“O Dia de Finados não celebra a morte dos nossos irmãos humanos, celebra o absoluto de sua vida, na memória nossa e na memória de Deus, em que, assim esperamos, como Jó, estejam completos, em espírito e ‘carne’, como diz o povo, e ‘vejam a Deus’, isto é, eternamente o contemplem e da sua luz se alimentem, a mesma luz que o Evangelho buscou trazer até nós”, afirma o pesquisador português
O que a possibilidade da morte significa para cada um de nós? Esta pergunta conecta-se com outra, a do sentido: “Para quê? – eis a grande questão, num mundo que se perde em perguntar ‘por quê?’”, diz Américo Pereira, professor na Faculdade de Ciências Humanas, da Universidade Católica Portuguesa, na entrevista a seguir concedida por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU. Segundo ele, diante da pergunta sobre a morte, a questão que se coloca é a da vida, a do sentido. "É a questão acerca do sentido que motiva o ser humano, ou que o desmotiva. A reflexão acerca da morte nenhum sentido faz se não for uma reflexão acerca da vida, mas não da vida como coisa de irrefletido bicho, antes como uma vida dedicada ao bem possível, concretizando tal bem”.
Na atual conjuntura internacional, em que o mundo assiste à terceira guerra mundial aos pedaços, como tem denunciado o Papa Francisco, “o que se pode e deve perguntar é o seguinte: que sentido faz promover a morte, sobretudo de inocentes, assim lhes roubando literalmente – pois de violência se trata – as suas possibilidades próprias?”, sublinha, ao comentar as contribuições da Teologia na reflexão sobre os conflitos em curso. Para ele, somente o espírito de Caim explica a realidade da guerra. “Caim é o símbolo, o ‘eikon’ da concretização do mal, na sua forma mais radical, que consiste em aniquilar mundanamente esse que não é apenas o semelhante humano do humano, mas o semelhante humano do divino: ao matar Abel, Caim mata também Deus, porque, no irmão, que assim nega, mata a imagem e semelhança de Deus, deste modo, matando também Deus”, exemplifica.
A data desta quinta-feira, 02-11-2023, em que a Igreja celebra o Dia de Finados, sublinha, “pode nada dizer, se se viver segundo uma instantaneidade totalmente insensível, mesmo ao instante”. Todavia, acrescenta, “se se viver em regime de absoluto de vida, em que a própria possibilidade da morte faça parte de tal viver e de tal vida, como possibilidade de uma outra forma, metamórfica, mas, ainda, nossa, minha, de vida, então, e sem ilusões, mas com fé, celebrar, não a morte, mas a vida dos que já morreram, na esperança da sua sobrevida, faz todo o sentido, pois, como Pascal, pomos as moedas da nossa aposta na melhor chance, a do eterno ato de amor de Deus, que se fez vida em cada uma de suas criaturas, não para que morressem, mas para que, com ele e como ele, em seus modos próprios, vivessem”.
Nesta entrevista, Pereira reflete sobre a morte e a vida à luz da Teologia e explica porque Cristo é o paradigma para a vida humana. “Após haver Cristo, é este o paradigma de leitura de ação, mesmo para Jó; aliás, lido à luz do paradigma Cristo, Jó resulta ainda mais excelso, pois é ‘apenas’ humano, o que faz ressaltar a grandeza da criação, assim tão próxima de um absoluto de perfeição já em Jó, que não é Deus, mas que é ‘muito divino’, como aproximação em imagem e semelhança a Deus. Se todos fossem como Jó, não haveria pecado. Não haveria guerra”.
Américo Pereira (Foto: Universidade Católica Portuguesa)
Américo Pereira é licenciado, mestre e doutor em Filosofia pela Universidade Católica Portuguesa, Lisboa. Professor na Faculdade de Ciências Humanas da Universidade Católica Portuguesa, é membro dos conselhos científicos da Faculdade de Ciências Humanas e do Instituto de Ciências de Religião da mesma instituição. Entre seus livros, destacam-se: Ontologia e práxis em Louis Lavelle (UCP, 2013); Ética e teologia: declinações de uma relação (Editorial Cáritas, 2016); Entendimento global e compromisso com as periferias (Editorial Cáritas, 2017); Metafísica do tempo na obra de Louis Lavelle (UCP Editora, 2018); Humanização e cuidado: da arte de cuidar (Editorial Cáritas, 2018); Razões da fé: acreditar e refletir (UCP, 2019).
IHU – Que contribuições a Teologia oferece à reflexão sobre a terceira guerra mundial aos pedaços, como o Papa Francisco tem denominado as guerras e os conflitos em curso no mundo?
Américo Pereira – O papel da Teologia, permito-me dizer das Teologias, consiste em sempre observar a realidade e interpretá-la, não como o faz qualquer outra forma de pensar, mas tendo em conta os princípios – não os valores, que são de criação puramente cultural e situada – emergentes, no caso das Teologias cristãs, quer dos Textos Sagrados, quer do que, na tradição, respeita tais mesmos princípios. Tudo o que não os respeita não pode ser considerado “cristão”. Ora, o princípio fundamental, no que concerne à questão em causa, é o da paz. A Teologia precisa, assim, pronunciar-se universalmente em favor da paz. Da paz como horizonte transcendental possível, mas também da paz como ato nosso de cada dia. Tal não significa um pacifismo a qualquer preço, que pode, ele mesmo, contribuir para acrescentar ao que já há de mau na guerra, por omissão de ação, mas ter de trabalhar sempre em ordem ao mencionado horizonte de paz. Isto significa que o único guia para a reflexão, a fim de escapar a captações ideológicas, sectárias várias etc., só pode ser, no caso da Teologia cristã, Cristo e o seu modo de agir. Nenhum outro pode permitir o conseguimento da paz, pois nenhum outro se baseia num sentido principal de serviço ao bem humano universal.
Pode começar-se pela seguinte questão: será que pode haver paz enquanto não reinar um clima de bem para todos os seres humanos, sem exceção? Não se trata de apontar para qualquer forma de utopia, mas de cumprir o desiderato que Agostinho percebeu como “cidade de Deus”, realidade humana, inspirada no amor de Cristo, em que o bem é comum a todos, pois todos são imagem e semelhança de Deus, isto é, passíveis de bem. A guerra nasce sempre da negação desta possibilidade universal de bem para todos, fazendo, por parasitismo, do bem do outro o meu bem, assim o diminuindo. A paz implica sempre um clima de dom de bem; sem tal, reina a guerra.
IHU – Há quem veja com desconfiança o esforço da Teologia argumentar pela paz, apontando que ela justificou a guerra em outros momentos da história. Hoje, nas diferentes tradições religiosas, há quem justifique a guerra invocando o nome de Deus. Como refletir teologicamente sobre essa questão? Qual é a hermenêutica necessária para bem compreender o papel desempenhado pela Teologia neste debate? Qual a especificidade da teologia católica aqui?
Américo Pereira – Se se olhar para a Teologia de um ponto de vista histórico, sem separar o que nela segue os mencionados princípios e o que não os segue, encontra-se um pouco de tudo, e muito de mal; mas este encontro histórico é comum com toda a atividade humana de sempre, pois sempre se agiu assim, e a Teologia, do ponto de vista histórico, não escapa a tal condição. Como tudo o mais, no concreto da realidade histórica, a Teologia nem sempre serve o seu Senhor, mas outros senhores. Ora, tal sucede-se, precisamente, porque não seguiu os mencionados princípios. É este sempre o ponto em que amarra a errância da Teologia. Se os houvera seguido, não estaríamos a responder a esta pergunta.
Então, o que há que fazer é perceber em que é que cada Teologia concreta, histórica, respeitou ou não tais princípios. É um crivo fundamental: as que não os seguiram simplesmente não merecem usar o nome “teologia” e não devem ser consideradas como tal; são apenas monumentos históricos ao erro.
A hermenêutica a seguir é essa, apenas, que siga os referidos princípios, assim, sendo fiel ao que deve servir: o bem da humanidade e do mundo, como louvor ao bem de Deus. Nada que dependa de valores humanos separados dos princípios postos por Deus pode servir à Teologia merecedora do nome. A Teologia católica não é exceção: ou segue os princípios postos por Deus, ou não é mais do que um mero exercício puramente humano de pensamento, quantas vezes determinado por singular vontade de poder. Nada do que não sirva ao bem da Criação como um todo pode ser considerado verdadeiramente cristão. É este o fundamental da mensagem do Papa Francisco. Não há o nosso bem e o bem dos outros, só há um bem; e, ou se trabalha nesse sentido, ou a humanidade corre para a sua perdição. O limiar entre a santidade e a 'pecabilidade' reside aqui, neste necessário serviço ao bem universal. Sem tal, a humanidade, mais cedo ou mais tarde, aniquila-se. São estes o preço e o prêmio do pecado, cujas consequências nunca são apenas pessoais, mas sempre universais; como as da santidade.
IHU – Nos pronunciamentos sobre a guerra, o Papa Francisco mencionou nosso “espírito de Caim”. No artigo “O princípio da paz e o valor da guerra: o papel da Teologia”, o senhor também se refere a Caim. Como este espírito explica os fenômenos como a guerra e os conflitos humanos na vida ordinária?
Américo Pereira – Pode mesmo dizer-se que “só tal espírito explica tal realidade”; passo a expor: Caim é o símbolo, o “eikon” da concretização do mal, na sua forma mais radical, que consiste em aniquilar mundanamente esse que não é apenas o semelhante humano do humano, mas o semelhante humano do divino: ao matar Abel, Caim mata também Deus, porque, no irmão, que assim nega, mata a imagem e semelhança de Deus, deste modo, matando também Deus. É simbólico, mas é muito claro e de fácil entendimento. Tal ato põe todo o bem da criação em causa: foi para isto que Deus criou o mundo?
Ora, a cena bíblica de Caim tem a vantagem de ser simplesmente “caseira”, não se trata de um conflito “entre nações”, mas de um atentado de um ser humano sobre outro, de um singular sobre outro, para mais, por puro capricho e sem qualquer outra possível motivação objetiva. Então, nesta imagem, unipessoal, intui-se o que é o cerne do ato de guerra, que não é coisa entre nações, mas entre seres humanos, um a um. O autor sagrado põe aqui o princípio negativo, humano e só humano, que promove todo o ato de guerra como ato de aniquilação do outro, na forma de aniquilação de suas possibilidades próprias: ao assassinar Abel, Caim não aniquilou o seu passado, que já tinha sido aniquilado pelo movimento do mundo, mas, no presente de tal ato, aniquilou as possibilidades do irmão. É isto que constitui o cerne do ato de guerra: a aniquilação das possibilidades de alguém. Tudo o mais daqui decorre, variegadamente.
IHU – No mesmo artigo, o senhor diz: “Baseando-se a Teologia cristã em Cristo como seu paradigma, é Cristo quem constitui o princípio de possível análise antropológica, ética e política para a guerra. Não há outro, não pode haver outro”. Pode explicar por que outros não servem de paradigma?
Américo Pereira – Porque qualquer ser humano que se encontre próximo de Cristo é nada mais do que tal, quer dizer, é próximo do paradigma apenas. O paradigma é Cristo. Ora, tal não significa que, noutros tempos e em outras culturas, tal paradigma não exista, aproximadamente, com outras manifestações. Todavia, para o cristão, o paradigma de leitura é Cristo. Por exemplo, e para não sair da tradição cristã, Jó em quase tudo, menos na direta filiação divina e trinitária, é semelhante a Cristo; mas não é Cristo. Se Jó ajuda a perceber a grandeza de Cristo, todavia, após haver Cristo, é este o paradigma de leitura de ação, mesmo para Jó; aliás, lido à luz do paradigma Cristo, Jó resulta ainda mais excelso, pois é “apenas” humano, o que faz ressaltar a grandeza da criação, assim tão próxima de um absoluto de perfeição já em Jó, que não é Deus, mas que é “muito divino”, como aproximação em imagem e semelhança a Deus. Se todos fossem como Jó, não haveria pecado. Não haveria guerra.
IHU – À luz da experiência de Cristo, como podemos compreender as dores e o sofrimento gerados pela terceira guerra mundial aos pedaços vivenciada por milhares de famílias no mundo todo?
Américo Pereira – A resposta é terrível, mas simples: não podemos. Nem a tal luz, pois a experiência humana é, em si mesma, intransmissível, de ser humano a ser humano. A expressão popular “só eu e Deus é que sabemos” é manifestação de excelsa inteligência do povo que a pronunciava, sabendo que, para lá de si próprio, apenas Deus podia saber o que sofria (o mesmo se diga da alegria). Pode, assim, intuir-se a noção (não o sentimento) do que será o sofrimento de um ateu, que nem da intuição de um Deus, em que não acredita, dispõe. É a total solidão, sobretudo quando descobre que nenhum outro ser humano o pode, em tal sofrimento, acompanhar. Não há magia. O que pode haver e que responde à pergunta, saltando de nível ontológico, é amor.
Ora, o amor, porque é o ato em favor do bem do outro, ao promover o bem do outro – que é objetivo – comunica com ele, nisso o acompanhando: é o bom samaritano que se aproxima e ao aproximar-se faz do outro seu próximo, dando-lhe a hipótese de vida, de mais vida, isto é, o ato contraditório com o ato de guerra: se este aniquila a possibilidade do futuro, o outro acrescenta possibilidade de futuro – tal é, sempre, o ato de amor. Basta haver gestos muito simples, por exemplo, o ato de amor de Maria dando de mamar ao infante Immanuel, neste e por este ato tão simples, são transmitidas possibilidades de ser de Jesus. Imagine-se a Virgem a não dar qualquer alimento ao Menino…
IHU – Como o senhor reflete sobre a morte e como sugere que reflitamos sobre ela na atualidade?
Américo Pereira – Na realidade, não se pode refletir sobre algo de que não se teve experiência. Mais uma vez, a resposta começa por ser negativa. As chamadas reflexões sobre a morte, não o são, são reflexões sobre a possibilidade de morte; ou, então, são reflexões sobre a morte real de outros, o que significa que, por falta total de objetividade relativa ao que foi o ato de morte de terceiros, são reflexões acerca do que a morte de tais pessoas causou em quem assim diz refletir.
É sempre sobre a vida, de um ou de outro modo, que se reflete, que se pode refletir. Pode, então, refletir-se sobre o que a possibilidade da morte significa para cada um de nós. Todavia, que sentido faz tal reflexão se não for, sobretudo, uma reflexão acerca do que é a nossa vida como caminho para a morte e para o que se espera ser uma nova vida? Se a morte nos surge como aniquilação, sem mais, nada na vida faz ou pode fazer sentido, pois tudo é evanescente, mesmo o sentido haurido no instante. Para quê?
Para quê? – eis a grande questão, num mundo que se perde em perguntar “por quê?” É a questão acerca do sentido que motiva o ser humano, ou que o desmotiva. A reflexão acerca da morte nenhum sentido faz se não for uma reflexão acerca da vida, mas não da vida como coisa de irrefletido bicho, antes como uma vida dedicada ao bem possível, concretizando tal bem: é, de novo, o caso de Jó, que sempre fez o bem e, assim e só assim, conseguiu o beneplácito único de Deus que, no fim de tudo, o vem visitar em pessoa e o louva, em sua inflexível bondade, tão bom como homem como Deus é bom como Deus, cada um em seu nível.
Todavia, o que se pode e deve perguntar é o seguinte: que sentido faz promover a morte, sobretudo de inocentes, assim lhes roubando literalmente – pois de violência se trata – as suas possibilidades próprias? A que se acrescenta a questão existencial fundamental, relacionada com o sentido último do possível bem humano: uma tal humanidade, que assim se deleita em violência tendente à morte, merece existir? Sobre isto, sim, vale a pena refletir. Já agora respondo: não, tal humanidade não merece existir.
IHU – O que a celebração da data de hoje, Dia de Finados, ainda nos diz?
Américo Pereira – Pode nada dizer, se se viver segundo uma instantaneidade totalmente insensível, mesmo ao instante. Neste caso, toda a vida acaba por não ter sentido, acaba por ser vã: assim sendo, que interesse pode ter algo relativo à morte? Visto de outro ponto de vista: num mundo de mortos-vivos, no que concerne ao sentido, não é, já, tudo morte, digamos assim, não é já tudo “morte-moribunda”, já nem sequer vida em agonia, mas apenas a própria morte em espera de se morrer definitivamente?
Todavia, se se viver em regime de absoluto de vida, em que a própria possibilidade da morte faça parte de tal viver e de tal vida, como possibilidade de uma outra forma, metamórfica, mas, ainda, nossa, minha, de vida, então, e sem ilusões, mas com fé, celebrar, não a morte, mas a vida dos que já morreram, na esperança da sua sobrevida, faz todo o sentido, pois, como Pascal, pomos as moedas da nossa aposta na melhor chance, a do eterno ato de amor de Deus, que se fez vida em cada uma de suas criaturas, não para que morressem, mas para que, com ele e como ele, em seus modos próprios, vivessem. O Dia de Finados não celebra a morte dos nossos irmãos humanos, celebra o absoluto de sua vida, na memória nossa e na memória de Deus, em que, assim esperamos, como Jó, estejam completos, em espírito e “carne”, como diz o povo, e “vejam a Deus”, isto é, eternamente o contemplem e da sua luz se alimentem, a mesma luz que o Evangelho buscou trazer até nós.
IHU – Muitos são os que não creem. Como eles podem iniciar o processo de fé e confiança em Deus?
Américo Pereira – Não há quem não acredite em algo: pode ser o partido, a seita, a ideologia, o clube de futebol etc. Sem se acreditar em algo, em absoluto, nem abrir os olhos se pode, dado que tudo é insano e inseguro, tudo nos ameaça de aniquilação; abrir os olhos é já acreditar que se possa abri-los. Então, a questão não é acerca de acreditar ou não acreditar, mas acerca de isso em que se acredita. Aquilo que, tecnicamente, é a grandeza ontológica de isso em que se acredita. Em que acredito eu, em algo infinitamente “grande” e bom, de infinito amor, ou numa ideia finita qualquer, num “boneco” qualquer? Enquanto não houver a intuição de algo absoluto, infinito infinitamente bom, pelo menos como possível, não haverá fé em algo que mereça o nome de Deus, nas versões linguísticas que se quiser, não é este o problema. O problema é ontológico e depende de muitas variantes, que vão desde a mais superficial psicologia até a mais profunda incapacidade filosófica de intuir possibilidades.
No que se vê, etc., não se pode acreditar: isso sabe-se, e, no que se sabe, não se acredita, precisamente, porque se sabe. Então, acredita-se no que em si mesmo não se sabe, mas se sabe ser possível, o que é radicalmente diverso. Voltamos a Jó, matriz de fé: se Jó não acreditasse em algo de absolutamente bom, presente no mais íntimo de si como marca criatural, como poderia manter-se como se manteve, quando tudo o mais em seu entorno colapsou? Ora, ou Deus corresponde, na intuição de cada ser humano, a tal, ou não há em que se possa acreditar como “Deus”. Este é um ato puramente interior, que pode ser acompanhado, sim, mas que ninguém pode ter (ser, na realidade) na vez de outrem.
O processo só pode ser iniciado mediante desejo, a que se segue a vontade de se poder encaminhar, a que se segue… o que ocorrer na intimidade de cada um. Ajuda? Sem dúvida, os bons exemplos, isto é, os exemplos, por mais frágeis que sejam, de santidade: perto de uma Teresa de Calcutá talvez seja mais fácil, através do seu exemplo, poder sentir o desejo de poder acreditar. Com maus exemplos, tudo se perde.
IHU – Como manifestar a esperança em um contexto de conflitos, guerras, mortes, injustiças, indiferença?
Américo Pereira – Através e apenas através do exemplo da ação sempre dedicada ao bem. Tudo o mais soa vão, surge como vão. É o exemplo, de novo, do bom samaritano, que de nada mais cuida do que de fazer o bem ao outro. Nada mais interessa, nem sequer que se receba agradecimento ou reconhecimento ou mesmo recompensas: esta é a lógica que leva à guerra, à violência, a lógica da autoadoração, da necessidade (psicológica, apenas, pois ontológica não é) de valorização, que manifesta a nossa vasta e profunda pobreza de ser, por sua vez originada pela nossa incapacidade de fazer o bem: quem faz o bem está sempre preenchido com o bem que faz, cumprindo, pela positiva, o que Cristo lembra – já temos, no bem feito, a nossa recompensa, e não há outra, pois a vida com Deus não é comércio, é amor, amizade, “ágape”.
IHU – Deseja acrescentar algo?
Américo Pereira – Apenas que de nós se exige uma vida de intransigente respeito pelos princípios do Evangelho, sem o que tudo começa a desintegrar-se: “sim, sim; não, não”, é o princípio do bem; o mais “é do maligno”. Não deve haver compromissos com o mal, nunca, sob qualquer forma; salvo o erro, em que todos podem cair. Voluntariamente, é o bem que nos motiva e o bem – eis o critério – é sempre isso que permite melhor ser. Difícil de intuir? Certamente, mas quem disse que viver era para ser fácil? Santa Paz de Deus vos acompanhe sempre.