Por: Caroline | 22 Janeiro 2014
Lorenzo de Vedia, o padre Toto, é o substituto de padre Pepe na paróquia da Villa 21, parte da villas misérias (favelas) ao sul de Buenos Aires. Do menosprezo a um olhar em que se ressaltam apenas os aspectos negativos,os padres propõem uma “integração urbana” para o bairro, isto é, estabelecer uma relação que seja, em todos os sentidos, para o seu interior e exterior.
A entrevista é de Andrew Graham-Yooll, publicada por Página/12, 20-01-2014. A tradução é do Cepat.
Fonte: http://goo.gl/GeDP8m |
Eis a entrevista.
A cada minuto alguém bate à porta. Cada qual pedindo por algo importante, mesmo que seja um pouco de atenção. Comentamos ao padre Lorenzo de Vedia, ou padre Toto, pároco da igreja da Virgem de Caacupé que, para nós, antes a diversidade de atividades com os vizinhos do bairro não era tão intensa. Respondeu afirmativamente, todavia pontuou que, mesmo que de outra maneira, ela já existia. De qualquer modo, desde a nomeação do cardeal Jorge Bergoglio como papa Francisco I a presença do público teve significativo aumento. “Com isto sim, um pouco mais”, admitiu. Sim, disse ele, desde março, mas isto não se restringe as pessoas da Villa 21. Somaram-se também curiosos, jornalistas, fotógrafos – “eu tenho muita simpatia pelos jornalistas...” – pessoas que queiram conhecer mais. Estes primeiros dias do papa Francisco foram avassaladores. “Pense que um dia, quando tive que ir ao banheiro, não percebi que do outro lado uma pessoa havia entrado, um cinegrafista. Eu ali sentado e este homem querendo direcionar a câmera para me entrevistar. Bem, aí sim cheguei ao limite”. Riu. A conversa transcorreu entre as coisas sérias, o bom humor e as ligações. Sobre a mesa, uma foto do Padre Mugica, que há anos o observa da parede, e três celulares.
Você disse, antes de entrarmos no escritório, que aqui funciona quase como uma administração...
Bem, a paróquia Caacupé funciona dentro da Villa 21 e acaba sendo uma caixa de ressonância das múltiplas situações sociais, humanas, enfim, das coisas que as pessoas daqui vivem. Então, por um lado os padres que estão aqui têm uma percepção muito direta do que as pessoas necessitam (toca um telefone, ele atende...)... É isto - o que acaba de acontecer - ligam muito, necessitam... é assim e é importante que estejamos aqui para responder a cada pedido. Um vem por causa de um morto e precisa saber onde e como fazer os trâmites, porque nenhum escritório o quer... Você viu que antes de entrarmos veio uma vizinha ao escritório da entrada, para pedir um certificado de residência... Do outro, retiraram-lhe a casa e necessita de lâminas de ferro porque está sem... o outro vem para se confessar, outro pede por pão doce, outro precisa de remédios ou o outro que vai a um escritório da cidade para receber algo, mas como há cortes de luz não pode e necessita de alguns pesos... e assim vai. Eu já lhe disse, a paróquia é uma caixa de ressonância para todos os que vivem nestes sessenta hectares. Nós temos um conceito muito diferente ao de um escritório, ou dos gabinetes do governo cujo funcionamento depende da aproximação das pessoas por conta própria, em que elas devem adaptar-se aos seus esquemas de horários, ao que há e ao que não há. Aqui não há horários e, como sempre acontece, nos gabinetes do governo e também aqui, as pessoas que vem são as mais pobres. A realidade vai além dos horários dos escritórios. Aí é onde é importante guiar, ensinar, não fazer as coisas por eles, mas que eles próprios aprendam a fazer. Todos vão para um escritório e lá não são atendidos. Todavia uma paróquia não pode abaixar as cortinas. Além disto, deve-se saber que em um ano como este, onde o as folgas são ampliadas durante os feriados e o mês chega a parecer mais curto, os problemas parecem maiores. Claro o governo, tanto do município quanto da nação, atende-se no bairro - com um distanciamento de pensamento. Eles não estão aqui.
Lembro que quando vieram os políticos em campanha, obviamente em raras ocasiões, com guardas, equipes de apoio, carros...
Macro não vem e nem sequer sabe da nossa rádio FM. A expressiva ausência de políticos se transformou em uma presença interessada cada vez maior. É o que a sociedade necessita, não apenas para dentro do bairro, mas também no seu contato para além dos seus limites. Há seis anos estamos trabalhando com maior ênfase nos laços com o restante do entorno urbano. (Alguém bate a porta e informa que o padre deve falar com...)
A FM, vejo que tem um lindo equipamento no interior da igreja, que alcance tem?
Não sei exatamente, chega a toda a vila, que se estende daqui até dois quilômetros nas quatro direções. A FM chega a todos os limites. Sempre transmite a informação do que acontece no bairro. E, naturalmente, também transmite as missas.
Agora a vida na vila é muito mais intensa do que quando vim pela primeira vez, há dez anos. Quantos padres estão aqui agora?
Mais ou menos o mesmo número de sempre. Somo três padres no momento. Certa vez éramos quatro, agora somo três e temos muito mais atividades que antes. Temos capelas, quatro restaurantes, um colégio secundário, uma escola de ofício, centro de recuperação de dependentes químicos, um lugar para os meninos de ruas ficarem durante o dia, a rádio, um jornal, o centro de convivência para pessoas da terceira idade, mil meninos como escoteiros, acampamentos,...
Mil meninos como escoteiros? São muitos, quantas pessoas são necessárias para organizar e conduzir essa quantidade de meninos?
São conduzidos por cento e trinta jovens que são todos do próprio bairro, isto é, são oito ou nove para cada coordenador. O nosso projeto baseia-se na busca da formação de líderes positivos, tanto jovens quanto adultos que logo poderão ser líderes, no bairro e também além dele.
Pode-se dizer que a administração do bairro é aqui (na porta lateral há um grande galpão adjunto a igreja, no qual há uma chapa azul esmaltada que anuncia que aqui está o Ministério de Justiça da Nação)...
Há um convênio entre a paróquia da Villa e o governo nacional que estabelece um escritório do Ministério da Justiça em cada igreja da paróquia, cujo objetivo é apoiar o acesso a Justiça. Todos os dias há advogados do ministério que trabalham de maneira articulada conosco (tocam os telefones).
Atualmente há uma mobilização, uma integração muito mais moderna e interativa... Antes a Villa era vista como uma ilha perigosa.
Quando eu era pequeno, nas velhas ruas de Buenos Aires, como a Guía Peuser por exemplo, as vilas não eram tidas como tais, mas representavam um espaço verde. Existiam vilas, que não eram tão grandes como as de agora, mas existiam. Ou seja, não é que não existiam as vilas, elas eram subestimadas. Após o ano de 2001, para termos uma data, a sociedade começou a noticiar seriamente a existência das vilas – não que isto não ocorresse antes – mas muita gente perdeu o que tinha e teve que se mudar para uma vila. Hoje em dia, assim como tudo o que se refere às vilas como grupos urbanos, podemos chegar a dizer que está na moda falar das vilas nos programas de televisão. Hoje há, inclusive, séries de TV e o filme Elefante Branco (dir. Pablo Trapero, 2012). Eu creio que a problemática urbana e social das vilas fez com que a sociedade abrisse os olhos. E, de fato, abriram os olhos para as vilas, mas deve-se lembrar de que passamos do menosprezo a um olhar distorcido. Ainda sinto que há um distanciamento. Por exemplo, o que se mostra? A parte que faz barulho na vila, a tomada de terras, o narcotráfico, os perigos... Mas não mostram a parte mais real da vila, os trabalhadores, as riquezas culturais, as humanas, o sentido de solidariedade, as irmandades e vizinhanças, além de observar a condição de exclusão que muitos ali vivem, ressaltando a delinquência, o paco (resíduo da cocaína), entre outros.
Como circula ou como se gerou o temor de que daqui, da Villa 21, sai todo o paco e a cocaína para a cidade? Posso estar exagerando, mas existiu este tipo de rumor e é necessário um mínimo de combustível para fazê-lo continuar.
Eu acredito que há um olhar através do qual se vê, mas de maneira superficial. Vivendo aqui, nós os padres, podemos ver as coisas que acontecem e nossa percepção vai muito além. Não é o mesmo que se vê quando vem uma equipe de televisão. Percebemos tudo o que há de valioso na vila, é possível ver muitas coisas boas e, obviamente, também as más (o telefone toca, ele atende e conversa rapidamente)... As visões parciais e distantes produzem preconceitos, estigmações e, em alguns casos, provocam uma visão ao menos romântica. E existe esta de que somos todos oprimidos, o que eu sei. Também há a visão contrária, a de que somos delinquentes ou ladrões... Quando se vive aqui, pode-se entender que este é um conglomerado urbano onde há gente humilde, há pobreza, como em todo lugar. Há algumas pessoas que enviam seus filhos para escolas particulares, não é a maioria, mas há. Há colégios particulares que dão bolsas a algumas crianças da Villa. Ao poucos, cresce a consciência social que prioriza a educação e eu diria que, em especial sobre a condição da vila, há a busca do que cada um pode fazer para melhorá-la.
E como ela ocorre?
Nós, os padres, selamos um termo de “integração urbana”. Antes falava-se da “erradicação” das vilas, o que não é muito simpático porque significa desalojar, demitir. Depois começou-se a falar em “urbanização”. Nós não gostamos da erradicação e havia a possibilidade de irmos rumo a uma urbanização, todavia ela soa como uma espécie de colonialismo. Quem acreditaria que poderia estar na posição de “estou urbanizando”? Propomos a “integração urbana”, segundo a qual a Villa tem muito para dar a toda à cidade e também a cidade pode contribuir muito para a Villa.
Em certa época a Villa 21 parecia muito dividia, não sei se em termos políticos ou sociais, mas as próprias pessoas diziam que sentiam que estavam dividas.
Digamos que quando padre Pepe começou aqui, a Villa 21 estava muito divida, em diferentes setores. Pepe começou a se envolver nestes setores, circulando de um ao outro, falando com as pessoas. Nós nos propusemos a sermos pastores e guias, e muito foi realizado.
Qual o legado do padre Pepe? Encontramos-nos com ele há pouco tempo, em um evento social, mas há muito tempo que não o via. (Batem a porta, informam a Toto que deve-se comprar pão na escola de ofícios, antes que feche. O padre tira um bloco de pequenos bilhetes do bolso e o entrega ao homem).
Deixou uma paróquia organizada do ponto de vista comunitário, pastoral, evangelizador. Estabeleceu as linhas, a marca de um trabalho com a missão do encontro com o povo, aberto às pessoas. Para nós a evangelização e promoção social são duas faces de uma mesma moeda.
Há um grande envolvimento nos novos cultos? A sua presença é grande?
Os novos cultos pescam no tanque que nós católicos deixamos quando vamos dormir. Nos lugares onde a Igreja Católica se move os cultos não prosperam. Dentro de tudo que fazemos todos os dias, não resta a eles muito lugar. Existem muitos, mas não prosperam, não têm uma influência como ocorre, lamentavelmente, em outros lugares. Todavia isto ocorre onde a igreja está adormecida, por diferentes motivos, claro. Na grande Buenos Aires, existem muitos bairros onde eles estão se expandindo.
Como a nomeação do novo Papa pode afetar ou ajudar o trabalho de vocês na Villa?
Para mim, Bergoglio, Francisco I, não é apenas ele. Teve a genialidade de saber se expressar e a capacidade de se mover, para chegar onde está. Mas o essencial é que encarna um sentimento bom e um modo de ser da igreja que desejamos há muito tempo na América Latina. Pode-se dizer que isto é fruto do Concílio Vaticano II, da encíclica de Paulo VI aos dez anos do Concílio, após a Carta dos Bispos do Terceiro Mundo, em Medellín, que ainda é muito importante hoje em dia. Bergoglio, que é parte desta história e encarna este processo, é o que, há tempos, produz o grande sentido popular. “Isto é o que estávamos querendo”: uma igreja mais sensível, mais austera, mais despojada das amarras trazidas pela história, mais atuante, com menos requisitos. Sim, surpreende que isto esteja ocorrendo no Vaticano. Muitos já queriam expressar isto, sejamos honestos, mas não foram capazes, ou não conseguiram fazê-lo, ou se deram conta de que não estavam bem com o que estavam fazendo. Bergoglio tem muitas qualidades que o permitiram se colocar no lugar onde está... Para nós é bom porque é um alento para continuarmos nosso trabalho. Nós nos sentimos herdeiros de Medellín, pela continuidade do período histórico. Eu era menino, obviamente, mas fui igualmente influenciado em minha formação.
Ainda é restrita a compreensão do que está ocorrendo na Igreja?
Depende do que se entenda por “restrita”. Aqui, na Villa, já sentia-se que uma pastoral mais aberta e mais popular viria. Outros necessitam que o Papa o diga claramente, entretanto aqui o povo já sentia que as mudanças viriam. O que podemos chamar de audácias de agora, é parte da Igreja de amanhã.
Há muito sobre o que se falar, mas acredito que você tem muito que fazer e quer que eu me vá, não?
Não, eu não quero que se vá, mas há meia hora eu deveria estar no outro lado da Villa, em Pepirí, e vou me atrasar.
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“Passamos do menosprezo a um olhar distorcido”, diz padre sobre as favelas argentinas - Instituto Humanitas Unisinos - IHU