14 Abril 2014
Há vinte anos, um massacre generalizado tomou conta de um dos países mais pobres do mundo. Entre abril e julho de 1994, cerca de 800 mil pessoas morreram no que ficou conhecido como o genocídio de Ruanda, promovido pelo governo de maioria hutu — que visava exterminar uma etnia inteira, os tutsis.
Vinte anos depois, o país continua a se reerguer e tenta trazer de volta todos os que fugiram do conflito. Hoje, 11 milhões de habitantes vivem neste que já foi considerado um dos piores países para se viver. Há cerca de 100 mil refugiados — em sua maioria, mulheres e crianças.
Muitos deles foram para países que fazem fronteira com Ruanda, como República Democrática do Congo, Tanzânia e Burundi. Nas regiões fronteiriças, já não existem mais campos de refugiados para ruandeses. Mas, eles ainda existem no Congo Brazzaville, Zâmbia, Uganda e Malaui.
Porém, como admite o próprio governo, ainda há muita desconfiança e não foi fácil para Ruanda começar a se reconstruir sem o total de sua população.
“Estamos tentando encorajar as pessoas que voltem para casa, queremos usar a força vital da nação para a reconciliação. A filosofia do governo para a reconstrução e unidade é a de erradicar o fenômeno de refugiados e subsidiá-los para que voltem e reconstruam o país”, afirma Serafine Mukantabana, ministra para a Gestão de Desastres e Assuntos de Refugiados. O ministério foi criado em 2010 e Serafine assumiu a pasta há cerca de um ano.
“País se uniu”
Uma nova campanha tem tomado conta dos esforços do governo para sensibilizar e facilitar a repatriação de ruandeses que continuam no exílio.
“Temos um grande programa de reintegração para que eles não temam voltar para casa e que recomecem suas vidas. Chamamos de "Venha e Veja, Volte e Conte". Trazemos ruandeses que vivem fora para viajarem o país e verem as transformações”, explicou.
Na opinião da ministra, a sociedade do país “se uniu”. “Somos hoje um país com uma sociedade unida. Se comparado ao período do genocídio, a sociedade ruandesa como um organismo vivo foi deixada à morte. Não tínhamos esperança que Ruanda pudesse emergir e respirar de novo. Hoje podemos ver que depois de muito esforço, heroísmo e coragem, Ruanda foi capaz de ressuscitar. Apesar de continuar curando as feridas, o país está se recuperando e se esforçando. Até mesmo os sobreviventes estão tentando transcender o que aconteceu com eles”, disse.
Já houve momentos em que um ruandês temia falar sobre sua própria nacionalidade. Serafine garante que tudo mudou e que agora existe certo orgulho nacional.
“Tenho uma grande esperança que o genocídio pode ser evitado, tenho o grande desejo que nenhum genocídio nunca mais aconteça em Ruanda ou em qualquer lugar do mundo. Tentamos ainda quebrar quaisquer barreiras que existam entre ruandeses para erguer uma nova nação sem divisão”, defendeu.
Atentado
O estopim para o genocídio foi um atentado, realizado no dia 7 de abril de 1994, contra o avião do então presidente hutu, Juvenal Habyarimana. A morte dele levou Ruanda a uma guerra civil, que provocou o massacre de centenas de milhares de pessoas por milícias doutrinadas e armadas pelo governo. Famílias inteiras foram assassinadas a sangue frio. Um dos principais rios do país, o Nyabarongo, serviu de transporte para “escoar” centenas de milhares de cadáveres vítimas do genocídio.
As feridas desse período permanecem abertas e as lembranças ainda muito vivas em grande parte da população. Mesmo assim, um grande esforço tem sido feito para mudar o rumo do país.
Entre 2006 e 2011, um milhão de pessoas saiu da pobreza e a expectativa de vida aumentou em dez anos na última década. Mas, mesmo assim, ainda permanece muito baixa: 54 anos para os homens e 57 anos para as mulheres, segundo estimativa das Nações Unidas.
Se, por um lado, é possível ver edifícios comerciais novos, centros de consumo e ruas largas na capital Kigali, por outro, ainda há imagens muito claras de desigualdade. Mais de 60% da população vive abaixo da linha da pobreza, com renda de 500 francos ruandeses, menos de um dólar por dia.
Anastasy Mukagatari, de 82 anos, vive na comunidade rural Kabeza, no distrito de Rwamagana, a cerca de uma hora de distância de Kigali. Dos sete filhos que teve, seis morreram durante o genocídio.
“Estou velha e tenho apenas um filho, os outros estão mortos. Só sobrou um. Eu era produtora rural, mas agora estou velha e não posso mais lavrar a terra. Eu fico aqui porque não tenho outro lugar para ir na vida. Se você quiser me levar, pode me levar. Eu sou obrigada a viver aqui no campo”, lamenta Mukagatari.
O contato inicial com ruandeses que vivem no campo nem sempre é simples, pois a maioria fala apenas o idioma local, o kinyarwanda. A idosa conta que, há cinco anos, deixou de trabalhar na terra, mas em sua pequena propriedade, ainda tem o cultivo de feijão, mandioca e sorgo com a ajuda de vizinhos.
“Não tem outro emprego aqui, as mulheres todas trabalham no campo, não tem mais nenhum outro lugar onde trabalhar. Antes do genocídio, a vida era muito boa, mas depois do genocídio não tem ninguém para nos ajudar, a vida é uma luta”, lamentou.
Lavrar a terra
Em outra comunidade rural chamada Ntarama, ao sudoeste de Kigali, a jovem Louise Muhaenimana, de 24 anos, mãe de dois filhos pequenos – um ainda bebê de poucos meses – trabalha diariamente em seu lote de terra cultivando feijão, banana, mandioca e batata doce. Ela mora em Ntarama desde 2007 e diz que lavrar a terra é o único trabalho que sabe fazer.
Bem perto de seu pedaço de terra fica localizada uma pequena igrejinha de tijolo que leva o mesmo nome da comunidade, Ntarama. A história deste templo correu o mundo, pois, ali, no dia 15 de abril de 1994, 5.000 tutsis foram assassinados dentro e nas redondezas da igreja.
“Muitas pessoas que vivem aqui na região têm parentes que morreram na igreja. Eu tive familiares que morreram em Ntarama, eles estão nas tumbas coletivas”, diz Muhaenimana.
“Não tenho outra escolha, só tenho que aceitar o que aconteceu. “Guardo lembranças, não posso esquecer. Lembro-me de todos os meus familiares que perdi no genocídio. Que isso nunca mais aconteça de novo”, afirma.
Geração pós-genocídio
A geração pós-genocídio cresce em um país com promessas de desenvolvimento. Os jovens de hoje eram muito pequenos em 1994 e apenas ouviram falar do massacre ou lembram de vagos momentos. Muitos, por terem famílias que correram para o exílio, acabaram nascendo fora de seu país.
É o caso de Graci U., de 25 anos. Ela não estava em Ruanda em 1994, pois seus pais haviam se mudado na década de 50 para Uganda.
“Eu não estava em Ruanda em 1994, mas sei de tudo o que aconteceu aqui. Vi muitos filmes, ouvi nas rádios e meus amigos me contaram. Tinha 6 anos quando voltei”, lembrou. Entre conhecidos, ela perdeu um tio que morava em Ruanda.
Hoje, a jovem é estudante universitária em Kigali e há um ano integra o corpo de dança de um importante grupo tradicional, o Inganzo Ngari, um dos mais famosos grupos de dança africana de Ruanda. “Na dança, mostramos nossa cultura. Para nós que fazemos parte de grupos de danças africanas, a cultura é importante para unir e reconciliar o país”, disse.
Colega de Graci, Esperanzi N., de 24 anos, integra desde 2009 o Inganzo Ngari. Ela conta que desde criança gosta de dançar, mas que se profissionalizou quando iniciou seus estudos universitários em tecnologia da informação em Kigali.
Em 1994, ela era uma menina de apenas 4 anos de idade. Por isso, pouca coisa sobrou na memória. “Posso me lembrar de algumas coisas. Eram tempos terríveis. Não é fácil esquecer algo que foi terrível. Depois de 20 anos, as coisas estão mudando de uma forma boa. Isso pode nos ajudar a amenizar um pouco a reduzir a dor daquele período”.
Esperanzi perdeu o pai no genocídio. “As pessoas que foram embora e que perdemos eram preciosas para nós. Perdemos nossas famílias e amigos. Preferimos lembrar e prestar-lhes a homenagem que merecem. Lembrar o passado significa poder construir o país. Só o fato de viver em paz e poder mostrar nossa cultura através da dança para visitantes nos faz diminuir a dor”.
A dançarina espera ver seu país “brilhando” capaz de erguer uma boa reputação, diferente da qual ficou conhecido Ruanda nas últimas décadas.
Poder feminino
Seja na dança ou na zona rural, as mulheres, na opinião da ministra, tem desempenhado um papel importante a promoção da paz e para o desenvolvimento econômico, especialmente a nova geração.
“Posso dizer que a participação das mulheres aqui é uma realidade, Ruanda é o primeiro país da África e do mundo com um grande número de parlamentares mulheres, 64% do Parlamento. Isso é muito significativo. Temos também políticas para o empoderamento delas”, afirmou.
Segundo uma lei definida na recente Constituição de 2003, um terço dos postos de todo o serviço público deve ser ocupado por mulheres. Elas ainda não são maioria nos ministérios do governo nacional, mas de 24 pastas, estão a frente de dez, quase a metade.
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Vinte anos após genocídio, Ruanda ainda tenta trazer refugiados de volta para casa - Instituto Humanitas Unisinos - IHU