25 Junho 2014
"Em um mundo de egoístas, desprovido de governo central, em que condições pode emergir a cooperação?", pergunta José Eli da Veiga, professor sênior do Instituto de Energia e Ambiente da USP, em artigo publicado pelo jornal Valor, 24-06-2014.
Eis o artigo.
Até o início dos anos 1980 o darwinismo foi amesquinhado pela concepção de que a sobrevivência dos mais aptos só decorreria da feroz competição que caracterizaria a "luta" pela existência. Por oitenta anos foi rejeitada a desviante interpretação das obras de Darwin proposta em "Ajuda Mútua: um Fatr de Evolução", livro com argutas observações sobre a extraordinária cooperação que caracteriza as vidas de abelhas, formigas e vários outros animais, publicado em 1902, no exílio londrino, pelo sessentão príncipe russo Piotr Kropotkin.
Mesmo que não tenha havido reconhecimento explícito, a perspicácia desse expoente do anarquismo começou a ser redimida quando um dos então mais promissores ramos da matemática - a Teoria dos Jogos - foi mobilizado para solucionar uma das questões que mais intrigava os pesquisadores, especialmente os das humanidades: num mundo de egoístas, desprovido de governo central, em que condições pode emergir a cooperação?
Resposta original e persuasiva foi dada em 1981 pelo cientista político da Universidade de Michigan, Robert Axelrod, que três anos depois lançou o hoje clássico "A Evolução da Cooperação" (Ed. Leopardo, 2010). Um livro que deveria tomar o lugar daquelas bíblias gratuitas achadas nos criados-mudos dos hotéis, diz Richard Dawkins, o célebre autor de "O Gene Egoísta" em prefácio à edição de 2006.
A proeza de Axelrod foi executar inéditas simulações computacionais que confirmaram hipóteses formuladas na década anterior por biólogos evolutivos: nepotismo e reciprocidade seriam os dois fatores determinantes da cooperação. Na ausência do primeiro, ela estaria na dependência de um padrão comportamental em que cada um dos atores repete o movimento do outro, reagindo positivamente a atitudes cooperativas e negativamente a gestos hostis.
Ainda em plena Guerra Fria, quando o risco de um "inverno nuclear" exigia a cooperação bipolar entre EUA e URSS, o que poderia fazer mais sucesso do que essa orientação apelidada de "tit-for-tat", título de uma das populares comédias da dupla "O Gordo e o Magro"? Embora seja traduzida por "olho-por-olho, dente-por-dente", essa expressão está mais próxima do "toma-lá-dá-cá", pois é uma estratégia que exige prévio arranque cooperativo.
Como sempre ocorre na ciência, boa resposta a uma grande questão faz com que pipoquem novas dúvidas. Por exemplo: se por mera razão acidental um dos atores falhar em fazer o esperado movimento positivo, isso por si só inviabiliza a continuidade da cooperação? E o que ocorreria quando o esquema de cooperação envolvesse mais do que dois atores? Foram questões como essas que alavancaram o fulgurante avanço da biologia matemática nos últimos vinte anos.
O padrão "toma-lá-dá-cá" hoje não passa de uma das três modalidades de uma das cinco dinâmicas de cooperação evidenciadas.
O "tit-for-tat" é manifestação rudimentar do que passou a ser chamado de "reciprocidade direta". Novas simulações indicaram que eventual passo em falso pode engendrar uma segunda chance, em estratégia apelidada de "toma-lá-dá-cá generoso", a origem evolutiva do perdão.
E desdobramentos ainda mais sofisticados revelaram a existência de uma terceira forma de reciprocidade direta, na qual o agente inverte sua atitude anterior quando nota que as coisas vão mal, mas logo depois volta a cooperar. Algo que já era bem conhecido na etologia como comportamento "Win-Stay, Lose-Shift", comum entre pombos, macacos, ratos e camundongos.
O segundo vetor da cooperação, chamado de "reciprocidade indireta", foi crucial para a evolução da linguagem e para o próprio desenvolvimento do cérebro humano, pois se baseia no fenômeno da reputação. Neste caso, o que condiciona as atitudes dos atores são comportamentos anteriores em relações com terceiros. A cooperação avança quando a probabilidade de um agente se inteirar sobre a reputação do outro compensa o custo/benefício do ato altruísta.
Os demais determinantes da cooperação são as três formas em que ocorre a seleção natural, pois, além da já mencionada nepotista (de parentesco), ela não opera apenas entre indivíduos, mas também entre grupos (multinível) e nas redes (espacial).
Mesmo que as observações acima não sejam suficientes para que se possa ter uma boa ideia das descobertas da biologia matemática no âmbito da dinâmica evolutiva, elas certamente permitem notar que o darwinismo aponta tanto para "luta" quanto para "acomodação" pela existência.
Exposição rigorosa e extremamente amigável desse darwinismo 2.0 está em "SuperCooperators - Altruism, Evolution, and Why We Need Each Other to Succeed" (Free Press, 2011), do austríaco Martin A. Nowak, biólogo matemático que está em Harvard depois de ter brilhado em Oxford e Princeton, e que contou com a inestimável ajuda do jornalista científico britânico Roger Highfield.
Esse sim é um livro que mereceria ser distribuído gratuitamente. Não para substituir bíblias cristãs, mas para promover o entendimento das origens naturais dos códigos de ética de todas as grandes religiões.
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Darwinismo 2.0 - Instituto Humanitas Unisinos - IHU