28 Janeiro 2015
"D. Romero foi 'evento teológico'", assevera Rowan Williams, o arcebispo emérito de Canterbury, ao falar, no dia 12 de dezembro passado, na catedral St Chad de Birmingham, por ocasião da Conferência anual do Arcebispo Romero Trust, organização nascida em 2007 para celebrar a vida e a obra do arcebispo.
Segundo ele, "um evento teológico é um evento no qual se assiste a uma espécie de reaproximação entre a Palavra de Deus e a palavra, ou talvez o grito sem palavras, do sofrimento".
Amplos extratos do discurso foram publicados por Adista, 21-01-2015. A tradução é de Benno Dischinger.
"Como é sabido, o moto episcopal de D. Romero era: “Sentire cum Ecclesia”, pensar ou sentir com a Igreja. Uma frase que às vezes foi usada de maneira superficial para confirmar qualquer coisa que a Igreja diga através de seus expoentes. Significava, ao invés, algo muito diverso para o arcebispo Romero - afirma o arcebispo emérito de Canterbury. Sentire com Ecclesia é pensar da e com a perspectiva dos deserdados. Pensar a partir de onde está Jesus. Para dizê-lo com James Alison, prestigioso intelectual católico contemporâneo, é aprender a ter a inteligência da vítima. Aprender a ver e a ler o mundo do ponto de vista daqueles que não têm poder, porque esta é a perspectiva de Cristo".
Eis o artigo.
Considero uma grande honra o convite para falar de D. Romero. Uno-me às preces para que em 2015 o arcebispo seja reconhecido por aquilo que indubitavelmente é: um dos maiores dons das últimas décadas da parte do Senhor ao inteiro povo de Deus; um homem cujo testemunho e cujo ensinamento constitui um legado para os cristãos de todas as partes do mundo.
Foi um dos seus amigos e colaboradores, o grande teólogo jesuíta Jon Sobrino, que definiu Romero “um evento teológico”. O que significa dizer da vida e da morte de alguém, ou mesmo de sua personalidade inteira, que esta constitui um “evento teológico”? Sobrino no-lo explica. Um evento teológico é um evento no qual se assiste a uma espécie de reaproximação entre a Palavra de Deus e a palavra, ou talvez o grito sem palavras, do sofrimento. A teologia, tão longe de ser uma especulação humana sobre Deus, chega ao seu mais alto nível de autenticidade quando se torna num certo sentido verdadeira expressão de Deus. Não a expressão de Deus que vem do alto, como muitos teólogos e bispos gostariam que fosse, mas a palavra de Deus que se exprime com e através de quem compartilha do sofrimento de Jesus e de sua glória.
Sobrino escreve: “O grito de um povo inteiro foi transformado pelo bispo Romero numa prece oferecida a Deus”. E, ao escutar e dar voz a este grito, na presença de Deus, Romero se torna um evento teológico: a Palavra de Deus e o grito de quem sofre estão ligados. (...) Romero acreditava que a parte mais importante de seu ministério consistisse precisamente em dar voz àqueles que não têm voz. Mas, naturalmente o seu dar voz ao clamor dos pobres era algo mais do que uma simples questão de palavras. Ele deu voz à experiência dos pobres correndo os seus mesmos riscos. Uma vez mais, como no caso de Jesus, tornar próprio o grito dos sofredores se torna isso mesmo risco e motivo de sofrimento. (...) Romero acreditava que, se a Igreja deve ser onde Deus é, deve ser com os pobres. E assim escrevia em dezembro de 1979, na Vigília de Natal: “Hoje é o momento de procurar este menino Jesus, mas não nas belas imagens dos presépios, mas sim nas crianças que não comem o suficiente, que nesta noite foram dormir sem ter jantado”.
“Procuramos entre os pobres meninos que vendem jornais e que dormem enrolados no papel do jornal de hoje. Procuramos no pequeno engraxate que hoje talvez tenha ganhado bastante para comprar um presentinho para sua mãe. (...) Como é triste a história destes meninos. No entanto, Jesus, nesta noite, se preocupa com tudo isto”. Onde está Deus? Deus está com o mais fraco. Isto deveria ser um axioma para todo cristão e cristã que lê a Bíblia. E isto naturalmente significa que a unidade da Igreja, se é verdadeiramente unidade com Jesus, significa estar onde Jesus está. Para Romero, a unidade da Igreja está vinculada à união com Jesus através da solidariedade com os pobres. A missão de quem crê é estar onde Jesus está e, como Jesus, dar voz ao clamor dos sofredores e dos deserdados. Falar com e por Jesus, falar do lugar de Jesus, é falar do lugar dos deserdados e dos marginalizados.
A Igreja está onde está Cristo
Como é sabido, o moto episcopal de D. Romero era: “Sentire cum Ecclesia”, pensar ou sentir com a Igreja. Uma frase que às vezes foi usada de maneira superficial para confirmar qualquer coisa que a Igreja diga através de seus expoentes. Significava, ao invés, algo muito diverso para o arcebispo Romero. Sentire com Ecclesia é pensar da e com a perspectiva dos deserdados. Pensar a partir de onde está Jesus. Para dizê-lo com James Alison, prestigioso intelectual católico contemporâneo, é aprender a ter a inteligência da vítima. Aprender a ver e a ler o mundo do ponto de vista daqueles que não têm poder, porque esta é a perspectiva de Cristo.
D. Romero foi claro: este pensar, este sentir com o povo, esta profunda solidariedade com os deserdados, é mais do que um simples programa. Foi naturalmente acusado, durante sua vida, como o foram muitos teólogos da libertação, por não ter proclamado a Boa Nova a todos. Se a Igreja tem uma opção pelos pobres, isto certamente significa que tem uma opção contra os ricos. Teve algo semelhante a dizer com respeito (...) e sobre como, paradoxalmente, a opção pelos pobres (...) seria um modo para restaurar a perdida unidade. Eis o que dizia a tal respeito em novembro de 1979: “Outro dia foi solicitado a uma pessoa que proclama a libertação num sentido político qual seria o significado da Igreja. Respondeu deste modo escandaloso: “Há duas Igrejas, a Igreja dos ricos e a Igreja dos pobres. Nós cremos na Igreja dos pobres e não naquela dos ricos”. Isto é claramente demagogia e eu não admitirei jamais esta divisão na Igreja. Há somente uma Igreja, a Igreja que Jesus pregou, a Igreja à qual devemos dar todo o nosso coração, porque aqueles que se dizem católicos e idolatram a riqueza e não têm nenhum desejo de afastar-se dela, estes não são cristãos.(...)”.
A implicação é bastante clara: uma boa nova para o pobre é uma boa nova para o rico. O rico jamais ouvirá uma boa nova que não seja também uma boa nova para o pobre. Pensemos por um momento sobre quão frequentemente damos por descontado que uma boa nova seja sempre uma boa nova para nós. Mons. Romero nos desafia a reconhecer que escutar a boa nova de Deus é escutar uma boa nova para todos, para o nosso próximo, para o estrangeiro, para o pobre, para aquele ou aquela que não compartilha imediatamente do nosso ponto de vista. Então, se a opção pelos pobres não é somente um programa à parte, se não se trata de uma Igreja para os pobres contraposta a Igreja dos ricos, quais são as implicações? (...)
Voltemos ao ponto de partida: a Igreja está onde está Cristo. Uma Igreja unida é uma Igreja unida a Jesus e não há esperança de unidade fora disto. Mas, para ser unida a Cristo, sua boa nova deve ser para todos. Não é talvez isto que os Evangelhos e o resto do Novo Testamento repetem? Não é a mensagem dos anjos aos pastores? E isto deve significar que uma boa nova para os pobres é uma boa nova para todos. Uma boa nova para os pobres é uma promessa de justiça para todos. Justiça para o pobre e justiça para o rico. (...)
E isto nos conduz a uma segunda reflexão. O rico, como o arcebispo Romero diz mais de uma vez, na medida em que não está disposto a renunciar aos próprios privilégios, está aprisionado; necessita de libertação. A boa nova, para esses, é aquela que afasta o medo, a ânsia e a violência que acompanham o possesso. E não é necessário um teólogo para saber que as profundas desigualdades de riqueza e poder em qualquer sociedade são fonte perene de medo, ânsia e violência. (...).
Uma segurança verdadeira e duradoura neste contexto não depende de nossa ilimitada capacidade de defender a nós mesmos e os nossos interesses, mas de uma espécie de espoliação, uma espécie de deixar andar, como Deus diz nos evangelhos: salvamos as nossas vidas perdendo-as. E isto significa, no contexto de muitas coisas que o arcebispo Romero disse, que a relação ideal entre as pessoas numa sociedade é aquela na qual podemos, com confiança, deixar aos outros a tua responsabilidade, assim como tu te encarregas deles. Quando sabes que os outros são apaixonadamente preocupados pelos teus interesses como tu és apaixonadamente preocupado pelos seus, tornar-te-ás sempre mais intolerante com respeito aos vários modos pelos quais é cavado o fosso entre ricos e pobres, e sempre mais intolerante com o modo pelo qual nós, eu, protegemos a nós mesmos, a mim mesmo, do risco da vida (...).
O Novo Testamento nos oferece um modelo de sociedade humana na qual cada um se encarrega do outro, e todos se encarregam de cada um. (...). Esta é a visão que animou a vida e a morte de Mons. Romero. (...). Aprendendo a deixar andar, aprendendo a compartilhar a responsabilidade daqueles que estão em necessidade, o rico e o poderoso são evangelizados e libertados. (...). Escutam a boa nova e são libertados de sua prisão. Tudo isso para explicar o fato de que a Igreja é una se está unida a Cristo, o Cristo necessitado e vulnerável, e que há uma boa nova para todo o povo de Deus. (...). E, para Romero, a unidade sacramental da Igreja, uma Igreja reunida junto do altar, era tanto o sinal desta assunção de responsabilidades como fonte de graça e força para prosseguir nesta visão de sociedade humana. Porque à Missa vamos todos como famintos e necessitados e nossa necessidade é satisfeita em conjunto, e temos todos na eucaristia a liberdade e a capacidade de alimentar o outro e de assumirmos a necessidade do outro.
Em março de 1979 Romero escrevia: “Quando chegamos à Missa no domingo, realizamos a aliança que Deus estabeleceu. Cada Missa é a realização do pacto que nos conduz a fazer a experiência de Deus como a do único e verdadeiro Deus. Antes disso devemos destruir todos os ídolos que querem tomar o seu lugar, ídolos que querem enraizar-se nos nossos corações ou nos corações dos outros: o ídolo do poder, da riqueza e da opulência, o ídolo da posse de algo que nos aliena de Deus. O domingo deve ser para nós a ocasião de renovar o nosso pacto com Deus”. Assim a eucaristia é tanto sinal como instrumento da unidade. A eucaristia torna-se o sinal de nossa esperança, o símbolo de nossa esperança, como o instrumento, a força, graças à qual a realizamos.
As implicações para o Ecumenismo
Assim, a partir desta perspectiva da unidade da Igreja (...), o que podemos dizer do futuro ecumênico?
D. Romero disse bem pouco a esse respeito: tinha bem outros assuntos na cabeça! Mas, há implicações reais em tudo isso pelo modo com o qual nos pomos diante da missão, da prece da visão ecumênica. Romero nos coloca diante de uma pergunta profundamente empenhativa e estimulante sobre o ecumenismo: podemos conceber de novo nossa visão da unidade à luz de sua concepção da unidade com Cristo? Procuramos somente a unidade das igrejas, certa fusão de vários tipos de vida institucional, ou a unidade com Cristo?
A visão ecumênica parece e soa de modo muito diverso se começamos dizendo que oramos e esperamos ser unidos a Jesus Cristo. E com isso, e através disso, ser unidos um ao outro. E de ser unidos com Cristo no seu proclamar e encarnar a boa nova para os pobres. É claro que isso pode ser mal entendido. Poderia fazer pensar, por exemplo, que o ecumenismo entendido neste sentido signifique que as igrejas deveriam reunir-se em torno de projetos sociais e políticos, bem como em torno a fórmulas doutrinais. Mas, isso quereria dizer somente substituir um tipo de formalidade com outro. É possível entender mais a respeito se olharmos para a experiência e o testemunho da Igreja atual em contextos de profunda injustiça ou de sofrimento e terror. Na nossa época, na qual imagens terríveis de dor e de injustiça são tão vívidas e tão cotidianas, para tantos irmãos cristãos e irmãs cristãs no mundo (...), temos necessidade de olhar o que a unidade da Igreja significa no Iraque ou na Colômbia, na Nigéria ou no Sudão Sul. Ver como estas Igrejas descobrem ser umas com as outras assim como são com o mais débil. De falar com e pelo débil. De ser a única voz de Cristo com e pelo sofredor. Deste modo, declarando a voz de Cristo como voz do pobre, e pronunciando também uma palavra de julgamento sobre a tirania, a injustiça e a brutalidade.
No final de julho tive o privilégio de visitar o Sudão Sul em nome de Christian Aid. E (...) quando escutei a voz dos pastores, numa mesa redonda em Juba, falavam de sua missão, me ficou claro que estavam descobrindo a unidade no sentido indicado pelo arcebispo Romero. Não uma coalizão em torno de um programa político ou doutrinal, mas a unidade da paixão pelo bem-estar de todos aqueles que sofrem tão atrozmente nesta guerra civil que provocou a morte de milhares e milhares de pessoas nestes últimos 12 meses. (...). Sabiam que nenhum outro grupo teria assumido a responsabilidade daqueles que não têm voz, dos mais débeis. Sabiam que não tinham outra possibilidade senão falarem juntos, unidos pela paixão com os mais débeis. E sabiam que isto era o que teriam devido dizer às negociações em situação de impasse entre as facções em guerra, se estavam assumindo a responsabilidade. (...) Estavam reconhecendo ter descoberto a unidade em estar onde Cristo está, com as pessoas mais vulneráveis. (...).
Podemos encontrar outros exemplos dramáticos em muitas partes do mundo. Não só no Sudão Sul, mas no Oriente Médio e em muitas outras regiões da África. Sabemos também, mas de maneira muito mais prosaica, que, nas nossas cidades, falar com uma voz junto/para/com os débeis é um dos principais fatores de renovação da visão cristã. (...). Estamos muito, muito longe dos riscos que se viu a enfrentar Romero ou dos ricos que correm os pastores no Sudão Sul. Tudo o que corremos risco é de algum editorial hostil nos jornais, ou alguma observação desdenhosa da parte do Parlamento. E isto não é nada como martírio! Mas, a questão permanece sendo a mesma: a descoberta do Cristo que exorta e clama, do Cristo que torna própria a voz dos sem voz. Na descoberta deste Cristo descobrimos a unidade. Descobrimos aonde devemos estar, como estar unidos com Cristo, o que isto significa para nós na prática. E, em qualquer contexto em que nos encontremos, devemos sempre recordar que aquilo de que estamos falando é a justiça para todos. (...). Não estamos falando de derrubar a pirâmide de modo que algum outro esteja no alto. Estamos falando daquela profunda e difícil reciprocidade que eu chamo confiança que os outros estejam ali para ti. Que tu estejas ali para eles. E isto é um pró-memória para recordar-nos que a palavra “justiça” na Bíblia significa algo mais que assegurar-nos que todos tenham o que merecem (...). Justiça na Bíblia não é punição ou reversão, mas relação sanada e justo alinhamento. É estar em sintonia com (...) os objetivos de Deus. É a restauração daquela paz ativa que nas Escrituras faz par fixo com a justiça.
Justiça para todos é uma questão de relação e, portanto, diz respeito àquela mútua responsabilidade da qual falei. Justiça para todos é justo realinhamento de todos, assim que cada um seja lançado ao longo da linha da vontade de Deus, e a vontade de Deus é sempre para o bem do próximo. De modo que, quando o rico e o poderoso recusam a justiça para os pobres, o que refutam é a vida para eles mesmos. Aqueles que procuram proteger a si próprios das reivindicações das pessoas mais vulneráveis estão dizendo não à vida que traz consigo a relação sanada e o justo realinhamento. E isto nos poderia sugerir que, na medida em que nós como comunidade cristã refutamos as ocasiões de unidade que se nos apresentam, também corremos o risco de refutar a vida.
E é por isso que olho para D. Romero não só como a um mestre e a um mártir, um testemunho da justiça com os pobres, mas como um mestre que teve algo de crucial, de vital a dizer-nos sobre o que e quem somos como Igreja, como Igrejas que procuram ser mais plenamente unidas. É a questão que se nos coloca é: se somos verdadeiramente unidos somente quando somos mais profundamente unidos com Jesus, então há um só lugar de onde começar nosso caminho para a unidade, e este consiste em aprender a estar unidos ao sofrimento, à necessidade e a quantos se encontram em maior perigo e, no caso, ir e compartilhar dos riscos que correm.
Nada de tudo isto quer dizer que devemos cancelar todo o nosso interesse e toda a nossa preocupação pela doutrina, pelos sacramentos e pela disciplina e andar simplesmente à busca de boas causas a sustentar juntos. Porque nada de tudo isto teria sentido sem os nossos empenhos doutrinais e sacramentais. O Cristo que está ali com e no pobre não é somente um grande mestre humano, mas o Filho encarnado de Deus, o Senhor Onipotente, que se veste de nossa pobreza de modo que nós possamos ser vestidos de sua divina riqueza. (...). E se Jesus fosse somente um grande homem bom, então a eucaristia não teria sentido, senão como uma vaga melancólica comemoração de uma das inumeráveis tragédias da história (...).
A eucaristia, enquanto lugar no qual a verdadeira vida do Filho encarnado de Deus nos é doada, é o lugar no qual a nossa responsabilidade pelo outro é renovada e aprofundada, e fundada sobre novas bases. Isto é o que dá sentido aos empenhos que fazemos. Estes empenhos são o fundamento da visão integral e são teologicamente importantes porque são base e inspiração da visão de solidariedade com o pobre.
Uma só Igreja
Este é o ponto: devemos redescobrir muitos dos nossos empenhos teológicos e das nossas preocupações teológicas através desta experiência de identificação com o pobre e de solidariedade com o necessitado. (...) Se dizemos que esta ou aquela convicção tem importância, devemos entender por que tem importância exatamente em relação a como se aprende a estar unidos a Jesus, e a como se aprende a estar onde Cristo está. (...).Para encontrar juntos o modo pelo qual as nossas convicções e os nossos empenhos teológicos possam constituir a força motriz em condições de conduzir-nos mais próximos de onde Jesus está (...). De toda prática, de toda doutrina, devemos inquirir-nos se nos une ou não a Jesus (...). As nossas discussões sobre as diversas disciplinas teológicas devem levar-nos a perguntar-nos como este ou aquele aspecto de nossa teologia serve e clareia a nossa resposta à tarefa de estar com Jesus em solidariedade com o débil.
E, enfim, isto pode ajudar-nos a compreender o que significa dizer que Deus nos chama a combater a pobreza e ao mesmo tempo nos chama à pobreza de espírito. D. Romero escrevia em fevereiro de 1980: “A pobreza é uma conduta cristã, uma espiritualidade, a abertura da alma a Deus. É por este motivo que Puebla estabeleceu que os pobres são a esperança da América Latina. São a esperança da América Latina porque são os mais abertos a receberem os dons de Deus. Jesus o disse com grande emoção: “Bem-aventurados os pobres porque deles é o Reino dos Céus.” Vós sois os mais capazes para entender o que não entendem quantos se ajoelham diante dos falsos ídolos. Vós, que não tendes estes ídolos, vós que não colocais nestes falsos ídolos a vossa confiança, porque não tendes nem dinheiro nem poder, vós que tendes sido despojados de tudo, vós sabeis que, quanto mais pobre se é, mais o Reino dos Céus será vosso (...). A pobreza que Jesus santifica não é uma simples pobreza material, não é não ter nada (...). É uma pobreza que desperta a consciência, uma pobreza que aceita a cruz e o sacrifício, mas não por condescendência, e sim porque sabe que é a vontade de Deus. Portanto nos tornamos santos enquanto fazemos da pobreza uma parte da nossa espiritualidade e na medida em que nos consignamos ao Senhor e mostramos a nossa abertura a Deus”.
Falar de chamamento à pobreza espiritual na Igreja se traduziu com frequência tristemente como um elogio da passividade e na aceitação do status quo. Romero leva tudo isso a um nível muito diverso. Ser espiritualmente pobres é ser livres da idolatria (...). Quando, por circunstâncias fortuitas ou por nossa escolha, chegamos a um ponto no qual não há mais ídolos, a transformação tem início. É então que algo nos torna capazes, como jamais antes, a assumirmos a responsabilidade do outro, de estar ali para o nosso próximo.
Assim o futuro ecumênico, à luz da vida e da morte do arcebispo Romero, de suas preces e de seu testemunho, se torna um futuro no qual (...) procuramos ajudar-nos mutuamente para a unidade com Jesus na convicção de que é naquele momento que iniciamos a viagem de uns para os outros.
O arcebispo Romero acreditava firmemente, como temos visto, que há uma só Igreja: a Igreja daqueles que estão onde Jesus está, daqueles que falam com sua voz. E, quando tendemos a ser ansiosos ou cínicos, até o ponto de desesperar, com respeito à possibilidade que as Igrejas jamais possam ser uma, e de ajuda recordar que Jesus é já e eternamente uno, que seu corpo é uno, que sua boa nova é una, e que estamos a caminho, trôpegos, em direção do que já é realidade nele. Porque, o que conta na Igreja, e todo santo e mártir concordaria, não é o que obtemos, mas o que Deus deu, dá e dará. E àquele Deus que deu, dá e dará grande graça através da vida e da morte de Oscar Romero, nós damos graças.
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D. Romero. Santo para todo o povo de Deus. Discurso de Rowan Williams, arcebispo emérito de Canterbury - Instituto Humanitas Unisinos - IHU