Por: André | 30 Mai 2014
“O Bispo Francisco não acredita no ‘bem’. Seu projeto de vida, de Igreja e de futuro é a ‘bondade’. Porque só a bondade é digna de fé. Em suma, a bondade não é nada mais – e nada menos – que viver de tal maneira que quem vive comigo, seja quem for, se sinta bem. Esta é a bondade que eu desejo.”
A reflexão é do teólogo José María Castillo, em seu blog Teología sin Censura, 18-05-2014. A tradução é de André Langer.
Eis o artigo.
É um fato que o atual Bispo de Roma, o Papa Francisco, com as coisas que faz e com as que deixa de fazer, está desconcertando muita gente. E, evidentemente, não faltam aqueles que passam do desconcerto ao desengano, à desilusão ou mesmo à indignação. Para que, por exemplo, canonizar no mesmo dia João Paulo II e João XXIII? Se não estava de acordo em elevar aos altares a um deles, por que equilibrou as coisas subindo também o outro? Esses “remendos”!, pensam, podem ser percebidos com frequência. E acabam por não contentar a ninguém.
Com uma consequência que nos deixa mais inquietos. Porque é fatal. Já que, com estes vaivéns – primeiro uma coisa e na sequência outra quase contrária –, são muitos os que se perguntam: “afinal, para onde este homem vai nos levar?” Mais ainda, sabe sequer, com certeza, para onde temos que ir? Se, não faz muito tempo, recebeu Gustavo Gutiérrez e aplaudiu sua Teologia da Libertação, como se explica que agora receba Kiko Argüello e aprove com todas as suas bênçãos o Caminho Neocatecumenal?
Evidentemente, eu sei que este papa colocou em prática um estilo de exercício do papado que pouco ou nada tem a ver com os usos e costumes dos papas anteriores, inclusive João XXIII, que ainda se deixava levar sentado na cadeira gestatória e coroado com a tiara, que era uma cereja no bolo da ostentação e a pompa do papado à moda antiga. Isso, graças a Deus, já acabou. Mas, é evidente que (como pensa muita gente), mudando apenas o estilo de aparecer em público – e isso só até certo ponto –, não vamos chegar muito longe. Não traz à Igreja o que mais necessitamos neste momento e do jeito como as coisas estão em nosso mundo. E na religião.
Não pretendo, como é lógico, apresentar aqui a solução para o problema que acabo de indicar. Entre outras razões, porque eu não sei qual é a solução. De qualquer modo, temos um fato que está à vista de todos, e que para mim, pelo menos, me dá muita luz. É o que quero explicar na sequência.
Para começar, será útil dar-se conta de que “bom” não é o mesmo que “bondade”. Já Nietzsche, na Genealogia da Moral (I, 2), fez com que nos déssemos conta de que o conceito “bom” entranha uma sentença radical: “o juízo ‘bom’ não procede daqueles a quem se dispensa ‘bondade’! Antes, foram ‘os bons’ mesmos, ou seja, os nobres, os poderosos, os homens de posição superior e elevados sentimentos que se sentiram e denominaram a si mesmos e as suas ações como bons, ou seja, como algo de primeira categoria, em contraposição a todo o baixo, abjeto, vulgar e plebeu”. Para onde tudo isso nos leva? Muito simples. Tão simples quanto patético.
É “bom” e está “bem” o que convém aos que têm o poder de fixar o que é bom e está bem. Por exemplo, o que é bom e está bem é uma ditadura, e não uma democracia. Por isso, as leis, os direitos, os privilégios..., tudo isso muda segundo as conveniências de quem tem a faca e o queijo na mão. E em última instância, em uma democracia, não é a mesma coisa se quem está no poder é a esquerda ou a direita. Assim como também não é a mesma coisa governar num regime democrático com maioria absoluta ou tendo que fatiar as decisões para alcançar e manter os pactos com quem pode dar os votos necessários para aprovar determinada lei. Tudo isso é do conhecimento de todos. Mas, muita gente não se dá conta de que isto mostra claramente até que ponto o “bem” e o “mal” dependem de quem tem o poder necessário para decidir e impor o que é bom e o que é mal.
A “bondade” é outra coisa. A bondade é sempre “relacional”. É na relação com os outros, sobretudo na relação com os que menos podem me retribuir, onde mais e melhor se detecta quem age não para conseguir o “bem”, mas porque a “bondade” lhe brota das entranhas. Eu já disse e repito: “o espelho do comportamento ético não é a própria consciência, mas o rosto de quem convive comigo”. E consta que, ao menos assim como eu vejo este assunto, a “bondade” não é a mesma coisa que o “buenismo”. Porque uma bondade que não está edificada sobre a verdade, a justiça, a honradez, a sinceridade e a transparência, não é bondade, mas hipocrisia pura e dura.
Por isso, exatamente pelo que acabo de dizer, em um livro que publiquei há alguns dias, A laicidade do Evangelho, escrevi o seguinte: “A genialidade de Jesus e de seu Evangelho consistiu em deslocar o centro do fato religioso. A vida de Jesus, e o cume daquela vida, que foi sua morte, constituíram o deslocamento do fato central e determinante da religião. Este fato que, desde as suas origens, foi o sacrifício ‘ritual’, ficou transformado pelo sacrifício ‘existencial’”.
“Jesus, com efeito, nem durante sua vida, nem em sua morte, ofereceu “rito” algum. O que Jesus ofereceu foi sua própria “existência”, que foi, em todos os momentos, uma existência para os outros. Por isso se pode (e se deve) afirmar, com todo o direito, que Jesus deslocou o centro da religião. Esse centro deixou de ser o ritual sagrado, com suas cerimônias, seu templo, seu altar e seus sacerdotes e passou a ser o comportamento ético de uma vida que, desde a própria humanidade, contagia humanidade, e desde a sua própria felicidade, contagia felicidade. Desta maneira, a bondade ética substituiu o ritual religioso.”
Nada mais – e nada menos – que isto, é o que nos ficou da religião. E é nisto que se deve centrar a tarefa da Igreja. Na minha maneira de ver as coisas, é exatamente isto que o atual Bispo de Roma, o Papa Francisco, colocou em ação. E por isto, porque o caminho que empreendeu é tão novo quanto desconcertante, eu me pergunto se não temos dificuldades para entendê-lo porque, no fundo, o que não conseguimos entender (e nos dá medo entendê-lo) é a laicidade do Evangelho. O Bispo Francisco não acredita no “bem”. Seu projeto de vida, de Igreja e de futuro é a “bondade”. Porque só a bondade é digna de fé. Em suma, a bondade não é nada mais – e nada menos – que viver de tal maneira que quem vive comigo, seja quem for, se sinta bem. Esta é a bondade que eu desejo.
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O importante não é o bem, mas a bondade - Instituto Humanitas Unisinos - IHU