiciar experiências inéditas. O “desvio” era a forma de se esquivar dos caminhos estabelecidos, tanto no plano físico como nos textos. A psicogeografia pretendia ser a ciência que explora a relação entre qualidade de vida (de vida interessante) e as condições do ambiente urbano, que serviria para a composição de um “urbanismo unitário”, que integrasse todos os procedimentos técnicos e artísticos conhecidos na construção desse ambiente. Há uma lista interminável de procedimentos que tentaram explorar e aplicar, mas estas seriam suas linhas mestras, junto à construção de situações, ou seja, a produção técnica de acontecimentos.
O que entendiam por “construção de situações”?
Uma situação é um momento da vida capaz de se traduzir em experiência, em conhecimento irredutível que pode se equiparar à vivência do criador no momento de produzir sua obra, ou à contemplação ensimesmada e despreocupada desta. Poderíamos ver a situação como o “tempo estético” fugaz e eterno dos modernos artistas, mas profanado pela vida cotidiana.
Uma situação pode ser espontânea ou construída, ou seja, produto de uma sequência agitada de acontecimentos capaz de gerar sentido em quem os vive, ou resultado de um esboço consciente que aponta para resultados específicos.
Os surrealistas gostavam de decifrar situações espontâneas. Os situacionistas, que eram seus discípulos arrogantes e rebeldes, preferiam esboçar situações e explorar seus efeitos. Uma revolta é uma situação, que media ou não a ação de uma vanguarda. Uma exaltação amorosa é uma situação, provocada ou não pela sedução consciente. Os situacionistas confiavam em produzir tais efeitos aplicando técnicas conscientes, como as enumeradas antes.
Há um impulso utópico muito forte nos situacionistas. Não desejavam a vida como é, mas, sim, como poderia ser. Para eles se tratava, por sua vez e indissociavelmente, de “transformar o mundo e mudar a vida”. O que aconteceu com a imaginação utópica hoje, quando reivindicamos uma casa, um trabalho e uma vida digna?
O contexto mudou sensivelmente. Por muito radicais que fossem os situacionistas em suas ponderações, estes se encontravam em um contexto de desenvolvimento e progresso tecnológico. O que denunciavam era a falta de aplicação deste progresso na conquista de uma vida mais elevada, na libertação do trabalho, na recuperação do entusiasmo da aventura e na integração da criatividade com a vida cotidiana.
Paradoxalmente, hoje, dispomos de maiores avanços tecnológicos, aumentaram os níveis de riqueza, mas nossas vidas ficaram precarizadas até o ponto de ameaçar direitos fundamentais. Para mim, isto não deveria supor um rebaixamento no tom das reivindicações que os situacionistas apresentavam, mas, sim, uma confirmação material da inviabilidade do sistema que atacavam e um convite para explorar outras possibilidades.
Acredito que a reivindicação situacionista de uma vida boa continua sendo operativa nas condições atuais e consegue ser inspiradora apesar de tudo. Para mim, continua ressoando em slogans do 15M, como “A revolução apaixona” ou “Não somos mercadorias nas mãos de políticos e banqueiros”. É verdade que os situacionistas lutavam contra o tédio e a repressão de uma sociedade da abundância e que hoje atuamos em uma situação, ao contrário, de precariedade, mas o problema de fundo só se acentuou: a exploração das condições de existência em benefício do capital concentrado.
Revolução cultural: mudar as formas da experiência
Em 1958, Debord escreveu algumas “teses sobre a revolução cultural”. Foi um dos primeiros textos da IS. Por que uma revolução cultural, como a entendiam, onde a viam?
Um dos acertos dos situacionistas foi colocar a cultura, considerada anteriormente como um epifenômeno ou um efeito superestrutural, no centro da transformação social, e reinterpretar o marxismo à luz dos fenômenos da subjetividade.
Era comum as vanguardas utilizar o termo revolução e buscar uma saída política para suas práticas, com o desejo de romper a distância entre o mundo artístico, objeto de tantas revoluções fugazes, e a vida real, que continuava sendo plana. As tentativas dos situacionistas se inscreviam muito mais na busca da “obra de arte total”, que haveria de ser nem mais e nem menos do que a transformação da sociedade, a criação de situações que não admitissem volta.
Onde você percebe a herança de suas ideias mais propriamente artísticas ou culturais?
A busca de um tipo de prática simbólica capaz de superar os limites da arte e de gerar efeitos vivos teve sua importância na integração de formas performáticas de protesto nos movimentos. O desvio humorístico de mensagens prévias, o uso de memes e slogans ou a produção de pequenos escândalos que funcionam como deslocamentos perceptivos, são ferramentas que foram amplamente utilizadas pelo mundo da contestação. Porém, muitas destas práticas foram amplamente recuperadas também pelos meios de comunicação, que as reformularam e adaptaram a seus próprios fins de entretenimento e dominação.
No momento em que muitas destas práticas foram banalizadas ou se integraram no sentido comum, é preciso aprofundar a ação para que tenha efeitos reais, pensá-la de forma estratégica e não apenas ocorrente. Acredito que o mais importante que ocorreu, desde então, tem a ver com a aposta mais radical de Debord: a geração de uma contracultura capaz de enfrentar o discurso oficial e construir um poder paralelo.
“O estado de duplo poder na cultura”, que dizia Debord.
A opção de Debord na tese era a construção de culturas paralelas às margens do sistema, como os antigos burgos ou os casebres dos arredores, até criar uma situação crítica de enfrentamento e “duplo poder”.
Porém, hoje, essas culturas estão sendo construídas, não tanto no exterior, mas, sim, mediante a apropriação e difusão das ferramentas de comunicação entendidas como armas necessárias dentro do conflito, ou seja, mediante a elaboração de redes de contrainformação, meios de comunicação livres, auto-edição e mais tarde mediante as possibilidades que a internet abriu. Estas experiências romperam com o fluxo unilateral da informação e instauraram nós de crítica que foram muito importantes já no movimento antiglobalização e, depois, no 15M.
O cenário de Sol nos primeiros dias do acampamento, imagino também que em outras praças, constitui para mim o exemplo mais claro do que tenho vivido pessoalmente de criação coletiva de uma situação sem retorno, ou seja, da obra total que rompe todas as separações.
Para além dos situacionistas
De alguma maneira, não há nessa apropriação que as pessoas fazem dos meios de comunicação, que estão ao seu alcance, uma refutação de algumas das teses situacionistas mais importantes? Por exemplo, o desprezo elitista do espectador como um sujeito essencialmente ignorante e passivo; ou o engrandecimento da capacidade de espetáculo do capital, considerada quase onipotente, e que conduz à paranoia, inação, silêncio, não comunicação e ação autorreferencial.
Por um lado, acredito que os situacionistas menosprezaram o papel crítico do espectador em sua interação com os meios de comunicação. O espectador está à disposição de escolher quais tipos de representações determinam suas atuações. Ainda que o marco esteja restringido, sua interação tem a potência material de ampliar esse marco. O que dá sentido à mensagem (ou o que, em outro contexto, explica e realiza a obra de arte) não são os arcanos que o emissor tenha fincado nela, mas, sim, o conteúdo que o receptor é capaz de decifrar e de integrar em seu mundo.
Por outro lado, é certo que as tecnologias de redes mudaram em grande medida o cenário social e permitiram enfrentar com representações alternativas o fluxo unidirecional de informação, a versão única da realidade que os grandes meios de comunicação propõem. Porém, é preciso entender que estas ferramentas, estas tecnologias da informação em cujas coordenadas entendemos a realidade, não são neutras, mas, sim, surgiram em determinado contexto e estão ideologicamente carregadas. Não possuem nelas próprias o componente emancipador, mas, sim, em certas ocasiões atuam como obstáculos.
Um amigo do 15M disse que, nos dias atuais, as máquinas eleitorais “deram um toque no balão da política e o mandaram para o telhado”. Assim, de atores da política cotidiana teríamos voltado a ser espectadores do teatro da representação. Vive-se assim ou se trata de outra paranoia situacionista?
O 15M surgiu com um componente cultural que se instalava em seu núcleo: a crítica da representação, tanto no marco político como no das imagens que oferecem os grandes meios de comunicação, reivindicando uma “democracia real”.
De forma completamente consequente, mas absolutamente surpreendente, organizou-se em assembleias públicas e abertas na rua, recuperando formas de fazer política que acreditamos estar arrasadas pelo “espetáculo”. Construiu uma cidade alternativa em território hostil e todo o universo de valores que poderia fazer com que funcionasse sobre a marcha.
Uma das sensações mais vivas que tenho daqueles dias era esse choque brutal com a realidade, com seu erotismo e sua tragédia, a realidade excessiva que transbordava e inundava qualquer tentativa de canalizar institucionalmente a indignação em forma de partido político. Tudo isto provocou um tecido de organização notável e uma mudança de percepção na sociedade, mas a sensação que o espetáculo projeta é que não se avança nos objetivos fundamentais, e que sem um assalto institucional todos estes esforços ficam em uma nova subcultura.
Podemos aproveitou este vazio procurando subverter as lógicas do espetáculo com um discurso que se aproximava da sensibilidade do 15M, mas conforme avança em seus objetivos, cada vez mais, nós observamos um acondicionamento nestas lógicas que Debord denunciava: personificação do movimento no líder, gestão dos especialistas, retorno do televisivo e abandono da rua, listas abertas, mas opacas, em definitivo, centralização do poder e abandono da pluralidade presente nas redes.
Porém, também é preciso dizer e reconhecer que, neste momento de decomposição do regime de 78, existe um vazio, uma oportunidade histórica, um desejo e uma possibilidade, uma aspiração que é preciso saber como preencher para que não fique frustrada e Podemos interpretou, do seu modo, muito eficazmente tudo isso.
Por último, Luis, como você explica o marcado caráter sectário dos situacionistas, que os levava, uma vez e outra, a se erigir em um Tribunal (dos demais e de si mesmos) com exclusões, expulsões, insultos, etc.? É uma herança terrível.
Acredito que é um efeito das contradições derivadas de sua própria posição na cultura. Apesar de suas propostas neste campo ser radicais e destrutivas, a Internacional Situacionista surge como uma vanguarda artística e o próprio Debord responde ainda ao perfil do artista moderno, esse indivíduo privilegiado que necessita se afirmar na produção de algo novo. Aqui, ainda funciona o folclore das vanguardas, os enfrentamentos entre grupos, a dificuldade para compor uma identidade de movimento baseada em individualidades plurais e, inclusive, o cheiro rançoso da velha política que ainda impregna a tantas organizações.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Guy Debord e a crítica da sociedade do espetáculo. Entrevista com Luis Navarro - Instituto Humanitas Unisinos - IHU