“As pessoas sentem – e não só sentem, mas vivem – que as promessas não só não são cumpridas, mas também geram desigualdades que vão sendo sedimentadas”, afirma a pesquisadora argentina
“Existe na Argentina uma vontade de explicar à população que Javier Milei não é bom para o país, que a população está compreendendo a situação de modo errado, mas, ao mesmo tempo, falta uma compreensão acerca das crenças da população”, adverte Silvia Grinberg, professora da Universidad Nacional de San Martín, na entrevista a seguir concedida pessoalmente ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU. Silvia conversou com o IHU quando esteve na Unisinos para ministrar o Seminário Temático I: Cartografias humanas, reverberações das desigualdades e a in/exclusão na escola, evento promovido pelo PPG em Educação da Unisisnos em agosto deste ano.
Compreender por que candidatos de direita conseguem tanta adesão da população, segundo a pesquisadora, é um desafio aos progressistas que buscam ser uma alternativa política. “Este é um problema para nós hoje, especialmente para os governos progressistas. Alguns dizem que temos que ir para a rua, conscientizar as pessoas, mas o sentimento de desproteção [da população] é correto. As pessoas têm uma vivência certeira”, pontua.
Na entrevista, Silvia Grinberg comenta a situação social, econômica e política da Argentina e correlaciona temas que estão na ordem do dia: desigualdades sociais, problemas socioambientais, urbanos, educacionais e políticos à luz das pesquisas realizadas em escolas. “Boa parte do crescimento urbano está ligado ao crescimento da marginalidade da população que vive na precariedade, nas favelas. A favela não é só pobreza. Ela está muito ligada à degradação ambiental. Isso é uma característica dos países do Sul: onde existe favela, existe essa mistura. Trata-se de pobreza, mas é uma forma muito particular da pobreza que está ligada à degradação do ambiente, cercado de lixo e sem serviços adequados. O que há na Argentina – e isso é uma coisa dos últimos anos – é o crescimento da marginalidade, mas uma marginalidade de tipo muito particular”, relata.
Silvia Grinberg (Foto: Reprodução | Youtube)
Silvia Grinberg é doutora em Educação e mestre em Ciências Sociais pela Universidad de Buenos Aires. Leciona sociologia da Educação e pedagogia na Universidad Nacional de San Martín.
IHU – O que explica a onda de saques a supermercados e lojas na Argentina em agosto passado? Raúl Castells, antigo dirigente de movimentos sociais grevistas e pré-candidato presidencial, disse que as pessoas saíram em busca de comida e, se não a encontrassem, deveriam levar o que pudessem para trocar por comida. Qual é a situação social e econômica do país?
Silvia Grinberg – A Argentina é um país que sempre está em crise; não lembro de momentos da minha vida em que este país não estivesse em crise. Existem muitas explicações para isto: as desigualdades, as disputas de poder, disputas por bens e recursos. A economia argentina é muito particular nesse sentido porque é assentada no agronegócio e na produção primária de bens. Existem dois setores dominantes: o agro, que sempre quer que o dólar seja mais caro para favorecer a exportação, e a indústria, que precisa de dólar para a importação. A Argentina viveu a crise do capitalismo industrial na década de 1970, como todos os países, mas lá houve um crescimento e uma sedimentação social da população, cuja característica principal é a falta de empregos formais. Vive-se a precariedade.
Faz parte da minha pesquisa analisar o crescimento das cidades, que é constante. Na América Latina, 80% da população mora nas cidades. Mas uma boa parte do crescimento urbano está ligada ao crescimento da marginalidade da população que vive na precariedade, nas favelas. A favela não é só pobreza. Ela está muito ligada à degradação ambiental. Isso é uma característica dos países do Sul: onde existe favela, existe essa mistura. Trata-se de pobreza, mas é uma forma muito particular da pobreza que está ligada à degradação do ambiente, cercado de lixo e sem serviços adequados. O que há na Argentina – e isso é uma coisa dos últimos anos – é o crescimento da marginalidade, mas uma marginalidade de tipo muito particular.
IHU – Como os moradores dessas regiões descritas pela senhora reagem, de um lado, a essa condição particular de pobreza em meio à degradação ambiental e, de outro, às pautas ambientais, como mudanças climáticas e questões relativas ao saneamento? No Brasil, apesar de toda a problemática ambiental, a moradia continua sendo a luta primordial, apesar das condições do entorno.
Silvia Grinberg – É muito interessante esta pergunta. Há 20 fazemos pesquisas nas favelas das cidades da região metropolitana. Há dez anos, quando caminhávamos pela favela, produzindo estudos ambientais sobre a contaminação, um rapaz de 16 anos me perguntou onde eles [moradores] iriam morar se nós encontrássemos algum tipo de contaminação na região. Neste dia, compreendi que eu estava mal compreendendo a questão. Temos que pensar a questão ambiental nas cidades a partir de uma perspectiva mais ampla.
Todas as pessoas que chegaram a morar na favela, e que não moram mais porque já passaram três gerações, foram migrando, sendo retiradas e expulsas de suas terras, ou saindo por causa da falta de emprego. Meu pai nasceu na Polônia e foi morar com meu avô na Argentina porque foram expulsos. As migrações estão ligadas a dois fenômenos: as pessoas não têm onde viver ou, nos locais onde vivem, não têm condições de viver bem e migram para outros países.
O que acontece na Argentina em relação à questão ambiental é uma luta muito grande por melhoria das condições de vida porque o Estado não faz o que precisa fazer. Ele faz, está aí, mas não garante. No meu bairro, por exemplo, o lixeiro recolhe o lixo, mas na favela isso não acontece. Nas cidades existem políticas de separação do lixo, mas o processo é precário.
A mesma coisa acontece em relação ao tráfico. A favela tem uma posição geopolítica muito particular e boas condições para ser parte da rede do tráfico. Em relação aos saques que ocorreram recentemente, existe uma população que mora em condições irregulares, expostas a irregularidades desde que nasceu, desprotegida da lei, apesar de o Estado estar aí.
Tivemos mais de uma experiência na história do país ligada às revoltas e à massa que sai às ruas de modo desorganizado. Ir para a rua é uma prática no país. Vamos para a rua para festejar quando o time ganha um campeonato e para protestar. É uma prática.
IHU – Os protestos estão reverberando em mudanças políticas? Quais são seus limites?
Silvia Grinberg – Sim, mas é preciso lembrar que o que aconteceu na Argentina no fim de 2001 foi uma crise imensa. Eu estava em um supermercado e vi portas fechando porque a massa estava invadindo e saqueando. Esses são momentos particulares. O Estado tem que proteger o dinheiro que as pessoas têm no banco e a propriedade privada. O que aconteceu em 2001 é que não podíamos tirar o dinheiro do banco; tínhamos que pagar tudo com cartão e, se as pessoas quisessem ter seu dinheiro consigo, não conseguiam. O Estado, que deveria nos proteger, passou a nos desproteger. Os mais afetados foram os mais pobres.
IHU – Nos últimos anos, a Argentina foi governada por partidos progressistas, depois, partidos de direita, novamente por progressistas e, no pleito deste ano, o candidato da direita aparece como um dos favoritos. O que isso significa depois deste histórico e dos últimos quatro anos?
Silvia Grinberg – Os governos progressistas têm muitos problemas. Depositamos muita esperança no atual governo, que começou sua gestão com uma dívida muito grande – a maior dívida que o governo contraiu do Fundo Monetário Internacional (FMI). No fim de 2001, a população nas ruas reverberava o discurso “¡Que se vayan todos!” Isso ficou na nossa memória no início do governo progressista e no fim das reformas liberais. O que acontece agora é como se tivéssemos camadas de memórias. As pessoas sentem – e não só sentem, mas vivem – que essas promessas não só não são cumpridas, mas também geram desigualdades que vão sendo sedimentadas.
O atual candidato da direita [Javier Milei] é muito peculiar e tem um discurso antipolítica; fala da casta política, diz ser de fora desta casta, mas ele trabalhou com políticos próximos da ditadura. Ele não é tão novo, mas conseguiu colocar a si mesmo como novo na política. Na Argentina existe uma vontade de explicar à população que este candidato não é bom para o país, que a população está compreendendo de um modo errado a situação, mas, ao mesmo tempo, falta uma compreensão acerca das crenças da população. Por que esse candidato consegue tanta adesão?
Este é um problema para nós hoje, especialmente para os governos progressistas. Alguns dizem que temos que ir para a rua, conscientizar as pessoas, mas o sentimento de desproteção [da população] é correto. As pessoas têm uma vivência certeira. Se você conversar com uma criança de 8 anos na Argentina, ela sabe quanto custa o dólar. É uma loucura. Se um jovem que nasceu no início do século XXI e está com 20 anos escuta o tempo todo o mesmo discurso, isto é, a crise do dólar, que seus pais trabalham e trabalham e não conseguem ter condições de pagar as contas no fim do mês, em quem ele vai acreditar?
IHU – A escolha da candidatura de Javier Milei foi uma surpresa? Como a proposta dele de substituir o peso argentino pelo dólar está repercutindo na Argentina?
Silvia Grinberg – Repercute no sentido de que todo mundo vai comprar dólar. É uma loucura. Nós temos uma loucura pelo dólar. Uns dias antes das eleições primárias, o dólar estava 500 pesos – claro que existem muitos dólares, mas estou falando de um deles. Na segunda-feira após as eleições, o dólar foi para 700 pesos. O salário que as pessoas têm para viver está reduzido. E a situação é pior porque foi o Estado quem fez a desvalorização por causa dos acordos com o FMI.
O que acontece agora no país é isto: todo mundo quer o dólar porque ele representa a segurança de que o que temos vai continuar, mais ou menos, valendo alguma coisa. Nós temos, no nosso DNA, no nosso corpo, a memória do que aconteceu em 2001; estamos sempre com medo. O que vai acontecer com o dinheiro que temos no banco? As pessoas que têm dólar no banco querem tirar esse dinheiro e guardá-lo embaixo do colchão.
A campanha de Javier Milei foi uma surpresa, mas na história existem muitos exemplos de surpresa com líderes loucos. O exemplo mais óbvio é o Hitler. Todos pensam que um louco nunca vai chegar à presidência. É o que acontece em torno de Javier Milei. Mas ele ainda não ganhou; temos esperança de que não vai ganhar. Mas o problema vai continuar lá.
IHU – Se ele não vencer, continuará o governo progressista porque a terceira candidata, Patrícia Bullrich, não parece ter muita representatividade.
Silvia Grinberg – A terceira candidata não tem muitas chances porque existe uma controvérsia “peronista x não peronista” em torno dela, que é uma controvérsia histórica. Ela não tem possibilidade de chegar ao segundo turno. A questão é que o governo progressista vai ter mais uma possibilidade, mas se ele não conseguir fazer alguma mudança, será um problema.
IHU – Este é o drama de muitos países da América Latina, em que nem a esquerda nem a direita tem um projeto de país diferente do que está posto. É o que se passa na Argentina?
Silvia Grinberg – Esse também é um problema da Europa. Lembremos o que aconteceu na França. Por isso chamo a atenção para as populações marginais, que têm camadas e camadas de gerações morando na marginalidade. Não existe nenhuma força progressista que consiga dar uma virada, pequena que seja, e consiga olhar para a marginalidade.
IHU – Como avalia o caso do governo chileno de Gabriel Boric, que ingressou para fazer mudanças, mas sua proposta de constituição foi recusada pela população? O que isso evidência sobre o governo e as ideias progressistas que o fundamentam?
Silvia Grinberg – A política de direitos é uma individualização e não consegue fazer uma redistribuição. O problema da identidade e das políticas de direitos é que elas têm que conseguir dialogar com o problema da redistribuição, da desigualdade. Tem uma população muito grande que está ficando à margem, morando à margem. Isso acontece também nos EUA e foi visto no governo Trump. Os governos progressistas têm um desafio nesse sentido.
Por exemplo, na Argentina, depois da ditadura, tudo que diz respeito à segurança ficou em um marco de suspeita porque a polícia, na ditadura, foi o aparato do Estado para o desaparecimento e a tortura. A população que mora na favela é a que mais sofre em relação à segurança. As pessoas têm medo de sair na rua. Por isso o discurso da “mano dura” [mão dura], autoritário, firme, ganha adeptos. No meu bairro, se algo acontece e chamo a polícia, ela vem e algo vai acontecer. Mas não é assim na favela. Esse é um exemplo muito concreto para entender como o discurso da direita consegue adesão nas populações que mais são afetadas pela mão dura do Estado.
A educação é um outro exemplo. As pessoas que moram nas favelas têm muita esperança na educação. Elas colocam o seu futuro na educação. Mas, dentro da favela, a escola é muito precária, não tem segurança. Os problemas do bairro são os problemas da escola. Se falta água no bairro, não tem água na escola. Se alguém diz para os pais que vai dar um voucher, como disse Javier Milei, para que levem seus filhos estudarem em outras escolhas, nas áreas centrais, eles com certeza vão querer o voucher.
É verdade que o bom professor consegue ensinar em qualquer condição. Mas isso somente durante um tempo. Temos que garantir que as funções do Estado sejam providas pelo aparato estatal. Os serviços públicos têm que ser bons, muito bons e ainda melhores do que em outras partes da cidade em que as pessoas podem pagar. Esse é outro exemplo bastante concreto dos desafios que temos. Não mais podemos compreender as pessoas como pobrezinhas, para as quais vamos dar alguma coisa. Esse tempo já passou. Um rapaz que nasceu na favela me diz que não é um pobrezinho; ele quer escola e segurança para seu filho.
IHU – Qual é a situação do tráfico na Argentina? Há relações entre o tráfico e a política?
Silvia Grinberg – Essa relação ainda não é tão forte. O que existe é um crescimento do tráfico no país nas últimas décadas. A Argentina é um país de baixa circulação. Em Rosário, uma das cidades mais importantes, existe o porto. Ele passou a ser um bom local para o tráfico de muitas coisas. Além disso, através dos rios que vêm do Paraguai e da Bolívia gera-se muita circulação. Essa é uma questão. A outra é a capacidade do tráfico de trabalhar de modo rizomático, com grande capacidade capilar de ir se infiltrando. Esse é, com certeza, um dos grandes problemas dos países sul-americanos. A Argentina, no entanto, ainda está em um estágio em que pode controlar essa situação. Mas o tráfico está aí, querendo fazer seu negócio porque uma coisa é a circulação da droga, outra coisa é o seu negócio.
IHU – Quais são as propostas políticas dos candidatos à presidência, Sergio Massa, atual ministro da economia, e Javier Milei, candidato da direita, e o que a eleição de cada um significará para o país?
Silvia Grinberg – Se este governo continuar, terá um desafio muito grande de fazer alguma diferença em relação ao que fez. Se Massa conseguir ser reeleito, terá que fazer o que ninguém quer fazer, que é acomodar o preço do dólar. Isso é muito complicado porque uma mudança pequena gera um impacto, especialmente nos mais pobres. Assim como está não tem como continuar. Quando há uma crise, alguém está fazendo negócios e muitos negócios. Imagino que Massa já sabe o que vai fazer, mas está aguentando para, se vencer a eleição, fazê-lo. Qualquer coisa que ele tentar fazer agora, vai contra ele. Ele fez uma desvalorização de 20% do dólar recentemente e foi um desastre. Foi quando aconteceram os saques. Mas os saques foram muito desorganizados e tiveram a intenção de gerar uma crise.
Javier Milei vai ter os mesmos desafios, mas ele não tem nenhuma experiência. Ele quer fazer a dolarização. Ele está falando sobre as taxas. O problema da dolarização é que as pessoas acham que vamos ter dólares. Mas não temos dólar no país. Se tiver dólar, não precisa dolarização. Se ele vencer, possivelmente fará um ajuste muito mais forte e tudo que implica o gasto público será reduzido, apesar de manter algo da assistência social. Ele é ligado a setores militares e vai escolher os ministros que defendem a ideia da mão forte, com segurança forte e polícia na rua.
IHU – Como avalia o convite para a Argentina ingressar no BRICS? O que isso significaria para o país? Milei descarta a possibilidade de apoiar a entrada da Argentina no grupo se for eleito. Por quê?
Silvia Grinberg – Milei é um grande falador. O comércio com a China é muito importante para a Argentina. Ele disse que não vai fazer negócios com a China, mas a soja argentina que gera divisas para o país vai para a China. A mesma coisa acontece em relação ao discurso do Mercosul, que é importante para nossos países, para o comércio e o trabalho da população. Não podemos sair do Mercosul. Ele fala porque falar é de graça, é barato e pode-se dizer o que quer.
Na imprensa há muita discussão sobre o ingresso no BRICS. Existe uma suspeita por causa da Rússia e do Irã, que são países difíceis. Isso está em discussão no país.
IHU – Em que consiste sua pesquisa sobre silêncios que gritam na escola?
Silvia Grinberg – A escola, há bastante tempo, está em uma situação de suspeita: dizem que não é necessária, que não faz nada de importante. Começamos a fazer nossa pesquisa na escola, viver na escola, compartilhar com a escola, com os professores, pais, alunos. Quando estamos lá, a sua imagem não é tão transparente. Não é que a escola seja um espaço ideal, mas ela consegue ser um espaço onde se pode estar, onde se é escutado, apesar das dificuldades. Ela não é uma caixa de ressonância, mas um local onde se consegue uma certa pertença. Isso faz com que as vidas silenciadas e negadas, isto é, a precariedade da vida, encontrem um espaço na escola.
Booktubes LICH-EH: Silvia Grinberg “Silencios que gritan en la escuela”:
Usamos a expressão “silêncios que gritam” no título do nosso projeto de pesquisa por causa de um aluno que tirou uma foto do pátio da escola. Os alunos tinham como atividade fotografar um ambiente da escola e escrever um título para a imagem. Esse aluno foi para o pátio em um momento em que os demais estudantes estavam em aula e o pátio estava vazio. Uma doutoranda comentou com ele que o pátio estava silencioso, e ele respondeu que ali os silêncios gritam. Ou seja, são as realidades que se manifestam lá. Por isso falamos do silêncio que grita porque a escola é um lugar; na escola se está. O corpo sente coisas e dialoga com a presença de estar neste ambiente. É um lugar muito importante para se estar.
O problema é que quem lança uma política escolar, não está na escola. O professor está lá e tem que responder para o Estado, precisa fazer algo porque o aluno está lá. Ele tem um senso de responsabilidade. Mas o problema é que muitas vezes a escola fica sozinha para responder às questões que surgem. Depois, a imprensa divulga os problemas que acontecem, mas não os vive e não consegue ver os resultados alcançados na escola.
O que a política fez para a escola? A política de educação costuma ser pensada como uma política do Ministério da Educação para a escola, mas é preciso inverter o modelo, com perguntas muito sinceras: o que necessita uma escola para ser escola? Como a política pode ajudar a fortalecê-la? A política vai facilitar o trabalho do professor? Vai melhorá-lo?
IHU – Como compreende e caracteriza o descrédito em relação à escola e à educação? Como isso se manifesta e a que atribui este fenômeno?
Silvia Grinberg – Na Argentina, e imagino que aqui no Brasil também, quando a escola aparece na imprensa, destaca-se que os alunos não aprendem, como se nada do que acontece lá é bom, ou seja, a escola não faz coisas que importam. Essa é a imagem transmitida. E ainda mais: os jovens, os estudantes, não se importam com nada, não querem aprender, não têm interesse. E mais: são pobres, são pobrezinhos, pobre gente.
Mas essa é outra coisa interessante que nossa pesquisa mostra, isto é, uma vontade muito grande de crianças e jovens aprenderem. Eles ficam chatos quando sentem que vão para a escola e não aprendem nada. Os manuais de pesquisa falam da saturação, mas, nos vinte anos em que estamos fazendo pesquisas nas escolas, percebemos que eles têm vontade de ser ensinados. Nas entrevistas, perguntamos qual é o professor que eles gostam. A resposta é sempre a mesma: o professor que explica, que ensina. Eles nos dizem que não vão à escola para olhar o teto.
IHU – O que esse tipo de relato dos alunos lhe diz sobre as pesquisas e inovações na área da educação, que sugerem aulas interativas, as quais nem sempre são explicativas ou expositivas? Como conciliar a adesão de novas metodologias, garantindo o que os alunos de fato esperam, que é aprender o conteúdo?
Silvia Grinberg – Temos que falar menos de “ou” e mais de “e”. Essa é uma questão. O ensino moderno teve um pedagogo importante, [João Amós] Comenius, do século XVII. Ele tratava da questão de como conseguir captar a atenção das crianças na escola. Ou seja, já no século XVII havia este problema. Na atualidade, continua a mesma coisa. O professor tem que captar a atenção do aluno porque, caso contrário, a criança olha para outras coisas. No nosso tempo, captar a atenção é uma dificuldade; é algo difícil. Os alunos me dizem que gostam de professor que ensina e não de professor que manda “pesquisar no Google” porque isso eles já sabem fazer; é só o que fazem.
Se vamos por caminhos opostos, ou de pura tecnologia ou de nenhuma, não vamos encontrar o caminho. A escola precisa encontrar um caminho do meio e ter muito cuidado com as modas. Anos atrás, a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) recomendou a utilização do celular em sala de aula. Mais recentemente, disse o contrário. Então o professor precisa ser cuidadoso.
Quando conversamos com professores, percebemos que eles tendem a ser mais cuidadosos em relação ao que fazem. Quando um professor escuta alguém dizendo que ele tem que usar o celular em sala de aula, “sua cabeça quebra” tentando pensar como vai usar o celular porque a Unesco disse que tem que usar o celular. É preciso ter muito cuidado com isso. Nas formações docentes, as equipes se queixam que os professores não fazem o que as capacitações dizem para fazer, mas é porque o professor sabe o que funciona.
IHU – Como está a educação pós-pandemia? No Brasil, é comum os professores relatarem problemas de relacionamento interpessoal, de atenção, dificuldade de aprendizado por conta do período pandêmico. Na Argentina, observa-se esse fenômeno?
Silvia Grinberg – Isso não tem muito a ver com o período pós-pandemia, mas com o que a pandemia mostrou. Quando os estudantes retornaram, os professores do ensino básico viram que as crianças não tinham mais desenvolvido a função de pinça para a escrita. Ou seja, não conseguiam segurar o lápis para escrever. Muitas vezes acreditamos que o que acontece na sala de aula nos primeiros anos é “bobagem”, mas a função de segurar o lápis ou a caneta é feita na escola e é fundamental para a escrita. Essa sensibilidade é mínima, são detalhes. Os professores tiveram que começar a ensinar isso.
A pandemia nos fez olhar para o lugar da escola na sociedade. Gosto de dizer que a escola é o único lugar em que a pessoa tem a obrigação de ter contato com o outro: tem que olhar para o outro, tem que sentir o cheiro do outro, o tom de voz do outro, tem que tocar o outro e conviver com o outro. Nenhuma outra instituição faz isso. A pandemia mostrou que nenhuma outra instituição faz isso ou reúne essa diversidade que é a própria vida. A pessoa precisa ficar na escola, precisa conviver com outros e isso só acontece nesse nível escolar.
IHU – O que suas pesquisas mostram sobre a vida de quem mora nas periferias, favelas e ocupações e sua relação com o entorno?
Silvia Grinberg – A escola não vai resolver os problemas da desigualdade. Isso é uma falácia. A escola não vai resolver o problema da desigualdade porque a causa da desigualdade é muito forte. A escola cumpre outra função, a de fazer o aluno sair do seu mundo por um minuto, uma hora, no sentido de perceber que o mundo é maior. Quando vamos para a escola, o mundo se torna maior. Ainda que o estudante nunca tenha ido para a Austrália, para outro lugar do mundo, ele sabe que existem outros mundos, outras histórias e o pensamento do mundo é maior.
Vamos continuar vendo conflitos porque o outro é sempre o diferente. Nos relacionamentos sempre existem conflitos. Não tem como não existir conflitos. É preciso dissolver essa imagem de paraíso. A escola, às vezes, precisa compreender que o conflito pode ser conversado, tratado, que existem pessoas que pensam diferente, mas que isso não implica mais do que uma possibilidade para dialogar e isso é bom. A escola ajuda a compreender que esse é um processo que precisa ser tratado, conversado. O que esperamos da escola? Que resolva todos os conflitos?
Este ano um aluno da favela nos disse o seguinte: o que acontece na escola é que nós nos conhecemos do bairro, mas aqui somos diferentes. Essa via é muito interessante. É diferente porque eles ficam juntos, conversam, têm que conviver. Essa vida tem muito para nos fazer pensar sobre como resolver os conflitos. Isso não significa que, quando eles se encontrarem na rua, serão amigos, mas terão uma relação diferente.
IHU – Para além do ensino do conteúdo, a escola tem a função de favorecer o estabelecimento das relações sociais.
Silvia Grinberg – Sim. Essa é uma dimensão importante, mas também a dimensão do conteúdo é importante por causa da promessa que o Estado faz: as pessoas vão para a escola aprender algo. Isso tem que acontecer. O estudante não pode passar 12 anos no sistema escolar e não saber escrever. Isso não pode acontecer. É uma promessa não cumprida. Aí o candidato que consegue falar disso vai ter voto ou vai se sustentar no governo. Muitos acham que Milei vai fazer isso.
IHU – Nas suas pesquisas, como aparece a relação entre desigualdades, escola e problemas socioambientais?
Silvia Grinberg – Quando comecei a pesquisa, percebi a questão socioambiental nas filigranas porque o lixo é mais que lixo. Para os papeleiros, o lixo é uma fonte de renda. Esse ofício é bastante complexo porque nem todos os materiais podem ser vendidos. Ao mesmo tempo, esse ofício tem implicações para o corpo porque as pessoas fazem o esforço físico de carregar o carrinho e o corpo fica doente muito rapidamente. Então tem aí um conjunto de afetações que são sensíveis.
Na favela, tentamos apresentar o conhecimento da química, da biologia e da história no laboratório da escola, fazendo análises ambientais da água. Os alunos trabalham com conceitos da microbiologia e, nesse campo, temos algumas discussões interessantes porque a pesquisa refere-se aos efeitos [da análise da água]. Quando começamos a visitar as famílias, percebemos que as pessoas estavam muito preocupadas por causa da água que bebiam. Uma mãe me disse que não sabia o que aconteceria com seu filho por causa da água que ele bebia. Então, produzimos informes sobre a qualidade da água e isso foi importante para, anos depois, a comunidade ter acesso à água potável.
Hoje, a questão ambiental cada vez mais nos afeta, porque não sabemos se o peixe que comemos é bom ou não para a saúde. Cada vez mais a questão ambiental está atravessando nossa vida e afetando a todos nós, mas, na favela, onde realizamos o trabalho, essas questões voltam o tempo todo. Elas afetam a escola porque a escola tem os mesmos problemas ambientais da favela. Ao mesmo tempo é uma situação interessante porque, quando há alguma possibilidade de melhorar a escola, isso afeta também a comunidade. Existe um modo interessante de se afetar mutuamente.
IHU – Quais os desafios do ensino universitário para lidar com as realidades educacionais e socioambientais nas escolas, particularmente para os professores que vão trabalhar nos contextos mais marginalizados?
Silvia Grinberg – O desafio é ter uma compreensão do que acontece nessas escolas e evitar fugir de todas as sensações e sentimentos de lástima. Se o professor acha que o aluno dele é um pobrezinho, não vai ensinar; vai fazer caridade, o que é outra coisa. É preciso ter uma compreensão dos problemas, mas nunca cair na ideia de “pobre gente”, pobres pessoas. Esse é um dos desafios mais importantes. O professor precisa saber que está falando com um sujeito que mora em determinadas condições, mas é um sujeito como ele. Este é o desafio mais importante.
O outro desafio é que os alunos dessas escolas esperam mais do professor do que os alunos de escolas particulares, porque eles esperam que o professor ensine para eles. Quando uma criança fala da insegurança, o professor não sabe o que fazer, mas essa não é uma responsabilidade do professor; é da política. A política tem que gerar condições para que a escola tenha o que fazer, como uma conversa. O professor tem que saber que ele precisa ensinar com pouquíssimos recursos, porque, além dos problemas já existentes, a infraestrutura da escola é precária. Ele precisa gerar um bom vínculo de transmissão.
Tem algo que sempre acontece quando começamos a trabalhar com jovens: eles são provocativos e provocam para ver como o professor vai reagir. Essas são micropráticas que são muito difíceis de ser transmitidas aos futuros professores. Mas o primeiro problema que um professor enfrenta ao chegar na favela é o de encontrar uma provocação – que é antes de tudo uma provocação para saber se o professor vai “bancar” e “sustentar” sua permanência na escola. O professor necessita romper com o medo e a caridade e esclarecer ao aluno que ele, na escola, é uma pessoa. É como Hannah Arendt dizia: a autoridade foi confundida com o autoritarismo. Tirou-se fora toda a autoridade. Mas a autoridade de reconhecer que um é adulto e outro é criança, e que o adulto deve dizer para a criança o que ela pode ou não pode fazer, é algo que deve acontecer, assim como é a relação entre uma mãe, um pai e um filho. Este é um problema do nosso tempo e não somente da favela. É a relação que os adultos têm com as crianças, isto é, não sabem dizer não.
IHU – O Papa Francisco tem apelado por um pacto global pela educação. Como vê esse tipo de proposta?
Silvia Grinberg – Ele tem bons pontos, conhece o que acontece em nossos países, está fazendo alguns trabalhos de proximidade, compreensão e construção conjunta, o que é importante. Ele tem um programa escolar que faz um trabalho interessante porque reúne populações que vivem conflitos, como os israelenses e palestinos, e realizam oficinas educativas em acampamentos. Este é um aspecto muito interessante do Pacto Educativo Global.
IHU – A senhora tem esperança? Em que? Como a expressaria?
Silvia Grinberg – Sim, mas não por causa da política e dos políticos. Por causa dos professores que vão diariamente para as salas de aula porque gostam e procuram fazer algo. A escola que eu frequentei era muito mais autoritária que a nossa. Tínhamos uma professora que dizia: “Senhorita, não tem que confundir liberdade com libertinagem”. Essa era a marca. Ninguém falava e perguntava. Ficávamos olhando a professora. Mas hoje o aluno pergunta e tem outra participação, que não é uma participação espetacular, mas ele pode perguntar, dizer que não entendeu e solicitar uma nova explicação. A escola, nesse sentido, melhorou em muitos aspectos.
Com certeza, a grande luta da educação será a busca pelo saber: o que é o saber? Como se distribui o saber? Quem acessa esse saber socialmente? Isso faz parte de como as desigualdades e as lutas sociais se expressam na sociedade. A força da escola, da educação, não virá das grandes empresas, mas das pessoas, das crianças, das famílias que procuram o saber, que tem sede pelo saber. Neste ano começamos um trabalho na escola e os estudantes falaram que querem escrever relatos, contos, querem ler. Essa vontade de saber, de ler, é parte do desejo humano, da vida humana. Nesse sentido, quando compartilho a realidade com os alunos e professores, sou levada a pensar que há um caminho possível.