Novo coronavírus é descoberto por pesquisadores. Enquanto isso, países não chegam a consenso para um acordo internacional sobre pandemias. Entrevista especial com Gonzalo Vecina Neto

Organização Mundial da Saúde tenta aprovar, desde 2021, tratado internacional sobre prevenção e preparação para pandemias. Para o professor, surgimento de novo patógeno é certo, é questão de tempo

Foto: Pixabay

Por: Baleia Comunicação | 25 Fevereiro 2025

Pesquisadores chineses identificaram na última terça-feira, 18 de fevereiro, um novo coronavírus em morcegos de Hong Kong, na China. O vírus pode ter potencial de transmissão em humanos semelhante ao SARS-CoV-2, responsável pela pandemia de Covid-19. A descoberta, conduzida pelo Instituto de Virologia de Wuhan e pelo Laboratório de Guangzhou, foi divulgada pela revista Nature

Enquanto o mundo se pergunta se estamos mais próximos de uma nova pandemia com essa revelação, a Organização Mundial da Saúde – OMS corre contra o tempo para aprovar um acordo internacional de prevenção e preparação para enfrentarmos a circulação de um novos vírus. O documento, que entrou em nova rodada de discussões no dia 17 de fevereiro passado, definirá os objetivos e os princípios fundamentais para estruturar a ação coletiva necessária no combate a surtos futuros.

Gonzalo Vecina Neto foi enfático ao dizer que teremos uma nova pandemia. Para o professor, “não é uma questão sobre se existirá ou não [uma nova pandemia], é uma questão de quando. Porque ela existirá sem sombra de dúvida”. No caso de nova emergência sanitária semelhante à Covid-19, o entrevistado lembra do impacto positivo que uma atuação coordenada pode ter. “Afinal de contas [durante a Covid] morreram mais de 20 milhões de pessoas. Em parte, essa mortalidade tão elevada é decorrente da nossa incapacidade de fazer uma articulação entre os países para reduzir essa mortalidade”, pontuou. “Em grande medida essa redução do impacto da pandemia dependia da transferência de recursos do Norte rico para o Sul pobre e isso não aconteceu”, defendeu. No futuro, sustenta que precisaremos “melhorar a capacidade de combater as notícias falsas e de, chegando à solução tecnologicamente acertada, fazer com que essa solução possa chegar de maneira minimamente igualitária no mundo todo”.

Na entrevista a seguir, concedida por telefone ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU, o pesquisador destacou os principais aspectos que estão travando a aprovação do acordo e falou sobre o conceito de Uma Só Saúde (One Health), proposto pela OMS. Segundo aponta, os países do Sul Global entendem que a ideia de uma só saúde também está ligada à saúde social, isto é, à desigualdade social, ponto de divergência com os países do Norte rico. Comparando a distinta expectativa de vida em duas cidades brasileiras, Vecina Neto explica que “isso não tem a ver com saúde humana, animal, vegetal e ambiental, mas com desigualdade social”.

Olhando em perspectiva, o entrevistado também comentou os erros na condução da pandemia de Covid-19. “Nós vimos aqui no Brasil as consequências de chegar um pouco mais atrasado na vacina, houve um aumento do número de mortes. Se tivéssemos chegado antes à vacina, teríamos melhores condições de proteger nosso povo”, frisou Gonzalo Vecina Neto.

Gonzalo Vecina Neto | Reprodução/Youtube A12

Gonzalo Vecina Neto é graduado pela Faculdade de Medicina de Jundiaí e mestre em Administração, Concentração de Saúde, pela Escola de Administração de Empresas de São Paulo, da Fundação Getulio Vargas – FGV/EAESP. Atuou como secretário municipal de saúde de São Paulo, secretário nacional de vigilância sanitária do Ministério da Saúde e diretor presidente da Agência Nacional de Vigilância Sanitária – ANVISA, órgão que ele ajudou a fundar. É um dos idealizadores do Sistema Único de Saúde – SUS, professor assistente da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo – USP desde 1988 e ex-superintendente do Hospital Sírio-Libanês desde 2007. 

Confira a entrevista.

IHU – A Organização Mundial da Saúde – OMS está preparando um acordo internacional sobre pandemias. Como costumam ser esses documentos? O que devemos esperar?

Gonzalo Vecina Neto – Nós estamos sobre o impacto do que foi a pandemia da Covid-19. Esse impacto é muito grande, afinal de contas morreram mais de 20 milhões de pessoas. Em parte, essa mortalidade tão elevada é decorrente da nossa incapacidade de fazer uma articulação entre os países para reduzir essa mortalidade. Em grande medida essa redução do impacto da pandemia dependia da transferência de recursos do Norte rico para o Sul pobre e isso não aconteceu.

A existência da Organização Mundial de Saúde e da Organização das Nações Unidas – ONU, no caso, justifica-se pelo fato que, apesar de existirem fronteiras entre os países, essas fronteiras não são obstáculos físicos, o mundo é um mundo só. Por dia, 30 milhões de pessoas se deslocam só de avião, então, não existe isolamento entre países. Os países formam um conglomerado mundial. Daí, quando acontece de ter um microrganismo com a capacidade do SARS-CoV-2 de se espalhar e produzir doenças e morte, se não tivermos um comportamento minimamente estruturado, a tendência é aumentar o número de mortes.

Nós vimos aqui no Brasil as consequências de chegar um pouco mais atrasado na vacina. Houve um aumento do número de mortes. Se tivéssemos chegado antes à vacina, teríamos melhores condições de proteger nosso povo. Da mesma maneira, em boa parte do Sul Global não chegaram vacinas, ao tempo que os Estados Unidos e a União Europeia compraram quatro ou cinco vezes mais o que necessitariam para cobrir suas respectivas populações. Mas, no Sudeste Asiático e na África, não foram distribuídas vacinas. Então, existem questões muito importantes a serem discutidas se quisermos ter um mundo que sofra menos com esse tipo de evento global.

IHU – Os EUA, seguindo as diretrizes trumpistas, têm deixado de ser signatário de instituições e acordos de governança global, saindo recentemente da OMS. O que isso significa? Qual o impacto em termos globais?

Gonzalo Vecina Neto – Tem dois aspectos. Um deles é o financeiro. Os Estados Unidos é um dos grandes financiadores da OMS e é um dos grandes financiadores porque é um país grande, com 320 milhões de habitantes. É a maior economia do mundo. Então, não é que ele faça mais do que deveria fazer, ele faz o que deveria fazer pelo tamanho que tem. Os EUA são responsáveis por cerca de ¼ do financiamento da OMS. Portanto, a OMS vai perder esse financiamento. Isto é ruim, sem dúvida nenhuma.

Além desse financiamento à OMS, a Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (USAID, na sigla em inglês), que foi um órgão criado com objetivos neocolonialistas – isso é importante que fique muito claro, a USAID era e é até hoje um órgão a serviço do poder (Big Power) americano –, também seu fim fará falta ao mundo, que vai sentir falta dos recursos no controle de muitas dessas doenças infectocontagiosas que temos ao redor do globo. Este é um lado.

EUA: projeto de poder por meio da saúde

O outro lado é que os Estados Unidos têm bases militares em mais de 80 países. O poder americano se projeta no mundo todo. Uma das maneiras desse poder se projetar é através da saúde e do controle de patógenos que podem estar surgindo em qualquer lugar do mundo.

Estou repetindo: um patógeno que surge em qualquer lugar do mundo surgirá no mundo todo se ele tiver capacidade para isso. Se pegarmos como exemplo o Ebola: por que ele nunca saiu da África? Porque não dá tempo, ele mata antes de sair de lá. Agora, o SARS-CoV-2 saiu de Wuhan e se espalhou pelo mundo, porque tem um tempo de latência entre a infecção e a doença de uma semana a dez dias, o que permite que ele tenha se deslocado pelo mundo todo. O Ebola tem um tempo de latência de um ou dois dias e não dá tempo.

O fato é que entender e ter acesso a esse mundo é fundamental para um país que tem o projeto de poder que os Estados Unidos têm. Eu não acho bom esse projeto de poder, que é um projeto de dominação em última análise, mas ele existe. E o que o Trump está fazendo é asfixiar esse projeto de poder, que pode ter consequências positivas para o mundo, mas também terá consequências negativas.

O acesso aos laboratórios que existe lá no Centro de Controle de Doenças (CDC, na sigla em inglês) é muito importante. Nós mesmos no Brasil, em vários momentos de crises sanitárias que tivemos no passado, recorremos ao CDC para conseguir entender que tipo de microrganismo estávamos enfrentando. E assim faz o mundo inteiro com novos vírus, bichos etc. Essa é uma participação importante.

Os Estados Unidos, ao mesmo tempo que faz esse “favor para o mundo”, recebe, em contrapartida, uma atualização fantástica sobre esses novos patógenos, que poderão ser importantes para eles do ponto de vista sanitário, porque podem ser bichos que podem vir a produzir uma nova pandemia, podem ser utilizados como armas biológicas – esses países nunca deixaram de pensar nisso. Não é por outra razão que os Estados Unidos e a Rússia são os dois detentores, ainda, de material viral viável da varíola. Um diz que é para se proteger do outro, mas a perspectiva é que eles têm lá a possibilidade de ter uma arma microbiológica.

Os Estados Unidos, ao sair da OMS, vão criar um problema importante do ponto de vista do financiamento das ações de saúde a nível global, mas também vão perder um instrumento importante, de estar presente no mundo, que é um projeto de força dos americanos.

IHU – Como a saída dos EUA da OMS vai impactar na discussão e, talvez, implantação do acordo internacional sobre pandemias?

Gonzalo Vecina Neto – O acordo está engripado em pelo menos dez pontos. Um ponto é: a reforma do regulamento sanitário internacional parte de uma premissa de um novo conceito chamado Uma Só Saúde (One Health). A ideia de One Health é que existe uma saúde e essa saúde tem que ser olhada do ponto de vista da saúde humana, da saúde animal, da saúde vegetal e da saúde ambiental. É um conceito interessante.

One Health e a desigualdade social

Agora, nós do Sul Global achamos que One Health é uma parte dessa saúde única, que tem uma outra parte dessa saúde única que são os determinantes sociais. Quando falamos de saúde única, tudo o que acontece no mundo com a saúde acontece por causa da saúde humana, animal, vegetal e ambiental, mas existe uma coisa mais, que é a saúde social.

Por que quem nasce na cidade de Tiradentes (SP) tem uma expectativa de vida de 65 anos, enquanto quem nasce no Alto da Lapa (SP) tem uma expectativa de vida de 85 anos? Qual é a razão? Isso não tem a ver com saúde humana, animal, vegetal e ambiental, mas com desigualdade social. Essa é uma discussão importante, principalmente porque o segundo ponto em que há divergência é a questão da transferência de tecnologias.

Transferência de tecnologia

Sempre que acontece algum tipo de novo evento em saúde, há uma corrida para descobrir como tratar esse novo evento. É óbvio que os países desenvolvidos estão melhores armados do ponto de vista de conhecimento científico e tecnológico para descobrir novas drogas. Eles chegam antes a essas novas drogas. Veja o caso da vacina da Covid-19: veio da China, pela descoberta de novas vacinas na Inglaterra (AstraZeneca). Pela Alemanha, a vacina que foi transferida para Pfizer; nos Estados Unidos, a Moderna. Foi no Hemisfério Norte que essas coisas aconteceram. Como faz para essas vacinas chegarem na África e na América do Sul? Vendendo. Mas esses países não têm condições de comprar.

A ideia de transferência de tecnologia para esses países, para que ela possa ser produzida em fábricas do Sul Global, como a que existe na Índia, ou a transferência de vacinas prontas, muito subsidiadas, seria importante. Esse é o segundo ponto de falta de entendimento entre os países que compõem a Assembleia Mundial de Saúde.

Transferência de conhecimento

O terceiro ponto é sobre a transferência de conhecimento sobre os patógenos que estão circulando. Como se faz essa transferência? Porque o bicho surge num país de terceiro mundo. Vamos supor que surja um novo patógeno aqui na Amazônia. Quem vai identificar esse novo patógeno é o Brasil. Como vamos transferir o conhecimento sobre esse novo patógeno para o mundo e qual será a consequência dessa transferência?

Como aconteceu no caso de Monkeypox — Mpox. Ela surgiu no Congo. Como foi disseminada e qual foi a consequência para o Congo do ponto de vista de proteger a sua população? Nada. Até hoje o Congo vive uma epidemia de Monkeypox e não foi transferido o conhecimento. A única forma de resolver essa epidemia seria vacinar a população do país. Com isso, haveria chances de a epidemia ser sufocada, mas não se transferiram vacinas da única fábrica do mundo que produz a vacina contra a varíola, que fica na Dinamarca. Esses três pontos estão criando problemas para a Assembleia Mundial de Saúde.

Propriedade intelectual

Agora, os Estados Unidos fazem parte preponderante dessa equação. Eles são um país que defendem a proteção patentária. Nós temos que proteger a propriedade intelectual de ideias, as patentes. Elas estimulam os desenvolvedores a desenvolver porque tem um prêmio importante, que é a exploração das consequências econômicas no mundo inteiro durante 20 anos da descoberta de um novo medicamento.

Porém, se estivermos vivendo uma emergência sanitária, como a de Covid-19, como vamos fazer para diminuir o impacto global da pandemia? Essa pergunta precisa ser respondida, porque, se na África continuar a ter casos, isso significa que o mundo inteiro vai sofrer. É necessário ter a consciência disso. Como fazer com que esses novos tratamentos cheguem ao mundo inteiro, particularmente no terceiro mundo?

Esse é um jogo jogado pelos países centrais e é óbvio que os Estados Unidos têm um peso muito grande.

IHU – Quais são os principais riscos de acordos bilaterais quando se trata de questões de saúde pública?

Gonzalo Vecina Neto – Os acordos bilaterais têm que ser primeiro multilaterais. Nesse sentido, a OMS é uma possibilidade muito importante e nós não podemos descartar. Temos que aprender muito ainda.

Como vimos durante a pandemia de Covid-19, a OMS falhou muito porque não conseguiu convencer grande parte dos países sobre a importância [das medidas sanitárias], apesar dos técnicos. Não existe um corpo funcional na OMS – quem trabalha lá vem dos países. Portanto, o corpo funcional da OMS é provido pelos países e quem hoje trabalha nela vai voltar para seus países. Mas foi esse corpo que propôs a ideia de lockdown, de ficar em casa, de usar máscara, da higiene das mãos, da vacinação.

Discutiu-se muito a ideia dos produtos que poderiam ser terapêuticos e acabaram mostrando que não eram terapêuticos. É o caso da Cloroquina, da Ivermectina etc. Vimos que nessa discussão dos medicamentos foi muito importante a coordenação que a OMS deu. Da mesma maneira, surgiram alguns medicamentos que funcionam e que tiveram a participação da OMS para a discussão de que poderiam ser incorporados, apesar de que todos eles eram muito caros, os anticorpos monoclonais, os últimos medicamentos que acabaram chegando ao mercado com capacidade real de tratar a doença.

A OMS e essa questão dos acordos multilaterais são fundamentais. Não tenho a menor dúvida de que teríamos um mundo melhor se tivéssemos uma capacidade de governança desse mundo melhor. E essa capacidade de governança melhor implica em ceder algum poder que é de um determinado país para um órgão bilateral como a OMS. Se não conseguirmos dar esse espaço, não conseguiremos enfrentar melhor uma próxima pandemia. E não é uma questão sobre se existirá ou não, é uma questão de quando. Porque ela existirá sem sombra de dúvida.

IHU – Olhando em perspectiva, quais foram os principais erros dos Estados em relação à prevenção e ao combate à pandemia de covid-19?

Gonzalo Vecina Neto – Em primeiro lugar, houve muita fake news e muitos Estados foram incompetentes no combate às notícias falsas do ponto de vista da existência de medicamentos absolutamente desprovidos de qualquer tipo de comprovação científica, como é o caso da Cloroquina e da Ivermectina. Ao mesmo tempo, demoramos para ter acesso às vacinas, por causa da capacidade produtiva do mundo. De repente, ter que vacinar 8 bilhões de pessoas com fábricas que não têm essa capacidade de produção, os estoques de produção são menores e o tempo de produção é de três a quatro meses, torna-se um problema muito importante.

Precisamos melhorar a capacidade de combater as notícias falsas e a capacidade de, chegando à solução tecnologicamente acertada, fazer com que essa solução possa chegar, de maneira minimamente igualitária, no mundo todo. Esse foi um erro importante, não somente em relação à vacina, mas também em relação aos poucos medicamentos, mas que acabaram aparecendo e que são todos muito caros.

O Paxlovid é um medicamento que custava quase 500 dólares por tratamento. Era um tratamento que precisava ser dado precocemente, ou seja, para todos os que estivessem positivados para o teste do PCR-RT. Então, não dava para escolher os mais graves, o máximo que dava para escolher era o que tivesse o maior risco, como os idosos e as crianças. Mesmo assim, seria um investimento muito elevado para uma doença que tem uma capacidade muito grande de espalhamento.

Atuamos mal na nossa comunicação com a sociedade, na destruição das notícias falsas e na comunicação das boas notícias – lockdown, máscaras e vacinas.

Lockdown escolar

Outro erro pouco menor, mas que necessita ser levado em conta também, foi a forma como tratamos a questão da saúde das crianças em idade escolar. Nós deveríamos ter sido mais duros em manter as crianças na escola. Frente a um tipo de pandemia como essa que tivemos, acredito que ganharíamos mais com um modelo mais eficiente de funcionamento das escolas. As crianças deveriam continuar indo à escola e, à medida que houvesse casos na escola, as aulas seriam suspensas durante o período de 15 dias e depois retornam às aulas. Fica no abre e fecha, mas as crianças tinham que continuar indo à escola para não perderem a capacidade de se comunicarem. A escola tem uma importante função de desenvolver a capacidade de convivência das crianças, essas crianças dessa geração perderam dois anos de aprendizado de convivência na maior parte do mundo.

Alguns países, principalmente os europeus, mantiveram as aulas nesse esquema – abre e fecha. Mas em alguns países, como no Brasil, fechamos radicalmente as unidades escolares. Esse foi um erro que temos que discutir porque estamos falando da proteção da saúde dos professores e esquecendo da proteção da geração de crianças e adolescentes. Temos que discutir para saber o que e como nós queremos. Isso poderia ter sido feito de forma mais inteligente.

Critérios de vacinação

Tem outro ponto interessante que é o critério utilizado para definir quem toma vacina primeiro. Existem dois critérios que utilizamos com muita frequência na saúde pública. Um deles é o de grupo de risco, que é o critério de probabilidade de uma determinada pessoa ter aquela doença. Existe outro critério que é o critério de vulnerabilidade, que é o de ser humano que está exposto à doença. Uma coisa é o risco e outra é a vulnerabilidade.

Nós usamos, para tomar a decisão de vacinar, o critério de risco. A cada mil doentes com menos de 40 anos, morriam quatro pessoas; a cada cem pessoas com mais de 80 anos, morriam 15 pessoas. Então, o risco de morrer por ser idoso é muito maior do que quando se é jovem.

Ao mesmo tempo, existiam atividades que não poderíamos suspender. Por exemplo, os trabalhadores da saúde. Então, resolvemos vacinar o pessoal da saúde, porque eram mais vulneráveis. Agora, esse mesmo conceito não foi utilizado para outras atividades que precisavam continuar funcionando, como o transporte coletivo; nós não vacinamos os motoristas de ônibus. A questão dos trabalhadores do comércio de alimentos e medicamentos, nós não vacinamos essas pessoas e eles tinham que ir trabalhar todos os dias e se expor ao risco; o mesmo com os professores. Nós só tomamos essa decisão da vulnerabilidade em relação aos trabalhadores da saúde. É a outra questão que teremos que revisitar: risco ou vulnerabilidade?

IHU – O senhor comentou que não lidamos bem com as notícias falsas durante a pandemia e há dados que indicam que a extrema-direita vem politizando a proposta do tratado internacional. O negacionismo exerce algum papel no adiamento da aprovação do documento?

Gonzalo Vecina Neto – Sem dúvida, o negacionismo está influenciando. Aliás, essa é uma questão que deveria vir mais à tona. Ficamos falando em direita e esquerda, mas falando somente disso esquecemos do que é importante. Eu gostaria que parássemos de falar em direita ou esquerda e falássemos em viver ou não viver, porque é disso que se trata. Quando falamos que a esquerda é a favor da distribuição de renda e que a direita é contra, uma parte do pessoal da direita é contra. Mas até que ponto ela é contra? Essa é uma discussão que precisamos começar a ter.

Será que tem gente que é favor de que outra pessoa morra de fome? Acho que não existe direita no mundo que seja a favor de que pessoas morram de fome. Todos, a direita ou a esquerda, querem que as pessoas tenham acesso a alimentos. Precisamos pôr de lado essa questão de direita ou esquerda e olhar para a necessidade de ter um mundo melhor.

Tenho certeza de que a direita e a esquerda querem um mundo melhor, o que muda é o como. Eu entendo que uma parte da direita quer um mundo melhor, que tenha pessoas que saibam pescar, e não que recebam peixe de graça. Há, porém, limites para isso. Não tem como diminuir a pobreza no Brasil sem políticas de distribuição de renda como o Bolsa Família.

IHU – Vivemos globalmente em um sistema capitalista em que as farmacêuticas concentram grande poder em termos tecnológicos, mas que na pandemia de covid-19 recorreram a recursos estatais para acelerar o desenvolvimento de vacinas. É possível pensar em acordos em que os países membros não fiquem dependentes das indústrias farmacêuticas?

Gonzalo Vecina Neto – Primeiramente, as indústrias estatais, como é o caso da Fiocruz e do Instituto Butantan, são fundamentais, são polos de produção de medicamentos. A outra questão é como, em situações de crise, os Estados atuam sobre os setores privados para garantir que seja dado acesso às pessoas a produtos que são fundamentais para que a vida em sociedade continue. Essa é uma discussão que está em aberto e que precisa ser melhor conduzida.

As indústrias são privadas, porém, em crises, tudo precisa ser de todos. E precisa haver regras para que este “tudo” funcione adequadamente. Temos que conseguir fazer com que os medicamentos cheguem aonde tem que chegar, independentemente do financiamento dessas empresas.

Não estou propondo que elas fiquem no prejuízo, mas algo tem que ser pensado de forma mais inteligente que garanta a razão de ser da existência das empresas, para que ela continue existindo. São as pessoas, os consumidores, se eles morrerem, acabam as empresas. É obrigação dos estados e das organizações (por exemplo, a OMS) conseguirem criar soluções para esse problema, de um acesso que seja garantidor da existência de vida. Esta questão não está equacionada. Precisamos chegar mais próximos a alguma alternativa.

IHU – Olhando a questão da saúde em sentido mais amplo, qual a importância da vigilância sanitária e fitossanitária no comércio agrícola internacional? Qual o reflexo disso no combate a pandemias?

Gonzalo Vecina Neto – Fundamental. A vigilância sanitária e da fitozoossanidade é vital. Hoje, grande parte do comércio de alimentos no mundo não é um comércio de alimentos, é um comércio de alimentos seguro – safety food. Está todo mundo atrás de garantir que o alimento vendido seja um alimento seguro para que sua população não seja infectada por organismos que foram produzidos fora do país.

Essa é uma questão vital: todos os países, particularmente os grandes produtores de alimentos, necessitam ter um conjunto de regras sanitárias muito duras para garantir segurança sanitária. É preciso ter rastreamento da produção de alimentos desde o início da plantação ou da criação, no caso de animais, até o abate e as condições de abate para que esse alimento possa ser encaminhado à exportação.

É óbvio que nenhum país produz tudo, então, há um sistema relativamente estruturado. A Organização Mundial do Comércio – OMC tem um conjunto de regras para termos a circulação de produtos, mercadorias e serviços entre os países. Isso faz parte da ordem mundial.

Os EUA estão conseguindo solapar e destruir essa mesma ordem. Se isso for destruído, parte da segurança zoossanitária poderá ser perdida. Além de um grande exportador, os EUA são também um grande importador. As consequências serão ruins para todo mundo. É muito difícil chegar ao estado que chegamos, de organização do comércio mundial, tanto do ponto de vista econômico quanto do ponto de vista fitozoossanitário. Esse é um risco importante que estamos correndo agora também.

IHU – Nem mesmo as centenas de milhares de mortes em nível global bastou para sensibilizar os países ricos e parte da população brasileira em relação à calamidade que foi a pandemia de covid-19. Diante deste cenário, há algo que nos sugira algum otimismo em relação a este acordo previsto pela OMS?

Gonzalo Vecina Neto – Este acordo, neste ano, no que é a reunião número 77 da Assembleia Mundial de Saúde, está perdida, não há tempo. A cooperação internacional se faz através de acordos duramente negociados. Isso porque cada um tem sua visão particular e fazer todo mundo se centralizar em uma visão comum não é simples. Daí a importância de serem países que têm uma maior capacidade de liderança dessa discussão e países que tenham uma importância econômica maior, como é o caso dos Estados Unidos, no comércio mundial, são fundamentais que participem desses acordos.

Um só mundo

Nós, cidadãos comuns, não temos uma noção minimamente presente do que é o conjunto de coisas que constituem a multilateralidade. Então, tem um órgão da ONU que trabalha pensando nas crianças (UNICEF), tem outro na educação (UNESCO), outro nas questões relativas ao trabalho (OIT), tem outra na saúde (OMS), outra que pensa nos refugiados por causa das guerras (ACNUR), tem outra que pensa nos alimentos (FAO).

Ou seja, tem um número grande de organizações multilaterais que trabalham para conseguir pensar o mundo como sendo um mundo só, porque do ponto de vista físico nós temos um mundo, não vários mundos, e esse mundo está sendo destruído. Precisamos aumentar nossa capacidade de olhar para esse mundo como um todo.

Em suas múltiplas formas de organização, a ONU é uma tentativa para isso. Mas precisamos acordar. Primeiro o cidadão comum, que obviamente não entende nada disso. O que será que todos nós deveríamos entender para fazer esse negócio funcionar? Óbvio que não dá para entender tudo, mas tem o mínimo de coisas que todos deveriam saber. Deveria haver circulação de conhecimento para que todos entendessem. A imprensa tem um papel importante, pois é ela que acaba levando esse conhecimento à população. Está aí uma boa discussão.

IHU – Considerando o que é sabido em termos de saúde pública e devastação da biodiversidade global, existem evidências de que podemos ter uma nova pandemia no médio ou longo prazo? Quais devem ser seus impactos?

Gonzalo Vecina Neto – Eu não tenho dúvida que nós teremos outras pandemias. Nós tivemos pandemias, mas temos pouca lembrança disso. Para falar só deste século que começamos a viver há pouco tempo, tivemos em 2003 a gripe suína; em 2009, o H1N1; em 2012, a gripe do camelo; em 2015 e 2016, houve uma espécie de gripe aviária; e, em 2020, tivemos a pandemia de Covid-19.

A história mostra que é assim: vamos continuar tendo a liberação de patógenos desconhecidos com a capacidade de produzir doenças. Não há dúvida. A questão é como reagiremos frente aos novos acontecimentos que vão ocorrer. Como estaremos preparados para eles? Como estaremos preparados para saber que tem um morcego ou outro bicho que está pressionado pela evolução da sociedade?

O que aconteceu na China, que é um país de 11 milhões de quilômetros quadrados e com 1 bilhão e 400 milhões de habitantes, foi uma pressão ecológica sobre os bichos que vivem naquele país. Essa pressão aconteceu sobre um morcego, que tem um microrganismo vivendo em simbiose com esse morcego, que é o SARS-CoV-2, e, de repente, esse vírus, dada a pressão ecológica, saltou para os mamíferos. Essa pressão ecológica estamos o tempo todo fazendo sobre os nossos organismos.

O Brasil tem seis biomas: Pampa, Cerrado, Pantanal, Mata Atlântica, Caatinga e a Amazônia. São seis ambientes diferentes que estão sob pressão do homem e, portanto, os microrganismos, os bichos que moram nesses locais, estão sob nossa pressão. Se eles conseguirem um jeito de viver diferente, pode ser que consigam viver melhor, que é o aconteceu com o SARS-CoV-2.

Ou seja, estamos vivendo isso e é por este motivo que não há dúvida de que teremos uma nova epidemia. Como vamos tratar? Como vamos identificar? Qual o tipo de vigilância? Nós temos nos seis biomas, uma vigilância quase zero. Faremos isso correndo atrás de morcego, macaco, bicho-preguiça, de boi e de frango para saber que tipo de bicho. Capacidade de sequenciamento genético é uma capacidade complexa e o Brasil sabe fazer isso. A nossa querida Ester Sabino, pesquisadora do Instituto de Medicina Tropical (IMT/USP) identificou o SARS-CoV-2 no Brasil em fevereiro de 2020. Foi muito rápido, mas é uma pesquisadora, fez aquilo quase que por diletantismo. Nós não temos uma organização voltada para estar fazendo isso por obrigação, como é o caso do CDC dos Estados Unidos, da China, da África ou dos países europeus. Temos que entender essa dinâmica, caso contrário não conseguiremos sobreviver a uma nova pandemia.

IHU – O Brasil é referência internacional em diferentes campos de pesquisa e possui universidades que estão entre as melhores do mundo. Por que o país nunca criou um centro de pesquisas e controle de doenças?

Gonzalo Vecina Neto – O Brasil, de certa forma, se considera um país abençoado por Deus – o que provavelmente seja. Não tem terremoto, não tinha até agora eventos climáticos extremos. De repente, começou a ter chuvas, desabamento de encostas e começou a ter temperaturas elevadas. Ainda não tem vulcão e acho que vai continuar não tendo; não temos tremor de terra. Mas os fenômenos climáticos extremos chegaram e nós temos que desenvolver uma capacidade de responder melhor a eles. E estamos batendo cabeça nesse sentido, fazendo sirenes, enviando mensagem por celular. Nós não criamos uma condição para defesa da sociedade que mereça esse nome. Essa é uma falha do Brasil.

A criação de um Centro de Controle de Doenças é uma dessas falhas. Necessitamos criar um Centro de Controle que seja um órgão com autonomia para poder se deslocar muito rapidamente. Ele deve estar vinculado ao Ministério da Saúde, mas sem uma subordinação. Essa é uma característica que deveríamos aprender com os CDCs que existem no mundo, pois eles são vinculados aos seus respectivos ministérios da saúde, mas são independentes, porque precisam ter uma capacidade mais rápida de se deslocar, de chegar nos lugares, de fazer investimentos em investigações que normalmente não seriam feitas porque não teriam uma adequada avaliação de risco.

IHU – Qual a importância das grandes economias globais olharem para os países pobres no sentido de chegarmos a um consenso em relação à prevenção e ações de mitigação caso tenhamos outra pandemia?

Gonzalo Vecina Neto – Essa é uma pergunta muito importante, mas a resposta é muito ruim. O que eu ganho com isso é a pergunta. Como não existe nenhum ganho imediato, o ganho não é perceptível. Se descobrirmos um jeito de redistribuir dinheiro, a consequência disso será um mundo melhor. Um mundo melhor para quem? Para aqueles que vivem mal. Quem tiver que dar do seu para redistribuir a riqueza, diretamente não vai perceber nenhuma mudança, logo, é muito difícil conseguir fazer com que os países ricos doem para os países pobres. Da mesma forma, é muito difícil no Brasil conseguir que os ricos doem para os pobres.

Apenas uma política tributária mais justa – quem ganha mais paga mais – é que pode gerar algum nível de redistribuição de renda. Basear a redistribuição de renda em que “benefício eu vou ter” nunca será possível. Agora, essa redistribuição é fundamental para que o mundo seja um lugar melhor para todos, e não só para uma parte.

A única coisa que precisamos entender é que um mundo para parte da população viver será autodestruído, eu não tenho dúvidas. Ou entendemos que precisamos ter um mundo para todos viverem melhor – e isso implica em equalizar, diminuir a desigualdade entre as pessoas – ou não existirá mundo em um futuro próximo.

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