Por: Jonas Jorge da Silva | 10 Outubro 2017
Democracia, políticas públicas e justiça restaurativa foi o tema do último debate pelo ciclo Brasil: conjuntura, dilemas e possibilidades, promovido pelo CEPAT, em parceria com o Núcleo de Direitos Humanos da PUCPR, Cáritas Regional Paraná e apoio do IHU, no sábado, 07 de outubro. No esforço em apontar saídas para a superação do que comumente passou a se diagnosticar como crise da representação política, tema quente na agenda brasileira, Cezar Bueno de Lima (PUCPR) defendeu a democracia deliberativa e as práticas restaurativas como caminhos de construção coletiva.
Não é de hoje a crítica que se faz à democracia liberal, aos seus limites intrínsecos e sua restrita capacidade de dar vazão ao que emana da vontade popular. Sabe-se que os direitos defendidos são o da propriedade e do livre comércio, em detrimento dos direitos humanos. O neoliberalismo dilatou ainda mais o ideário de uma sociedade baseada apenas nos princípios do mercado, consumo e individualismo, como se a construção da riqueza material e simbólica não fosse um processo coletivo, transformando indivíduos em ilhas, apesar de estarem sujeitos aos mesmos problemas, de um modo geral.
Ao iniciar sua apresentação, Cezar Bueno de Lima citou o axioma de Immanuel Kant: “todo homem tem dignidade e não um preço, como as coisas”. São palavras que permanecem atuais, por continuar em um horizonte utópico, assim como são hodiernas as graves violações aos direitos humanos. Neste sentido, o tripé democracia, políticas públicas e justiça restaurativa, compreendidos em uma nova engrenagem, tem muito a dizer como antídoto ao atual estágio de reificação do capitalismo. Não se trata de tarefa fácil e nem cabe ingenuidade, mas parece não haver outras possibilidades de plantão.
Em linhas gerais, constata-se que o poder das elites é monstruosamente hegemônico, as distinções entre direita e esquerda se esfacelam no campo da política partidária e as massas urbanas se veem à mercê de saídas autoritárias e alinhadas a interesses alheios aos seus dramas cotidianos. Sendo assim, algo precisa começar a borbulhar a partir de baixo. Trata-se da rebelião dos que já não suportam mais as bases de sociabilidade estabelecidas. Nas palavras de Lima, é necessário recuperar a fibra moral da sociedade civil. Com qual democracia? A partir de qual perspectiva de direitos humanos? E com quais práticas restaurativas? São questões essenciais e que a sociedade precisa encarar, caso queira recuperar sua autonomia e capacidade de resistência.
Primeiramente, alargando sua concepção de democracia. Não apenas a sujeição à democracia representativa, mas o forjamento de práticas deliberativas, em um processo que se inicie em pequenas células da sociedade até abranger as maiores esferas da vida social e política do país. Aprender a ouvir, dialogar e estabelecer consensos. Tarefa nada fácil, cobrada dos políticos ‘profissionais’, mas pouco pretendida nos círculos sociais. A sociedade precisa forjar espaços deliberativos inclusivos, livres de coerção externa, com comunicação livre, subvertendo as experiências opressivas, provenientes das relações de dominação. Pode soar utópico, mas também é pessimismo estagnador achar que nada mais é possível.
Em segundo lugar, junto à defesa de uma democracia deliberativa, também é necessário ampliar o que se entende por direitos humanos. Como bem salientado por Lima, não cabe mais pensar os direitos humanos apenas em termos normativos. A própria concepção de direitos humanos está em disputa e aqueles que mais sofrem as violações precisam pleitear o seu significado, já que possuem um caráter histórico, não linear e contextual. Aqui, é necessário reconhecer que na América Latina, em especial, o Estado sempre se colocou como um interlocutor ilegítimo na demanda por direitos humanos. Vive-se, historicamente, uma colonização do sistema democrático pelo poder econômico e meios de comunicação hegemônicos. Neste cenário, o Estado vê as demandas populares como entraves para sua própria reprodução como máquina burocrática em favor do status quo de seu aparato e manutenção dos interesses financeiros das minorias.
Direitos humanos não se resumem apenas a problemáticas do insano sistema prisional brasileiro, como a mídia deixa transparecer. Deficiências na área da saúde, educação, moradia, saneamento básico e outros são também violações aos direitos humanos e precisam ser encaradas a partir desse campo, impelindo políticas públicas que cheguem ao âmago dos dilemas enfrentados pela população em seu dia a dia. Desse modo, as políticas públicas devem resultar do processo de democratização da vida social, principalmente a partir do envolvimento daqueles que enfrentam de forma mais dura as mazelas do atual sistema capitalista e são vítimas de rotineiras violações aos direitos humanos.
Seria a rebelião a partir de baixo: não se dispondo a continuar submetido à violência simbólica dos discursos dominantes; resistindo à tentação de acreditar que não é possível transformar a situação insalubre de uma moradia indigna; repudiando o descaso com a saúde pública; trabalhando não só com as consequências, mas também com as causas da violência nas periferias brasileiras; não se silenciando frente a um sistema de transporte público que priva as pessoas de condições dignas de mobilidade urbana; problematizando as jornadas de trabalho extenuantes e de baixa remuneração. Muitos outros exemplos poderiam ser dados e transformados pela rebelião democrática, tendo como foco os direitos humanos, o direito a deliberar e o estabelecimento de políticas públicas.
Por fim, uma sociedade democrática, que busque exorcizar os traços autoritários na constituição de muitos de seus processos, deve instaurar práticas restaurativas. Para Lima, trata-se de desconstruir uma cultura punitiva e vingativa em prol da construção de uma cultura da responsabilização, que reflita novas formas de participação social e resolução de conflitos. É um chamado à sociedade a não ceder a terceiros sua própria responsabilidade em solucionar questões que, na maioria das vezes, estão sendo judicializadas.
Neste sentido, Lima está convencido de que as práticas restaurativas podem exercer um rico papel nos processos de democratização da sociedade, uma vez que a proposta exige atuação direta dos sujeitos envolvidos. Como se sabe que o Estado é ineficaz na aplicação da justiça, o desafio é repensar como a sociedade tem lidado com seus conflitos. Frente à crise das instituições, o momento é propício para reavaliar a forma como o conjunto da população tem pensado a alteridade, zelado pelo bem comum e priorizado as mínimas condições de convivência. A construção de processos democráticos também passa pela forma como a sociedade aprende a resolver os seus conflitos.
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Recuperar a fibra moral da sociedade civil - Instituto Humanitas Unisinos - IHU