11 Dezembro 2015
"Em sua bula papal onde anunciou o Jubileu, Francisco fez referência à ênfase, tanto do Islã quanto do judaísmo, à misericórdia divina, ao escrever: “A misericórdia possui uma valência que ultrapassa as fronteiras da Igreja”. Ele urgiu aos católicos para que usem o Ano da Misericórdia como uma oportunidade para aprender sobre o Islã e outras religiões", escreve Jordan Denari, em artigo publicado por National Catholic Reporter, 08-12-2015. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
Eis o artigo.
O dia 8 de dezembro marcou a abertura do Jubileu da Misericórdia, celebração da compaixão de Deus que durará um ano. O Papa Francisco, que fez da misericórdia o tema central de seu papado, espera que este ano seja um “verdadeiro momento de encontro com a misericórdia de Deus”. Uma forma que os católicos podem se tornar melhor familiarizados com esta misericórdia divina é indo deliberadamente ao encontro de uma outra religião que tem esta mesma misericórdia com um foco central seu: o Islã.
Confrontados com as imagens na imprensa noticiosa que mostram a violência e bandeiras pretas no Oriente Médio, a última coisa que muitos católicos podem associar ao Islã é a misericórdia. À parte de saber da oração frequente e do jejum por ocasião do mês do Ramadã praticado pelos muçulmanos, a maioria desconhece as práticas religiosas islâmicas – mais ainda as suas crenças a respeito de Deus. Mas escrita no começo de cada capítulo do Alcorão, exceto em um, e recitada pelos muçulmanos no início de cada refeição, oração e tarefa, encontra-se a invocação Bismillah al-Rahman al-Rahim, que pode ser traduzida por “Em nome de Deus, o Clemente, o Misericordioso”.
Em sua bula papal onde anunciou o Jubileu, Francisco fez referência à ênfase, tanto do Islã quanto do judaísmo, à misericórdia divina, ao escrever: “A misericórdia possui uma valência que ultrapassa as fronteiras da Igreja”. Ele urgiu aos católicos para que usem o Ano da Misericórdia como uma oportunidade para aprender sobre o Islã e outras religiões a fim de “[eliminar] todas as formas de fechamento e desprezo […] violência e discriminação”.
Como um pai
Conforme Francisco tem descrito em homilias ao longo de seu papado, a misericórdia divina não é simplesmente ter piedade ou perdão após fazermos feito algo de errado. Em vez disso, a misericórdia é a disposição fundamental de Deus para com a criação, um amor parental que se estende a todos. Isso também é verdadeiro no Islã.
Os muçulmanos não se referem a Deus como “Pai”, porém a natureza parental de Deus no Islã fica clara quando analisamos as raízes árabes da palavra equivalente a misericórdia: rahmah. Esta palavra – e os nomes para Deus al-Rahman (o Clemente) e al-Rahim (o Misericordioso) – deriva de rahm, a palavra árabe para o ventre de uma mãe. O Profeta Maomé comparou o rahmah [a clemência] de Deus ao ventre de uma mãe que amamenta.
No Alcorão, Deus identifica o rahmah – termo que os muçulmanos também traduzem como graça, compaixão e bondade amorosa – como o seu principal atributo, e diz que o nome al-Rahman [o Clemente] não é outra coisa senão um sinônimo de Allah, palavra árabe para Deus. Em um famoso hadith, ou preceito, Maomé diz a seus seguidores que Deus tem mais misericórdia para com os seus servos do que uma mãe tem para com o seu filho.
Tanto para os cristãos como para os muçulmanos, a misericórdia divina também se caracteriza pela paciência infinita e por um trabalho social constante para com a humanidade desobediente.
Francisco cita frequentemente a parábola do Filho Pródigo, ou, como o Papa Francisco diz, a história do “pai misericordioso”. Nela, um jovem afasta-se de sua família, abandonando o seu pai já idoso passando a viver uma vida de egoísmo. Depois de ter gastado totalmente o seu dinheiro, volta envergonhado para o seu lar.
Conforme diz a Bíblia, “quando ainda [o filho] estava longe, o pai o avistou e teve compaixão. Saiu correndo, o abraçou e o cobriu de beijos”.
Um preceito muitas vezes citado de Maomé ecoa esta imagem de Deus: “Deus diz: ‘Se ele vem um côvado mais perto de mim, eu vou a uma distância de dois braços abertos mais próximos a ele, e se ele vem a mim andando, eu vou com ele correndo”.
A qualidade materna da misericórdia de Deus no Islã também fala à criação divina e à sustentação do universo. Todas as coisas foram criadas por Deus, quem, conforme colocou o mestre espiritual Ibn Arabi, “misericordiou” o universo para dentro da existência.
A compaixão infinita de Deus (Alcorão 7,156) abraça o mundo inteiro (como o ventre de uma mãe), e os seus atributos se manifestam parcialmente em suas criaturas, em especial nos humanos.
Essa misericórdia divina universal, a qual flui constantemente, faz paralelo também com o que os estudiosos do Islã chamam de a misericórdia particular ou secundária de Deus, a qual é dada em resposta aos esforços dos humanos em viver como Deus quer. Esta misericórdia especial (em última análise, alcançada na salvação ao final da vida) não está garantida, visto que os humanos são livres para se afastar do cuidado universal divino.
Mesmo assim, como um pai paciente, Deus constantemente oferece misericórdia, o que, conforme Maomé descreveu, sempre “prevalece” sobre sua ira.
Modelo de misericórdia
Os muçulmanos igualmente creem que a misericórdia divina se manifestou através de mensageiros que transmitiram a sua revelação à humanidade. Estes mensageiros incluem muitas figuras que são familiares aos cristãos, tais como Abraão, Moisés, Jesus e Maomé, de quem Deus diz no Alcorão: “Nós não te enviamos [Maomé], senão para ser misericórdia em todo o universo” (Alcorão 21,107).
Para os muçulmanos, Maomé é o modelo de uma vida misericordiosa. Eles observam o seu exemplo de rahmah [clemência] junto aos animais, aos idosos, aos seus netos e a todos aqueles com quem ele se encontrou para tê-lo [Maomé] como um modelo em suas próprias vidas, esforçando-se em imitar a sua natureza cuidadosa e para ser uma misericórdia para o seu próprio universo.
A iniciativa educacional online “CelebrateMercy”, iniciada pelos muçulmanos americanos, busca compartilhar a vida e o legado de Maomé não só com os muçulmanos como também com aqueles que somente conhecem os estereótipos negativos do Islã e seu profeta.
Ao aprender sobre a centralidade da misericórdia no Islã, nós católicos podemos nos tornar mais conscientes da ênfase na misericórdia em nossa própria tradição, encontrando semelhanças na tradição islâmica em passagens como esta daqui, em Isaías: “Mas pode a mãe se esquecer do seu nenê, pode ela deixar de ter amor pelo filho de suas entranhas? Ainda que ela se esqueça, eu não me esquecerei de você”.
Este Ano da Misericórdia é um momento para os católicos reencontrarem o rahmah [a clemência] de Deus por meio das nossas próprias Escrituras e tradição, mas também por meio da religião dos nossos irmãos e irmãs muçulmanos. O que iremos descobrir é que, mesmo com as diferenças doutrinais, muçulmanos e cristãos compartilham de uma crença nuclear em um Deus que se aproxima de toda a criação com a bondade amorosa de um pai, de uma mãe.
Talvez então nós nos vejamos iniciando cada oração, cada tarefa e cada refeição com uma invocação da misericórdia de Deus em nossos lábios.
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Ano da Misericórdia: um momento para aprender sobre o Islã - Instituto Humanitas Unisinos - IHU