06 Abril 2015
Em 2006, em meio à atuação das forças de segurança pública nas áreas de favela do Rio de Janeiro com o objetivo de combater o narcotráfico, começou a circular na mídia um novo nome para se referir à polícia: milícia. O termo, define o dicionário, diz respeito à vida ou à força militar; à força militar de um país ou a qualquer corporação sujeita à organização e disciplina militares.
A reportagem é de Marta Avancini, publicada pelo jornal da Unicamp, 30-03-2015.
No entanto, a atribuição dessa denominação à polícia naquele contexto remete a uma contradição, relacionada às práticas adotadas por alguns policiais da corporação: invés de efetuar procedimentos legais cabíveis (executar mandados judiciais e prisões), alguns policiais incorporaram práticas ilegais - como a expulsão e até execução sumária daqueles considerados inimigos -, com o objetivo de se estabelecer o domínio nesse espaço.
Mais do que isso, vencido o combate, a polícia, então denominada milícia, passava a controlar ilegalmente as relações comerciais e sociais das áreas de favelas, em nome do enfrentamento da criminalidade.
Esse foi o cenário que levou a linguista Greciely Cristina da Costa a se perguntar: por que chamar a polícia de milícia? A pergunta foi o ponto de partida para uma pesquisa que resultou em sua tese de doutorado defendido no Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) e, posteriormente, no livro “Sentidos de Milícia – Entre a Lei e o Crime”, lançado pela Editora da Unicamp.
“Meu objetivo não era investigar um discurso da e sobre a criminalidade. Queria compreender o funcionamento da contradição na sociedade a partir de discursos, cujos efeitos de sentido derivam de certas condições de produção e significação”, explica Greciely, que foi orientada pela professora e pesquisadora na área de linguística Eni Puccinelli Orlandi.
Dubiedade em evidência
A contradição, no caso, se manifesta nas fronteiras dúbias entre o legal e o ilegal, caracterizadas nos modos de atuação policial, ao assumir o controle das áreas favelizadas. “Diante dessa conjuntura social, histórica, política e ideológica, o limite entre aquele sujeito considerado bandido e o outro considerado criminoso é extrapolado a ponto de seus sentidos tornarem-se indistintos”, aprofunda a pesquisadora.
Assim, os sentidos de paz, proteção, ordem, segurança, crime, lei etc. são os mais diferentes e apontam para uma contradição. Ou para a existência de “dois mundos em um só”, nos termos de Michel Pêcheux, filósofo francês, fundador da Análise de Discurso, perspectiva teórica que norteia a pesquisa de Greciely.
Para Pêcheux, uma palavra ou expressão não tem sentido intrínseco a ela. Diferentemente, seu sentido se constitui nas relações que mantém com outras palavras. O autor considera ainda que o sentido é determinado pelas posições ideológicas. Estas, por sua vez, se constituem na relação com a exterioridade, numa dada conjuntura sócio-histórica.
“Dentre as múltiplas práticas de violência que temos acompanhado no Brasil e no mundo, Greciely analisa algumas bastante sensíveis do ponto de vista social, histórico e simbólico, justamente porque tratam de nossa segurança”, analisa Eni Orlandi.
Em seu trabalho, complementa a orientadora, a pesquisadora põe em cena a tensão entre o legítimo, o legal e o ilegal. “É um trabalho que fala de sentidos que saem do lugar quando o enquadramento do espaço é a favela, e o imaginário da segurança e da criminalidade fazem funcionar o discurso da milícia”, conclui Eni.
Para construir a pesquisa, Greciely se valeu de um conjunto diversificado de fontes. Inicialmente, a pesquisadora se deteve sobre a compreensão do modo como milícia era definida em diferentes discursos – o da mídia, o de pesquisadores e o de moradores do Rio de Janeiro.
Depois, incorporou à análise o discurso jurídico, enfocando algumas proposições e leis aprovadas relacionadas à tipificação da formação e atuação de milícias e investigou a forma pela qual a milícia era significada por imagens na internet, além de definições em dicionários e enciclopédias virtuais, como a Wikipedia.
Por fim, analisou entrevistas realizadas com moradores das favelas e áreas controladas por milícias e notícias publicadas nos jornais “O Globo” e “O Dia” que mencionavam a palavra milícia, publicadas entre janeiro de 2005 e setembro de 2007.
As entrevistas haviam sido realizadas por pesquisadores do Laboratório de Análise da Violência (LAV) da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ). Tanto as entrevistas quanto as matérias jornalísticas foram cedidas a Greciely pelo pesquisador Ignacio Cano, que integra o laboratório, e havia usado esse material em seus estudos.
Uma dupla violência
Os discursos dos moradores foram importantes para o delineamento da pesquisa, assinala Greciely. Ela tomou contato com os discursos dos moradores das favelas num artigo publicado por Ignacio Cano e Carolina Ioot numa coletânea sobre o tema.
“Em um dos fragmentos apresentados, o entrevistado relata que no meio dos policiais havia milicianos, e que a comunidade ficava muito confusa, pois não sabia se eles cumpriam o papel de polícia ou de milícia”, conta ela. Ou seja, a confusão residia na dificuldade de distinguir como um mesmo sujeito podia ocupar a posição de policial e miliciano, caracterizando uma contradição.
Esse tipo de percepção, enunciada no discurso do morador da favela, remete ao lugar difuso e ambíguo ocupado pelos milicianos. Existem os policiais que, além de milicianos, são moradores da favela – ou seja, são de “de dentro”, muitas vezes significados como “protetor”, chamados pelos entrevistados de “polícia-morador”, que “toma conta da comunidade”. Em contrapartida, há aqueles que vêm de fora, denominado miliciano e significados como “invasor”, aquele que “toma a comunidade”.
Outro entrevistado enfatiza a dificuldade de distinguir polícia e milícia, enunciando repetidamente, segundo Greciely, que “ninguém sabe dizer” o que é milícia e o que é polícia. Ao final, ele conclui que os próprios milicianos são policiais.
Para Greciely, este discurso remete ao que ela caracteriza como “lugar de indistinção” ocupado pelo miliciano, pois ele é dois no espaço de um, conforme analisa Eni Orlandi no livro “Interpretação: Autoria, leitura e efeitos do trabalho simbólico”. A indistinção, que na fala aparece como “ninguém sabe dizer”, estaria relacionada ao próprio funcionamento ambíguo da milícia, podendo ser parafraseada por “ninguém pode dizer”.
Ou seja, ninguém pode dizer que a milícia é formada por policiais, constituída por agentes da Lei, do Estado. “Grosso modo é possível afirmar que a milícia ocupa um lugar habitado pela duplicidade da presença-ausência do Estado”, defende a pesquisadora.
Segundo Eni Orlandi, a milícia assume, na análise da autora, “o lugar da autoridade”, que pode significar a presença da segurança e, também é “lugar do crime”, já que este deixa de ser considerado como o lugar do criminoso, pois se aloja no lugar da autoridade.
“A criminalização do espaço da favela é correlata, desse modo, à imagem da milícia como prática de segurança”, ressalta Eni.
Essa duplicidade caracteriza uma dupla violência contra os moradores das favelas: a ausência e a presença do Estado. Novamente, é o discurso de um entrevistado que aporta essa percepção.
“O lugar do morador é marcado pela exposição à violência, pela dupla violência engendrada pela presença-ausência do Estado, pela negação de direitos, pela imposição de dispositivos normativos específicos que derivam da própria Lei, pelo espaço de negações, cujos sentidos são atualizados por certos dizeres sobre a favela face a um imaginário estereotipado, sustentado por uma imagem marginalizante”, aprofunda Greciely.
Embora esteja no meio – ao lado da impunidade e da violência, entre os sentidos embaralhados de lei e de crime – o morador é um sujeito capaz de inventar, resistir e de se deslocar conforme novos sentidos lhe são possíveis. A resistência por parte do morador se configura quando ele procura escapar desses sentidos, não significando seu espaço como favela, uma vez que dizer favela é atribuir certos sentidos negativos a esse espaço.
Isso acontece também quando a favela passa a ser chamada de “comunidade”, ou “aglomerados subnormais” (para o IBGE), ou “bolsões de pobreza” (para os especialistas). A troca de nomes, porém, não acarreta a mudança das práticas. “A repressão é o que é oferecido ao morador, seja em que nome ele se envelope”, afirma Eni.
Sentidos tênues e tensionados
A partir da análise dos discursos, à luz das teorias e perspectivas propostas por Michel Pêcheux e Eni Orlandi, a pesquisadora observou que a milícia é interpretada como domínio -, ao passo que o termo controle é associado à policia, e comando é vinculado ao narcotráfico.
Segundo ela, a interpretação da milícia como domínio aparece tanto no discurso dos moradores das favelas, quanto nos outros tipos de documento analisados. Greciely explica que domínio dá sentido à milícia a partir de duas instâncias: domínio arbitrário, imposto, forçado, violento, sem possibilidade de oposição; e domínio instaurado como autoridade, gestor, poder legítimo.
“Essas duas instâncias de significação em confronto me permitiram compreender o quão difícil é suportar o fato de que a milícia não se configura como um poder paralelo como é o do narcotráfico. Ao contrário, é um desdobramento da polícia, que se forma e atua à sombra do Estado”, analisa.
E como a milícia assume essa configuração num espaço marginalizado como a favela, ela impõe seu domínio, tornando-se invisível. “Ou melhor, tornando indizível essa sua configuração, a sua real existência”. A decorrência dessa configuração (de invisibilidade) é a dificuldade de puni-la, condená-la e bani-la, já que é como se ela não existisse na realidade.
Eis a entrevista.
Não sabe se os milicianos estão ali para cumprir seu papel de polícia ou se estão ali para entrar. Depois que a milícia saiu, vê se meu raciocínio está correto, o tráfico retornou.
Retomou.
E agora a polícia está fazendo essas incursões periódicas e tem esse posto lá.
Isso. Lá. Só que tem milicianos que frequentam no meio desses policiais [sic]. Então a comunidade fica muito confusa. Você está me entendendo? Fica muito confusa. Se ele está cumprindo o papel dele de polícia [sic] ou de milícia.
Lá existe a milícia... o poder paralelo expulsou, né?... eu atuava na comunidade, e lá cerca de quatro anos atrás a milícia expulsou esse poder paralelo. Prontamente algumas pessoas morreram, e hoje eles fazem a segurança do local.
[A milícia] É a mesma coisa; mesma coisa, só que pior porque o tráfico não cobra e eles são piores que eles cobram, eles têm o império deles lá.
Já colocaram eles como autoridade, tem essa referência – vou falar com os meninos -, então a gente fica até assim, porque eu sou uma pessoa que ainda acredita na instituição da polícia, entendeu? E nós somos muito assim... sentimos muito a falta de autoridade dentro das comunidades, entendeu? Em nossos bairros, em nossos municípios, eu acho que o que está faltando é isso, essa autoridade, mas eu posso te dizer que a maior ausência do Estado está na corrupção porque nós, na época que eu morava lá, que o tráfico ainda existia, nós víamos contêiner entrando lá pra dentro e muitas das vezes víamos viatura acompanhando, né? Infelizmente essas coisas acontecem.
Continua em sem se ver [a polícia], só nessa forma de milícia. Você sabe que são policiais militares, mas que não têm identificação nenhuma de policiais militares e a polícia propriamente não aparece.
[...] parece que você é vigiada 24 horas, você é monitorada.
Por que você tem essa sensação?
Porque eles vigiam muito as pessoas...
Eles quem?
Os milicianos (muda o tom, fica mais baixo).
Mas eles se apresentaram pra você?
Eles se apresentaram porque eu tinha um trailer lá, tinha um negócio lá e eles se apresentaram pra receber semanalmente o meu dinheiro. Na época eles me pediram trinta reais por semana.
[...]
Você fechou a sua barraquinha especificamente por causa disso?
Por causa disso. Eu não aceito dar dinheiro a eles. Se você trabalha, você precisa receber, não pagar.
[...]
Como é que eles resolvem essas coisas?
Quando tem alguma morte, eles matam alguém, alguma coisa, fica tudo... você não vê nada, não sai nada na imprensa, as pessoas só sabem que foram eles que mataram, mas fica tudo por isso mesmo...
[...]
É uma máfia, um quartel a bem da verdade.
Sinopse:
Este livro se fundamenta teoricamente na Análise de Discurso e busca compreender o funcionamento da denominação milícia em diferentes discursos tendo em vista o processo de produção de efeitos de evidência posto em movimento pela ideologia. Ao longo da compreensão empreendida, considerando a denominação enquanto mecanismo ideológico, quatro pontos principais são observados: 1) em certa instância, a denominação milícia recobre a violência policial ao dar outro nome à polícia, desvinculando a milícia da instituição policial; 2) por outro lado, é o lugar de policial que configura e sustenta o sentido de milícia enquanto protetora; 3) todavia, ela tem sua prática associada a grupos criminosos, por isso é então significada como criminosa, um desdobramento da polícia; 4) e, por fim, a existência da milícia estaria ligada a um espaço material político-simbólico determinado: a favela, pois é nesse espaço que ela se impõe.
Autora: Greciely Cristina da Costa é doutora em Linguística pelo Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas. Fez estágio doutoral na Université de Paris 13. Tem publicado artigos e capítulos de livros na área de Análise de Discurso. Organizou com Débora Massmann a coletânea Linguagem e Historicidade, publicada pela RG Editores, e traduziu o livro Os pré-discursos: Sentido, memória, cognição, de Marie-Anne Paveau, pela Editora Pontes, também em parceria com Débora Massmann.
O livro "Sentido de milícia"
Autora: Grecily Cristina da Costa
Editora da Unicamp
Páginas: 240
Preço: R$ 44,00
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Por que chamar a polícia de milícia? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU