Vice-presidente da Sociedade de Ecologia do Brasil analisa caso emblemático da Usina de Candiota III e aponta fragilidades na transição para um planeta mais sustentável
Com eventos climáticos cada vez mais intensos e frequentes, o planejamento e as ações para a transição energética não acompanham o mesmo ritmo. Um exemplo concreto é a Usina de Candiota III, em Rio Grande/RS. Paralisada desde o início do ano e afetando o desenvolvimento regional, agora se vê em curso um lobby político e econômico para que o governo federal publique uma Medida Provisória que permita a reativação da exploração do combustível fóssil.
“O que tem de mais negativo da usina é a dependência que ela criou, em detrimento de todos os ativos e potenciais econômicos da região. Uma relação perversa que não se encaixa na ideia de um futuro verde, próspero e sustentável”, critica o especialista. Dutra afirma que a exploração do carvão destrói a paisagem, espalha contaminação por toda parte, e qualquer tentativa de remediar os estragos se mostra muito difícil.
Ele aponta que não houve plano de descarbonização, o que parece valer para todas as iniciativas necessárias de desligamento das fontes sujas de energia (origem fóssil). No caso de Candiota, o drama se concentra na falta de alternativas econômicas que não foram oferecidas paralelamente ao desligamento. A decisão de desligar precisa vir acompanhada de um plano, enfatiza o pesquisador. Caso contrário, é um “tiro no pé” da economia. “Se a descarbonização não for justa e atenta ao contexto, não é sustentável”.
Nesta entrevista ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU concedida por WhatsApp, o professor trata do processo de transição energética e da relevância da economia sustentável para o equilíbrio climático e ecológico. “Não existe almoço grátis. Até que novas cadeias econômicas prevaleçam e quebrem a dependência gerada pelo carvão, um caminho de mudanças terá de ser pavimentado, antes de ser percorrido”, destaca.
O entrevistado também avalia os impactos políticos de Trump para o planeta e o Brasil diante da COP30. “Minha impressão é que o Brasil chega preparado, com experiência, com muito a mostrar. Porém, a casa está desarrumada”, observa. Ele ressalta que “o mundo inteiro nos olha com esperança e podemos mostrar para o mundo que é possível”.
Marcelo Dutra da Silva (Foto: Arquivo Pessoal)
Marcelo Dutra da Silva é graduado em Ecologia pela Universidade Católica de Pelotas – UCPel, mestre e doutor em Ciências pelo PPG em Agronomia da Universidade Federal de Pelotas – UFPel. Leciona na Universidade Federal do Rio Grande – FURG, Instituto de Oceanografia. É coordenador do Laboratório de Ecologia de Paisagem Costeira – LEPCost e vice-presidente da Sociedade de Ecologia do Brasil.
IHU – O que fez e faz com que a Usina de Candiota III esteja em uma situação de indefinição?
Marcelo Dutra da Silva – É importante lembrar que, apesar dos acordos e compromissos assinados pelo Estado brasileiro, alguns também assumidos pelo governo gaúcho, o que pega é não termos um plano nacional de descarbonização. Fala-se muito de transição energética, normas, orientações e dispositivos na lei, mas ainda são iniciativas muito tímidas e de alcance limitado. Tanto é que estamos diante de algo que não é novo, que vinha se projetando para acontecer há décadas (pelo menos nos cenários traçados pela ciência), mas pouco nos debruçamos sobre o que fazer quando este dia chegasse. Chegou! Parece valer para todas as iniciativas necessárias de desligamento das fontes sujas de energia (de origem fóssil). A Usina Termelétrica – UTE de Candiota III encerrou seus contratos de comercialização de energia com a Agência Nacional de Energia Elétrica – Aneel no último dia 31-12-2024.
Desde então, a usina está paralisada. Apreensivos pelo futuro incerto, as forças vivas da região, mobilizadas, têm impulsionado o forte lobby político e econômico para que o governo federal publique uma Medida Provisória que reative os contratos de venda de energia com a Aneel ou que o Congresso Nacional derrube o veto presidencial ao Artigo 22 da Lei Federal 15.097/2025, conhecida como a Lei das Eólicas Offshore. Um “jabuti” que previa a prorrogação do contrato da UTE Candiota III até 2050, além de subsídios estimados em R$ 50 bilhões para a contratação de energia proveniente de termoelétricas movidas a gás e carvão.
Um desatino sem precedentes que não pode ser atendido, sob qualquer hipótese. Porém, sintomático da nossa fragilidade. Se não orientamos como proceder, qualquer desligamento abrupto como o que estamos vendo em Candiota se torna injusto e não resolve.
IHU – Quais são as alternativas econômicas e energéticas à usina de Candiota?
Marcelo Dutra da Silva – Candiota está situada em uma região do estado favorecida pelos ventos, também pela incidência solar, pelos campos nativos remanescentes, pelo clima favorável ao cultivo de frutas e madeira. Alternativas não faltam. O turismo, a indústria, os novos negócios. A economia verde tem tudo para avançar em Candiota, é a melhor alternativa que vejo, mas nada vai acontecer sem um plano de transição.
Essas alternativas precisam estar no plano, que só é factível desde que se tenha recursos para implementar cada uma delas. Não existe almoço grátis. Até que novas cadeias econômicas prevaleçam e quebrem a dependência gerada pelo carvão, um caminho de mudanças terá de ser pavimentado, antes de ser percorrido, incluindo a queima de fósseis. É preciso reduzir para transicionar e substituir.
IHU – Qual o impacto econômico e ecológico desta usina para a cidade e região?
Marcelo Dutra da Silva – O que tem de mais negativo da usina é a dependência que ela criou, em detrimento de todos os ativos e potenciais econômicos da região. Uma relação perversa que não se encaixa na ideia de um futuro verde, próspero e sustentável. A exploração do carvão destrói a paisagem, espalha contaminação por toda parte, e toda tentativa de remediar os estragos se mostra muito difícil.
Já tive a oportunidade de acompanhar alguns trabalhos, iniciativas do Programa de Manejo e Conservação do Solo e da Água da UFPel. Muito difícil! De outra parte, a queima do carvão polui a atmosfera e lança gases do efeito estufa que contribuem para o aquecimento global.
Afinal, não existe carbono sustentável. Aliás, eis uma ideia que nem mesmo combina com o conceito. No nosso caso, as usinas a carvão representam 1,5% da matriz elétrica nacional e podem ser facilmente substituídas por outras fontes energéticas muito mais baratas e seguras. Mas, como eu disse, isso não é feito desligando tudo de uma única vez, sem considerar as pessoas e a dependência econômica à qual elas estão subidas. A transição precisa ser justa, insisto.
IHU – No caso de Candiota, há um drama econômico com desligamento da usina? Por quê?
Marcelo Dutra da Silva – Simples, a economia do município se estabeleceu com base na exploração e queima do carvão mineral para gerar energia, sem qualquer perspectiva de mudanças. Apostaram na eternidade de um modelo que não tem mais espaço no futuro. Algo que já está posto há bastante tempo. Uma dependência que não deixou espaço para o plano B, que agora vai precisar ser construído às pressas.
Candiota tem pouco tempo, e será necessário muito empenho das forças vivas locais para focar nas alternativas. Um plano de transição energética precisa ser colocado em cena. Do contrário, da forma como está imposta, a decisão de desligar, sem saber como fica depois, vai trazer miséria, desespero e desalento a milhares de pessoas.
IHU – Há uma disputa política entre economia e meio ambiente no RS?
Marcelo Dutra da Silva – Não gosto de ver por este ângulo. O enfrentamento político que antagoniza economia e meio ambiente, na prática, é um movimento burro, que não constrói. Não é útil pensar que “ou é um ou é o outro”. Precisamos garantir os dois.
A ideia de desenvolvimento regional perde sentido quando não vem acompanhada de bem-estar social, proteção do meio ambiente e viabilidade dos negócios, que devem compor longas cadeias de valor. Por esta razão, há a importância de diversificar os ativos econômicos respeitando a capacidade de gerar riquezas no contexto das potencialidades de um determinado lugar ou região.
Se não for visto desta forma, o risco é a exaustão dos recursos ou sua inviabilidade, mesmo que seja abundante, como o carvão mineral é em Candiota. A região da Campanha é muito rica e terá mais chance se apostar na diversidade econômica e na união de forças para harmonizar as disputas.
IHU – Os EUA saíram do Acordo de Paris, e Trump incentiva e apoia a exploração dos combustíveis fósseis. Como isso impacta o mundo e a transição energética?
Marcelo Dutra da Silva – As decisões do presidente Trump certamente influenciam o mundo. Afinal, ainda é a maior economia do planeta. Entretanto, apesar das suas escolhas ruins, em vários sentidos, no campo da economia, com forte reflexo no bem-estar das pessoas e do meio ambiente, nem tudo vai se reproduzir na prática.
A indústria estadunidense do ferro velho não será reerguida tão rapidamente e não tem espaço para mais carbonização no futuro. O protecionismo econômico não tem mais tanta força em uma economia global, em que os atores econômicos se multiplicaram e se especializaram. Tipo, a China se transformou na indústria tecnológica do mundo, enquanto o Brasil se apresenta como o maior celeiro do planeta. Disputar contra isso é muito difícil. Talvez os EUA estejam perdendo sua força de influência, apesar de ainda ser muito forte.
De toda sorte, a guerra fiscal do governo Trump e sua aversão à política de diversidade e boas práticas, de alguma forma, coloca algumas iniciativas em compasso de espera. Investidores e grandes corporações parecem estar avaliando o cenário e as tendências. Alguns embarcaram com Trump, mas uma esmagadora maioria no mundo parece que não. Ou seja, talvez se veja um ano difícil de muita gritaria, um segundo com algumas ameaças e depois calmaria e reconciliação. O que o Trump deseja é um passado civilizatório, felizmente.
IHU – Como o Brasil chega à COP30? O que esperar do evento?
Marcelo Dutra da Silva – Minha impressão é que o Brasil chega preparado, com experiência, com muito a mostrar... Porém, a casa está desarrumada. Estamos distantes das soluções para os nossos problemas mais básicos, como saneamento, desmatamento e segurança climática. O mundo inteiro nos olha com esperança e podemos mostrar para o mundo que é possível.
O Brasil será a maior economia verde do planeta e isso será alcançado com soluções baseadas na natureza, um agronegócio de baixo carbono e práticas sustentáveis avançadas – Marcelo Dutra da Silva
O Brasil será a maior economia verde do planeta e isso será alcançado com soluções baseadas na natureza, um agronegócio de baixo carbono e práticas sustentáveis avançadas. Estamos comprometidos com isso, mas só comprometimento não basta. A evolução energética tem custo e nos valerá algumas disputas, pois são interesses que trocam de mãos. Então, não é surpresa a insistência em novas áreas de exploração de petróleo, que merece ser empregado em usos mais nobres do que queimá-lo no motor.
Os combustíveis verdes estão chegando e farão esta substituição em terra, no ar e no mar. Mas isso leva tempo, exige ciência, inovação e conhecimento, diálogo e negociação, relacionamento e integração dos atores. Para ser viável, a transição precisa ter a forma de uma cesta de oportunidades e não parecer uma pista de obstáculos, com barreiras intransponíveis. Infelizmente, ainda é assim que muitos enxergam o futuro verde do Brasil e não é nada disso.