03 Agosto 2007
A V Conferência Geral do Episcopado da América Latina e do Caribe, que aconteceu de 13 a 31 de maio, em Aparecida (SP), tem repercutido muito. Na semana passada, depois da aprovação do documento por Bento XVI no dia 10 de julho, um dos participantes da Conferência, o argentino Eduardo de la Serna, doutor em Teologia, foi entrevistado, em Buenos Aires, pela jornalista Sonia Montaño para IHU On-Line. De la Serna participou da V Conferência a convite da Rede de Católicos das Américas Ameríndia.
“É um documento típico da Igreja do temor”, afirma Eduardo, em relação ao texto final da Conferência. Ele também fala, na entrevista a seguir, sobre a Igreja Argentina, sobre os rumos da Teologia da Libertação, sobre as relações entre o presidente Kirchner e o presidente da Conferência Episcopal Argentina, Cardeal Jorge Mario Bergoglio, e avalia o governo atual em seu país.
Eduardo de la Serna escreve em diversas publicações, tais como o jornal Página 12. Além disso, é professor de Teologia no Instituto Superior de Estudos Teológicos de Buenos Aires e no Instituto de Formação Teológica da Diocese de Quilmes. Ele é coordenador nacional do grupo de sacerdotes de opção pelos pobres, que é uma continuação do movimento de "Sacerdotes do terceiro mundo", dissolvido em 1973 pela repressão militar da Argentina.
Confira a entrevista.
IHU On-Line - Como avalia a V Conferência Geral do Episcopado da América Latina e do Caribe – V Celam?
Eduardo De la Serna – É muito interessante observar o esforço com que se empenhou o pessoal vindo do Vaticano para que não aparecessem certos temas que, de fato, apareceriam, pois são questões que não podem ser ocultadas. Por outro lado, temos uma hierarquia eclesiástica extremamente temerosa, para usar uma palavra até nobre, a ponto de aceitar que o Papa escolha até o local da reunião. Também me parece patético que os bispos mandem o documento para que Roma o aprove. São bispos que estão em comunhão com Roma, ou seja, não se trata de um grupo que está fora da Igreja e pede permissão para entrar. Essas questões são um sinal de mediocridade. Muito temor, sobretudo gerado pela preocupante papolatria (1) de João Paulo II. No entanto, o documento final de Aparecida ficou muito melhor do que eu esperava, porque houve muitas realidades vivas da Igreja que não puderam ser caladas. Ainda assim, eu acredito que o documento é típico da Igreja do temor.
IHU On-Line - O Vaticano fez mudanças significativas no documento final do V Celam?
Eduardo de la Serna - Ainda não analisei em profundidade a versão definitiva modificada pelo Vaticano, mas existem algumas diferenças que me parecem, no mínimo, pitorescas. A quarta redação tinha 250 notas de rodapé. O novo documento tem 281. Acrescentaram até notas! Eu não veria nenhum problema se o Vaticano dissesse que esta ou aquela idéia são heresias. Se realmente o são, vamos nos retratar. Uma dessas notas é sobre as Comunidades Eclesiais de Base. Num primeiro momento, já existia a intenção de se retirar a nota, até que ela desapareceu na terceira redação do documento. Agora, tiveram que recolocá-la, pois as Comunidades Eclesiais de Base são uma realidade viva na nossa Igreja. Realmente, o documento enviado mostra os clássicos temores sobre temas como ecologia, diálogo inter-religioso, bioética, mulher etc.
IHU On-Line - E como o senhor avalia a participação da Igreja Argentina no V Celam?
Eduardo de la Serna - Comparando com a Conferência de Puebla - onde os Bispos argentinos foram em um avião do exército -, foi muito melhor. A delegação que o episcopado argentino enviou agora foi muito melhor do que as enviadas a qualquer das conferências anteriores. Até ouvi de um bispo de outro país, muito comprometido socialmente, que tinha ficado gratamente surpreso com a participação da hierarquia argentina, o que me alegrou muito. Mas é claro que não se podia esperar de parte da hierarquia argentina uma voz profética. De fato, não houve voz profética nenhuma, com exceção de algum bispo do Brasil, algum da Guatemala, algum da Bolívia.
IHU On-Line - Como o senhor vê o atual pontificado?
Eduardo de la Serna - As idéias de Bento XVI eram bastante previsíveis. Este Papa é a mesma pessoa que publicou a Dominus Iesus. Isto não nos deve surpreender, e sim nos entristecer, o que é diferente. Contudo, é difícil avaliar este papado, porque se em certos momentos ele parece estar “fora do ar”, e em outros dá continuidade ao de seu antecessor, João Paulo II, há momentos em que parece até melhor. Por exemplo, quando ele errou em relação ao Islã, logo deixou que a diplomacia Vaticana concertasse o erro. A mesma coisa aconteceu em relação ao comentário sobre os povos indígenas, em Aparecida. Ele não volta atrás, porque supostamente o Papa não pode errar, mas, na semana seguinte, se desdiz, ao afirmar que na evangelização houve luzes e sombras.
Inclusive no documento de Aparecida, quando se faz uma referência aos povos indígenas, o Papa é citado, para deixar claro que não está sendo desautorizado. Ou seja, é como afirmar que “o próprio Papa nos autoriza a dizer que o primeiro comentário sobre os povos indígenas foi uma bobagem”. Isso é mais uma manifestação da papolatria de que eu falava antes.
A idéia de que fora da Igreja não há salvação, as questões litúrgicas da volta ao latim, a reconciliação com Dom Lefèvre e a valorização de grupos ultra-conservadores eram de se esperar. Mas outras coisas não são tão ruins quanto se esperava, como, por exemplo, a encíclica sobre a caridade (Deus Caritas Est).
IHU On-Line - O cardeal Bergoglio, em seu discurso durante a conferência de Aparecida, teve um tom fortemente social, especialmente ao falar em “escandalosa injustiça”. Isso o surpreendeu?
Eduardo de la Serna - Nesse momento, Bergoglio falou em nome do episcopado argentino, porque era um momento no qual todos os presidentes das conferências episcopais falavam em nome de sua região. Foram sete minutos para dizer como estava sua igreja local e o que ela esperava de Aparecida. Foi esse o contexto da fala de Bergoglio. Mas, sem dúvida, o cardeal tem um viés populista, com uma clara influência do peronismo. Talvez seja essa a raiz das distâncias entre Bergoglio e Kirchner. É o velho conflito entre a pátria peronista e a pátria socialista de 1973, que não se resolveu ainda (1).
IHU On-Line - Como o senhor caracterizaria as relações entre Kirchner e Bergoglio?
Eduardo de la Serna - Ambos são intolerantes. O cardeal é uma pessoa muito prudente e medida em muitas coisas, mas não o é na relação com o atual governo. Ambos se comportam como gato e rato. Provocam, a todo momento, brigas desnecessárias.
IHU On-Line - Que matizes a Teologia da Libertação tomou na Argentina?
Eduardo de la Serna - Muitas vezes, tentou se declarar morte à Teologia da Libertação na América Latina em geral, mas ela ainda está presente. Nem nas Conferências de Puebla, nem na de Santo Domingo, nem na de Aparecida é mencionada, mas ela está presente. A Teologia da Libertação está passando por uma etapa interessante de grande diversificação: existem os que se dedicam à Teologia Indígena, à Teologia da Mulher, à Teologia Negra, à Teologia Camponesa, à Teologia Ecológica. São riquezas muito profundas, mas que correm o risco de dispersão. Na medida em que descobrirmos que tudo isso está relacionado com o conceito bíblico do pobre, as diversas teologias podem continuar muito vivas e unificadas. Indiscutivelmente, a Teologia da Libertação surge, na Argentina, muito influenciada pelo peronismo. Isso é muito difícil de entender para as pessoas de fora. Chegou-se a considerar a Teologia feita na Argentina como inimiga da Teologia da Libertação.
IHU On-Line - Que características são próprias da teologia feita na Argentina? Identificam-se mais com a Teologia da Cultura?
Eduardo de la Serna - Teologia da Cultura foi um nome dado por alguns teólogos para mostrar à Teologia Ortodoxa Argentina uma certa diferenciação à Teologia da Libertação. A Teologia da Cultura como tal era mais uma denominação do que uma realidade. Houve uma Teologia da Cultura, mas não era a Teologia da Libertação pensada na Argentina. Penso que aí houve uma jogada estratégica, pensada por gente como Quarracino (2), por exemplo, que tentou fazer com que a teologia argentina parecesse com uma teologia que leva em conta o pobre como sujeito cultural, mas alheio à Teologia da Libertação.
Contudo, falando com os teólogos que foram da chamada Teologia da Cultura, vejo que eles nunca a entenderam como algo contrário à Teologia da Libertação, e sim como um aspecto dessa teologia. Evidentemente, mais influenciada pelo peronismo e pela religiosidade popular. Em outras épocas, o tema da religiosidade popular era visto por alguns como contrário às Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), mas, na realidade, elas vivem disso, inclusive as que estão mais politizadas.
IHU On-Line – Como o senhor avalia o atual governo?
Eduardo de la Serna - É uma questão difícil: não dá para afirmar é bom ou é ruim. Se me perguntasse por De la Rúa (3), eu te diria que ele é um inepto; se me perguntasse por Carlos Menem (4), diria: “um governo de corrupção”. No caso de Kirchner há contradições, pois concordo com algumas atitudes e com outras não. A minha sensação é que, depois da inoperância absoluta do governo de De la Rúa, qualquer coisa que Kirchner fizesse seria melhor. Mas quando o governo afirmou que não há crise na Argentina, burlou com esse pensamento, pois mentiu. Kirchner diz que não há aumentos, que há estabilidade nos preços, mas na Paróquia onde moro tivemos de pagar o dobro na conta de luz que sempre pagamos. Contudo, é inegável que há mais trabalho. Por outro lado, se fecharam todas as fábricas na época do Menem. Ainda assim, com essa oposição dá vontade de aplaudir o governo.
IHU On-Line - Qual é o ponto mais fraco do governo?
Eduardo de la Serna - A incapacidade de diálogo. Se tivesse capacidade para dialogar, muitas propostas feitas por diversos setores da sociedade civil seriam mais levadas em conta e não tomadas como oposição gratuita. Acho este governo muito intolerante. Também não há uma boa política internacional. Além de estar próximo de Lula, por motivos estratégicos, e de Chávez, por motivos econômicos, o governo Kirchner não tem capacidade de transcender as fronteiras. Não se entende com Bachelet (5), muito menos ainda com Tabaré (6).
IHU On-Line – O senhor acha que Cristina Kirchner vai ser a próxima presidenta da Argentina?
Eduardo de la Serna - Aqui no bairro não se fala em política, mas parece que todos vão votar em Cristina. Seguramente, ela vai ganhar com certa comodidade e não sei se vai precisar de segundo turno. Mas temos que ver também seus oponentes: Lavagna (7) não tem carisma, enquanto Carrió (8) perdeu todo o poder político e, com isso, uma certa credibilidade que tinha acumulado. Por sua vez, Lopez Murphy (9) não existe nem para a esquerda.
Notas:
(1) O presidente Juan Domingo Perón foi deposto e exilado em 1955 por um golpe de estado e seu partido foi banido, dando início a 30 anos de alternância entre ditaduras militares e frágeis democracias no poder. Em 1973, Perón retornou à Argentina e governou por um curto período até a sua morte. Deixou o poder nas mãos de sua então esposa e vice-presidenta Isabel, em um período de extrema instabilidade política, econômica e social. Por pressões militares ela se renunciou em 1976, abrindo caminho para uma nova ditadura. Mas, no retorno de Perón, em 1973, ele conseguiu 62% dos votos, sendo que tanto a esquerda quanto a direita o tratam como seu intérprete. Perón optaria pela direita patronal, pelo aparelho sindical da Confederação Geral do Trabalho (CGT) e pelo exército, rompendo com uma juventude peronista de esquerda, os montoneros, que sonhavam com uma “pátria socialista”.
(2) Antonio Quarracino foi arcebispo de Buenos Aires entre 1990 e 1998. Cardeal da Igreja Católica foi professor de Teologia na Universidade Católica Argentina (UCA). Morreu em 1998 e foi sucedido pelo atual arcebispo, Cardeal Jorge Mario Bergoglio.
(3) Fernando de la Rúa: Político argentino da União Cívica Radical (UCR). Foi presidente da Argentina de dezembro de 1999 a dezembro de 2001. Em 2000, no meio de uma grande crise política e econômica no País, afastou o vice-presidente Carlos Alvarez. De la Rúa renunciou em 20 de dezembro, no meio de uma situação de violência, tendo completado a metade de seu mandato.
(4) Carlos Menem foi presidente da Argentina de 8 de julho de 1989 a 10 de dezembro de 1999 pelo Partido Justicialista (Peronista). Eleito presidente por dois mandatos consecutivos, após alterar a Constituição, Menem é considerado o grande responsável pela crise político-econômica da Argentina em 2001. Durante o seu governo, a Argentina indexou o peso ao dólar, privatizou importantes empresas e bancos estatais, deixando o país sem recursos próprios para sobreviver a uma crise. Ao protelar a desvalorização do peso frente à moeda americana, comprometeu seriamente a economia, ao tornar a moeda local artificialmente forte.
(5) Verónica Michelle Bachelet Jeria é a atual presidente do Chile. Membro do Partido Socialista do Chile, ocupou o lugar de ministra da Saúde no governo de Ricardo Lagos entre 2000 e 2002, e, posteriormente, o cargo de Ministra da Defesa, tendo sido a primeira mulher a exercer este cargo na América Latina. Foi eleita Presidente do Chile para um mandato de 2006-2010, sucedendo ao ex-presidente Ricardo Lagos. Também aqui é a primeira mulher a ascender ao lugar cimeiro na hierarquia do Estado, na América do Sul.
(6) Tabaré Ramón Vázquez Rosas é o atual presidente da República Oriental do Uruguai. De tendência socialista, Vázquez é o líder da principal coalizão de esquerda do país, a Frente Amplio.
(7) Roberto Lavagna é um economista argentino. Ex-ministro da Economia argentino, Lavagna, que ocupou o cargo do começo de 2002 até novembro de 2005, liderou a recuperação econômica argentina após a pior crise de sua história. Deixou o cargo devido a um forte enfrentamento com o presidente Néstor Kirchner.
(8) Elisa Carrió é advogada e política argentina. Fundadora do partido de centro-esquerda “Afirmação para uma República Igualitária” (ARI), Carrió concorreu à presidência da república em 2003, ficando em quinto lugar. Elegeu-se deputada pela Capital Federal argentina nas eleições legislativas de 2005.
(9) Ricardo López Murphy é um economista e político argentino. Líder do partido “Recrear para o Crescimento”, fundado por ele em 2002 ao deixar a União Cívica Radical, é licenciado em economia pela Universidade Nacional de la Plata e, posteriormente, cursou o mestrado em economia da Universidade de Chicago. Foi ministro da Defesa e da Economia durante o governo de Fernando de la Rúa. Em 2003, foi candidato nas eleições presidenciais, ficando em terceiro lugar com 18% dos votos.
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"O documento do V Celam é típico da Igreja do temor". Entrevista especial com Eduardo de la Serna - Instituto Humanitas Unisinos - IHU