Por: André | 08 Mai 2014
Em apoio à agonizante indústria da energia nuclear, o conselho editorial do New York Times escreveu um epitáfio involuntário.
A reportagem é de Harvey Wasserman e publicada no sítio Rebelión, 07-05-2014. A tradução é de André Langer.
Publicado na edição de 02 de maio, “As lições corretas de Chernobyl” se retorce e tropeça na própria informação do jornal. Embora de maneira involuntária, finalmente apresenta uma “prudente” mensagem do essencial abandono.
O The Times admite que “o mundo deve fazer o que pode para aumentar a eficiência energética e aproveitar o sol, o vento, as correntes oceânicas e outras fontes renováveis para satisfazer as nossas necessidades de energia em expansão permanente”. O texto provocou 288 comentários antes que os limitassem. Postei um deles no NukeFree.org. Em geral, são muito variados e vale a pena lê-los.
Como o Times segue sendo o jornal de referência, o editorial é uma declaração definitiva sobre uma indústria em perigoso declínio.
Analisemos:
O editorial começa citando a “nova couraça de contenção segura” que está em construção sobre os restos ferventes da unidade 4 de Chernobyl. “Com quase uma década de atraso”, sua conclusão é “uma corrida contra o tempo” devido ao “estado decrépito do sarcófago” construído para conter a radiação.
O fato de que ainda devemos temer Chernobyl mais de 28 anos depois que derreteu e explodiu ressalta o “lado do pesadelo da energia nuclear”.
O fato de que o “vasto escudo de aço” não possa ser concluído a tempo ou que possivelmente nem sequer o problema se resolva, é aterrador, especialmente à luz da “quase bancarrota da Ucrânia”, para não mencionar uma instabilidade política que evoca horríveis imagens de duas guerras quentes e uma fria.
Em meio às crescentes tensões entre Ucrânia, Rússia e o Ocidente, a mídia corporativa evita cuidadosamente falar de Chernobyl. Mas, Bielorússia e Ucrânia há muito tempo estimaram seu custo para seus países em 250 bilhões de dólares para cada um. Um estudo importante fixa as vítimas globais em mais de um milhão de seres humanos.
O The Times disse que o terror de Chernobyl é “mais poderoso do que Three Mile Island antes ou Fukushima depois”.
Three Mile Island sofreu uma explosão e um derretimento do núcleo em 1979. Ainda não se sabe quanta radiação vazou e a quem prejudicou. A indústria nega veementemente que alguém tenha morrido, exatamente como negou que houvesse um derretimento até que uma câmera robótica provou o contrário.
Em Fukushima não há solução à vista. Por pior que tenha sido, Chernobyl foi o derretimento e explosão de um núcleo em apenas um reator soviético em uma área relativamente pouco povoada. Em Fukushima são três fusões de núcleos e quatro explosões em reatores da General Electric projetados nos Estados Unidos, dos quais há cerca de duas dúzias de réplicas exatas que agora operam nos Estados Unidos, junto a construções muito parecidas.
O combustível irradiado continua armazenado perigosamente em piscinas danificadas no ar de Fukushima. Milhares de hastes estão espalhadas no local. Ainda não se sabe a localização exata dos três núcleos derretidos. Pelo menos 300 toneladas de líquido altamente radioativo vazam diariamente ao Oceano Pacífico e os primeiros isótopos estão chegando à costa oeste dos Estados Unidos. Imensos tanques de armazenamento vazam constantemente mais radiação. A força de trabalho do local é mal treinada e fortemente infiltrada pelo crime organizado.
O próprio The Times informou que uma população desesperada e aterrorizada está sendo obrigada a voltar a áreas altamente contaminadas. As crianças estão expostas em massa a significativas doses de radiação. Tendo em conta os horríveis impactos na saúde dos jovens na direção do vento de Chernobyl, há muitos motivos para temer algo ainda pior nos arredores de Fukushima.
Mas, o conselho editorial do Times disse, na sequência: “No entanto, também é notável que estes desastres nucleares civis não tenham superado o fascínio da energia nuclear como fonte de energia limpa e abundante”.
“Atrativo” para quem? Certamente, as corporações com imensos investimentos em energia atômica ainda estão a bordo. A indústria dos combustíveis fósseis investe em tudo e por tudo. E deu-se um extraordinário acesso corporativo à mídia para impulsionar a estranha crença de que a energia nuclear pode ajudar a mitigar o aquecimento global.
Mas, a vasta massa do movimento ecologista global continua sendo firmemente antinuclear. A oposição básica à reabertura de qualquer reator japonês é mais que veemente. Em meio a uma revolução extremamente popular das tecnologias verdes, a opinião pública estadunidense exige os cortes dos subsídios nucleares, o que significa a morte para uma indústria que não pode viver sem eles.
Neste ponto o editorial cai na água: “Apenas a Alemanha sucumbiu ao pânico depois do desastre de Fukushima e começou a eliminar por etapas toda a energia nuclear a favor de imensos investimentos em fontes renováveis como o vento e o sol”.
A transição verde da Alemanha foi discutida durante décadas e se intensificou após Chernobyl. Com um forte apoio popular, a eliminação progressiva, como na Suécia, Itália e muitos outros países europeus (a Dinamarca nunca construiu reatores), esteve durante muito tempo sobre a mesa. O Governo de centro-direita de Merkel finalmente a abraçou não só por causa de Fukushima, mas porque o establishment empresarial alemão decidiu que o caminho verde seria bom para os negócios. Como mostrou o economista Charles Komanoff, ficou comprovado que tinham razão. Apesar das críticas previsíveis de alguns grupos de resistência fósseis/nucleares, a Alemanha fechará seus reatores, como farão, em última instância, todos os outros países. O editorial diz que pode haver “um aumento de emissões de gás estufa”, mas será “temporário”.
Mas, como assinalam alguns na seção de comentários, o Times ignora os próprios impactos do efeito estufa da energia nuclear, especialmente na mineração, transformação e enriquecimento de combustíveis radiativos. Para não mencionar as emissões de calor para a atmosfera e a água de operações regulares e periódicas de derretimentos e explosões. Ou aquelas que envolvem o manejo ainda insolúvel dos resíduos radioativos, tanto em lugares em que houve explosões e onde ainda se encontram milhares de toneladas de hastes de combustíveis irradiados e outros resíduos.
O The Times admite que “o mundo deve fazer o que pode para aumentar a eficiência energética e utilizar o sol, o vento, as correntes oceânicas e outras fontes renováveis para satisfazer as nossas crescentes necessidades de energia”. Mas a visão de uma Terra com energia verde já não é propriedade de um movimento de “solartopia”. Como relataram tempos atrás o Times e outras importantes publicações, Wall Street rechaçou completamente a energia atômica e está investindo bilhões em energias renováveis, especialmente a fotovoltaica (PV), que convertem a energia solar em eletricidade.
Uma revolução tecnológica, financeira e ecológica está a caminho. Talvez o conselho editorial do Times devesse que consultar sua seção financeira.
O editorial cita depois um relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) como uma razão para manter a energia nuclear como “parte da mistura”.
Mas o relatório do IPCC enfatiza os aspectos negativos da energia atômica, sobretudo da segurança, da economia, dos resíduos e da oportunidade. Ele não coloca lastres paralelos na transição para as energias renováveis, que diz que é exequível e realizável dentro do tempo necessário para salvar o Planeta Terra.
Mesmo se a oposição pública se dissolvesse de alguma maneira, as perspectivas técnicas e econômicas de pequenas plantas nucleares modulares ou outras de “quarta geração” não se sustentariam. Com a história de colossais excessos de orçamento e intermináveis atrasos da indústria, este editorial não se preocupa em argumentar a seu favor.
Para que a energia nuclear “desempenhe um papel” na luta contra a mudança climática, a indústria deve manter em linha seus antigos reatores cada vez mais sucateados. Mas, muitas das 400 plantas nucleares comerciais do mundo são mais velhas que o sarcófago em ruínas em Chernobyl.
O regime de Abe, no Japão, quer reabrir os 48 reatores desligados desde o acidente de Fukushima. Mas como informaram a Reuters e outros, 30 ou mais não podem cumprir os atuais requisitos de segurança ou enfrentam muitas barreiras técnicas para reiniciar operações em condições de segurança ou economicamente.
Com mais do dobro de reatores licenciados nos Estados Unidos, é possível que a quantidade de plantas nucleares neste país seja de cerca de 60?
Quatro dessas decrépitas plantas nucleares fecharam no ano passado e, pelo menos mais uma – a de Vermont Yankee –, deve fechar em 2014. Por razões de saúde, segurança, economia e ecologia muitas dessas plantas perigosamente sucateadas estão prestes a fechar.
Mas o editorial do Times defende exatamente essas plantas.
As razões para os fechamentos variam. Em alguns casos, a competição do gás natural barato e de granjas eólicas próximas obrigou os reatores a operar com perdas. Em outros casos, a viabilidade econômica marginal da planta foi prejudicada pelo custo da substituição de geradores de vapor para estender a vida de uma planta ou pelo custo de atualizar sistemas de segurança para atender às novas exigências impostas após o desastre de Fukushima.
Como pede “prudência” antes de fechar mais reatores, temos que perguntar:
O Conselho Editorial do Times quer realmente que ignoremos a necessidade de substituir geradores de vapor inseguros (como em San Onofre da Califórnia) e que só os operemos no estado em que se encontram?
Deveríamos realmente ignorar as “novas exigências impostas após o desastre de Fukushima?
Deveríamos esquecer também que a União de Cientistas Preocupados e outros informam que muitas dessas velhas plantas nucleares não podem cumprir as normas básicas de proteção contra incêndios?
E o que nos dizem sobre os reatores estadunidenses que continuam perigosamente vulneráveis aos terremotos... incluindo as duas de Indian Point, exatamente ao norte da sala de redação do Times?
E esses rio abaixo de grandes represas cuja falha poderia provocar inundações parecidas ao tsunami que inundou Fukushima.
Os editores do Times aprovam tudo isto? Fornecerá a Dama Cinza agora o seguro de desastre radioativo que falta desde 1957?
O editorial nos economiza mais exageros sobre o “renascimento nuclear”. Após uma década em que nos incentivaram a comprar uma frota totalmente nova, agora pedem que sejamos “prudentes” em relação ao fechamento dos velhos rebocadores.
Depois de tudo, não vão nos “assustar” para que desconfiemos de uma indústria que disse durante décadas que os reatores não podiam explodir, mas que agora fez explodir cinco e derreter cinco.
No final deste editorial simbólico, nos dizem que “o grande escudo de Chernobyl também deveria sepultar os temores infundados de utilizar energia nuclear no futuro”.
Bom, já basta.
Com uma década de atraso, milhões de dólares acima do orçamento, sem comprovação tecnológica, ameaçada pela instabilidade política, rodeada de mortos e agonizantes, o único propósito da coberta é conter de alguma forma os futuros danos de um reator falido que já irradiou o planeta, as pessoas na direção do vento, o futuro ecológico e econômico da região.
Se o The New York Times quer ungir a segunda mortalha inconclusa de Chernobyl como o melhor símbolo da indústria atômica de hoje, este editorial é, certamente, o epitáfio adequado.
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O epitáfio involuntário do New York Times para a energia nuclear - Instituto Humanitas Unisinos - IHU