Moradia, substantivo feminino: gênero e política habitacional. Entrevista especial com Tuize Rovere

“Pensar em cidades inclusivas para as mulheres de forma interseccional é pensar em cidades que se preocupem com o cuidado com as pessoas e com a vida humana”, defende a arquiteta e urbanista

Conjunto habitacional Minha Casa, Minha Vida | Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil

Por: Baleia Comunicação | 19 Março 2025

No Brasil, 38,3 milhões de famílias são chefiadas por mulheres e mais da metade da população é feminina, segundo o último Censo do IBGE. Contudo, a abissal desigualdade de gênero persiste e se manifesta nas mais variadas perspectivas, refletindo diretamente na dinâmica social e na formação das cidades.

Nesse sentido, refletir sobre uma política habitacional sob a perspectiva de gênero é fundamental para reduzir as desigualdades que atingem às mulheres, especialmente as negras, como defende a professora Tuize Rovere. Para a arquiteta e autora da tese Territórios de (re)existência : cidades, mulheres e as redes de cuidado como subversão da política pública habitacional, “pensar em cidades inclusivas para as mulheres de forma interseccional é pensar em cidades que se preocupem com o cuidado com as pessoas e com a vida humana”.

À medida em que a vida das mulheres está suscetível a toda a sorte de violências, físicas e psicológicas, para atender ao bem-estar de determinada parcela da população, “seus corpos são controlados socialmente pelas construções de gênero e espacialmente através da segregação e da modulação de seus locais de moradia pela política pública”, pontua.

Na entrevista a seguir, concedida por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU, Tuize ainda comenta como o programa habitacional Minha Casa, Minha Vida atendeu aos interesses de proprietários imobiliários, incorporadores e empreiteiras. “No Brasil os conjuntos implementados a partir das políticas públicas habitacionais ainda obedecem às dinâmicas da especulação imobiliária”, assinala. “Assim, em sua maioria, são construídos em locais segregados, afastados dos centros urbanos e carentes de infraestrutura e serviços públicos”, coloca. Para a urbanista, as “sociedades capitalistas e patriarcais como a nossa resultam em cidades que servem à circulação de trabalhadores e capital e ignora as necessidades da vida humana”, assevera.

Tuize Rovere (Foto: Reprodução/Redes Sociais)

Tuize Rovere é professora do curso de Arquitetura e Urbanismo do Instituto Federal do Rio Grande do Sul, além de doutora e mestra em Planejamento Urbano e Regional/Desenvolvimento Regional pela Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC, 2018 e 2023) com tese premiada pelo Prêmio CAPES de Teses 2024. Atualmente cursa estágio pós-doutoral no Programa de Pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo Universidade Federal de Pelotas (PPGRAU/UFPel) com bolsa CAPES de pós-doutoramento. Tem pós-graduação em Gestão Ambiental pela Universidade do Oeste de SC (UNOESC, 2009). É graduada em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Federal de Pelotas (FAUrb/UFPel, 2005).

Confira a entrevista.

IHU – Em um país com uma desigualdade radical como o Brasil, qual o papel das políticas habitacionais, como o Minha Casa, Minha vida – MCMV?

Tuize Rovere – O Brasil é um país de desigualdades abissais e isso se reflete na formação das cidades, na medida em que elas resultam das dinâmicas sociais. Nesse contexto, alguns grupos são constantemente afastados de direitos básicos, como a moradia digna. Entre esses estão as mulheres, especialmente as mulheres negras, que sofrem com a precarização do trabalho e a falta de acesso a renda, o que resulta em periferização e vulnerabilidade. As políticas públicas habitacionais, se forem implementadas responsavelmente, inseridas na malha urbana, próxima de centros providos de infraestrutura e serviços públicos urbanos, especialmente aqueles que fazem parte da rede de suporte ao trabalho de cuidado, como creches, escolas e postos de saúde, entre outros, trazem autonomia e possibilidade de mobilidade social para essas mulheres.

IHU – Quais são, no contexto brasileiro, as principais potencialidades e limites das políticas habitacionais?

Tuize Rovere – No Brasil os conjuntos implementados a partir das políticas públicas habitacionais ainda obedecem às dinâmicas da especulação imobiliária. Assim, em sua maioria, são construídos em locais segregados, afastados dos centros urbanos e carentes de infraestrutura e serviços públicos. Além disso, nos últimos anos, essa política vem se concentrando em construções novas, deixando de lado outras possiblidades como o aproveitamento de imóveis não utilizados nos centros da cidade. Esse último fator vem sendo revertido timidamente. As políticas públicas habitacionais, apesar de apresentarem um grande potencial de mitigação de questões sociais, precisam ser implementados com responsabilidade e sempre atrelados a outras políticas públicas.

IHU – Em que sentido uma política habitacional se converte, como você propõe em sua tese, em uma biopolítica?

Tuize Rovere – Na medida em que se transforma em mais um mecanismo de controle de corpos no espaço, determinando indiretamente (ou diretamente) quem pertence ou não a determinados lugares na cidade, quem pode ou não acessar determinados bens e serviços urbanos, segregando e estigmatizando os moradores destes bairros e residenciais.

Em Santa Cruz do Sul [interior do Rio Grande do Sul], por exemplo, um dos conjuntos do MCMV construído na periferia mais empobrecida da cidade é chamado pelos moradores do centro de “Carandiru” e as pessoas que moram lá encontram dificuldade de acessar empregos e outros serviços centrais.

As mulheres são as mais afetadas por este tipo de controle na medida em que ainda são afetadas pela divisão sexual do trabalho e suas intersecções de raça, fazendo com que recaia sobre elas a maior parcela do trabalho não remunerado de cuidados. Também são elas a maior parte das titulares dos imóveis financiados através da política pública habitacional voltada a rendas mais baixas.

IHU – De que maneira esta biopolítica afeta, especialmente, as mulheres? E como subvertê-la?

Tuize Rovere – As mulheres são as mais afetadas por este tipo de controle na medida em que ainda são afetadas pela divisão sexual do trabalho e suas intersecções de raça, fazendo com que recaia sobre elas a maior parcela do trabalho não remunerado de cuidados. Também são elas a maior parte das titulares dos imóveis financiados através da política pública habitacional voltada a rendas mais baixas. Assim, seus corpos são controlados socialmente pelas construções de gênero e espacialmente através da segregação e da modulação de seus locais de moradia pela política pública.

Uma das formas de subversão desta dinâmica é a formação de redes de cuidado e ajuda entre elas, atuando onde o Estado é ineficaz ou se isenta. As redes de ajuda entre mulheres muitas vezes permitem que acessem o mercado formal ou informal de trabalho (mulheres que se dividem o trabalho de cuidados com os filhos) aumentando as suas possiblidades de autonomia e mobilidade social.

IHU – Como reconhecer modos de vida, sobretudo da população empobrecida e marginalizada, pode se converter em “fazer-cidade”? O que está por trás desta ideia? O que isso significa?

Tuize Rovere – Na medida em que a cidade é também resultado das dinâmicas das sociedades, e se as sociedades são diversas, é natural que cada diferente grupo social tenha as suas próprias demandas. O direito à cidade, como colocam teóricos como David Harvey, envolve o direito de configurar a cidade de acordo com suas próprias necessidades. Assim, os diferentes grupos sociais, como mulheres, idosos, populações racializadas, pessoas com deficiências e população LGBTQIA+ atuam para transformar o espaço urbano de acordo com suas próprias necessidades, fazendo cidades diferentes dentro da mesma cidade institucionalizada.

Conforme o poder público reconhece essas diferenças e passa a buscar atender a essas demandas, a cidade é transformada e se torna uma cidade mais justa e equânime. Essa é a importância de as políticas públicas urbanas olharem para os territórios, para as pessoas ali presentes e suas realidades distintas. Também é a importância da efetiva participação popular nas decisões.

IHU – Como o recrudescimento do conservadorismo político e o período pandêmico do Covid-19 impactaram na realidade das mulheres brasileiras, especialmente as da periferia?

Tuize Rovere – O conservadorismo atua no sentido de manter as mulheres subalternizadas, majoritariamente responsáveis pelo trabalho doméstico não remunerado e pertencentes ao mundo/espaço privado. Isso vulnerabiliza ainda mais as mulheres, dificultando seu acesso a emprego e renda e deixando-as mais suscetíveis à violência doméstica e ao empobrecimento. Além disso, na política, o conservadorismo busca reverter direitos alcançados à duras penas pelos movimentos feministas, como o direito ao aborto legal.

IHU – Muitos são autores, entre eles Henri Lefebvre, que trabalham a noção de que a cidade é um produto social e resultante de práticas sociais diversas. Poderia explicar melhor o que isso significa e que tipo de cidade emerge desta concepção?

Tuize Rovere – Acho que mais ou menos já citei como funciona o fato de as cidades serem resultado das dinâmicas que se desenvolvem nas sociedades. Sociedades capitalistas e patriarcais como a nossa resultam em cidades que servem à circulação de trabalhadores e capital e ignora as necessidades da vida humana. Se o trabalho reprodutivo recai, ainda hoje, majoritariamente sobre as mulheres e o espaço urbano serve à circulação de capital e não de pessoas, é evidente que esse grupo tem seus direitos espoliados, por exemplo.

IHU – Por que a periferia não deve ser vista e interpretada apenas como um espaço de pobreza, mas também, ou sobretudo, como um território de possibilidades e inventividade?

Tuize Rovere – No que diz respeito ao urbanismo e ao planejamento urbano, nas periferias existem tecnologias que surgem das necessidades humanas. Tecnologias e saberes de vida cotidiana, que podem ser grandes exemplos de humanização das cidades. Não se trata de romantizar a pobreza, mas de reconhecer esses saberes que trazem vitalidade e atuam no sentido de ajustar os espaços às diferentes demandas humanas.

IHU – Como estes territórios na composição com os corpos que o habitam produzem temporalidades urbanas que são próprias de nossa realidade social? O que essas temporalidades revelam sobre o mundo que vivemos?

Tuize Rovere – Não se pode afirmar que vivemos em uma única temporalidade. O tempo e o espaço são diferentes para os grupos sociais. Essas dinâmicas espaço-temporais são imbricadas com a materialidade dos diferentes corpos. Um exemplo: diferente dos homens, muitas mulheres deixam de frequentar determinados espaços ou mesmo de circular em determinados horários ou lugares por medo da violência de gênero. Da mesma forma, a população LGBTQIA+ tem sua presença em determinados espaços constrangida. Esses fatores podem implicar inclusive em tempos maiores de deslocamentos para acessar o trabalho ou o lazer. Isso são temporalidades espaciais diferentes que implicam em maior ou menor dificuldade dentro das cidades e se tratam de fatores que não podem deixar de ser levados em consideração nas políticas públicas urbanas.

IHU – Como resolver o problema do déficit habitacional no Brasil levando em conta as especificidades regionais e da população assistida?

Tuize Rovere – Além do que já foi dito, acredito que olhar para os territórios e ouvir as pessoas que neles habitam é crucial. Nesse contexto, o papel do poder público municipal como implementador das políticas públicas habitacionais é fundamental. A inversão do modelo atual também é uma solução importante: primeiro conhecer o público que será usuário da política habitacional, para só então pensar em projeto e implementação dessa política de acordo com as diferentes realidades. Para isso, a política deve ser transformada em política social, e deixar de obedecer ao mercado imobiliário.

Parece difícil, mas é muito possível, com investimento e qualificação técnica. Com a diminuição dos problemas sociais que são efeitos colaterais dessas políticas no contexto atual, os investimentos em outras políticas mitigatórias seria cada vez menor, assim como o abandono dos imóveis pela população que não se sente atendida por este modelo de produção de habitação.

IHU – Como pensar uma política habitacional a partir de uma perspectiva de gênero? 

Tuize Rovere – Levando em consideração a realidade material das mulheres na sociedade atual. Promovendo o apoio e distribuição do trabalho não remunerado de cuidado, a facilitação da mobilidade espacial urbana, o acesso ao emprego e renda, entre outras medidas que atuem no sentido da efetiva emancipação das mulheres. Isso se refletiria, na prática, em conjuntos habitacionais horizontais, próximos aos centros melhor providos de infraestrutura e serviços públicos, serviços públicos em quantidade e qualidade suficiente, segurança pública, qualidade construtiva etc.

IHU – Deseja acrescentar algo?

Tuize Rovere – Pensar em cidades inclusivas para as mulheres de forma interseccional é pensar em cidades que se preocupem com o cuidado com as pessoas e com a vida humana, o que inclui todos os grupos sociais, inclusive os homens.

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