"Embora o enfrentamento da pandemia de Covid-19 tenha sido desafiador no mundo inteiro, a epidemia no Brasil foi exacerbada pelas constantes tensões, omissões, negligências", afirma a diretora-executiva da Anistia Internacional Brasil
Em menos de dois meses o Brasil registrou mais cem mil mortes por Covid-19, atingindo a marca de 400 mil no início de maio. A situação em que o país se encontra "é um reflexo da negligência e omissão do governo brasileiro" e "evidencia a maior violação de direitos humanos que atitudes negacionistas geraram ao longo de 2020: a ameaça ao direito à vida", diz Jurema Werneck.
Segundo ela, alternativas propostas pelos parlamentares para enfrentar a crise sanitária, como a aprovação do Projeto de Lei - PL 948/21 na Câmara dos Deputados, que altera as regras de aquisição e doação de vacinas por pessoas jurídicas de direito privado, estão na contramão de garantir o acesso universal à vacinação e à saúde. "O projeto é um atentado ao acesso universal à saúde, que é um dos direitos humanos básicos e fundamentais. Furar fila não pode se transformar em política pública! O ideal é haver vacina para todas e todos, mas o governo federal não fez o que devia para termos a maior quantidade de vacinas possível para a população", reitera.
Na entrevista a seguir, concedida por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos - IHU, a diretora-executiva da Anistia Internacional Brasil também comenta alguns dados do relatório da ONG sobre o agravamento de abusos de direitos humanos durante a pandemia. Entre eles, ela destaca o aumento da violência contra as mulheres. "No Brasil, documentamos os seguintes dados: o primeiro semestre de 2020 registrou 119.546 casos de violência doméstica com lesão corporal, uma média de 664 por dia. E foram 1.861 mulheres assassinadas, sendo 648 feminicídios", informa.
Jurema Werneck (Foto: Daiane Mendes)
Jurema Werneck é graduada em Medicina pela Faculdade de Medicina da Universidade Federal Fluminense - UFF, mestre em Engenharia de Produção pela Coordenação dos Programas de Pós-graduação de Engenharia da Universidade Federal do Rio de Janeiro - COPPE/UFRJ e doutora em Comunicação e Cultura pela Escola de Comunicação da UFRJ. É autora de O livro da saúde das mulheres negras: nossos passos vêm de longe (Rio de Janeiro: Pallas, 2ª edição, 2006) e Under the Sign of Biopolitics: Critical Voices from Civil Society (Rio de Janeiro: E- papers, 2004). Atualmente, é diretora executiva da Anistia Internacional no Brasil.
IHU On-Line - O relatório da Anistia Internacional destaca o agravamento dos abusos de direitos humanos na pandemia. Que aspectos a senhora destaca sobre esse aumento dos abusos no Brasil? Em que setores da sociedade eles aumentaram?
Jurema Werneck – Desde a campanha eleitoral de 2018, temos acompanhado um crescente discurso antidireitos humanos de postulantes a cargos políticos no Brasil. Já no relatório referente ao ano de 2019, apontamos que essa retórica tornou-se a prática. Em 2020, a preocupação da Anistia Internacional Brasil se intensificou. Aumentaram os riscos para a defesa de direitos humanos no Brasil e o espaço cívico foi reduzido. ONGs, jornalistas, ativistas, defensores e defensoras de direitos humanos e movimentos sociais foram perseguidos e estigmatizados. A violência de gênero cresceu, a violência policial seguiu deixando rastros de mortes e violações de direitos humanos em favelas e periferias, atingindo principalmente jovens negros, prática denunciada pela Anistia Internacional Brasil há muitos anos. E a pandemia da Covid-19 também trouxe à luz ainda mais a desigualdade social que impera no Brasil, desde sempre.
IHU On-Line - O relatório cita as políticas do governo em relação à agenda ambiental, os indígenas e a repressão aos ativistas ambientais como formas de agravamento dos abusos de direitos humanos. Pode nos dar alguns exemplos de como isso ocorreu no último ano?
Jurema Werneck – É grave a situação dos povos indígenas e outras populações da Amazônia. O relatório da Anistia Internacional reuniu alguns indícios de que as autoridades brasileiras estão sendo omissas nos territórios da maior floresta tropical do mundo, onde vivem diferentes povos indígenas, quilombolas e outras populações tradicionais. Entre eles, o aumento do desmatamento: houve 9,5% a mais de destruição da Amazônia, entre agosto de 2019 e julho de 2020, segundo o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais - Inpe. Além disso, destacam-se as práticas de mineração ilegal; as queimadas na Amazônia, provocadas por fazendeiros que invadiram ilegalmente o território dos povos indígenas a fim de preparar a terra para o gado; a criação desse gado de forma ilegal na Amazônia e que entrou para a cadeia de abastecimento da JBS, a maior empresa de processamento de carne do mundo, como revelou o relatório “Da Floresta à Fazenda”, lançado em julho de 2020, também pela Anistia Internacional.
São inúmeras as situações que revelam abusos e violações de direitos humanos na Amazônia, onde as autoridades estão omissas ou falhando terrivelmente. E ainda as ameaças às lideranças indígenas que, em 2020, resultaram nos assassinatos de Ari-Uru-Eu-Wau-Wau, em abril, e de Edilson Tembé dos Santos, em setembro.
IHU On-Line - Outro aspecto denunciado pelo relatório é o aumento da violência contra as mulheres durante a pandemia. Quais são as principais constatações e qual é o perfil das mulheres que são vítimas da violência no país?
Jurema Werneck – A Anistia Internacional documentou que a violência de gênero aumentou em todo o mundo. E há uma nítida relação entre o confinamento social e a escalada dos episódios de agressões físicas, estupros e feminicídios. No Brasil, documentamos os seguintes dados: o primeiro semestre de 2020 registrou 119.546 casos de violência doméstica com lesão corporal, uma média de 664 por dia. E foram 1.861 mulheres assassinadas, sendo 648 feminicídios. Em comparação com 2019, a taxa de feminicídio aumentou em 14 dos 26 estados brasileiros. Houve um crescimento nas chamadas de emergências relacionadas à violência doméstica, de 3,8%. Dentre os estados, o Pará foi o que registrou o maior aumento nos casos de violência doméstica: 46,4% em relação ao ano anterior. Em média, 126 mulheres foram estupradas diariamente no Brasil.
São números alarmantes, mas que não deveriam acontecer, uma vez que o país tem mecanismos de políticas públicas, como a Lei Maria da Penha que, apesar de necessitar de aperfeiçoamentos, foi um avanço na proteção de mulheres vítimas de violência de gênero. As autoridades públicas precisam reconhecer que o Estado brasileiro está falhando na proteção das mulheres país afora.
IHU On-Line - O relatório denuncia a instrumentalização que os governos fizeram da pandemia de Covid-19. Como se deu esse processo no Brasil, especialmente a partir das disputas políticas entre o presidente, os governadores e prefeitos? De que modo e por que, na sua avaliação, a pandemia foi instrumentalizada no país?
Jurema Werneck – Desde o início da pandemia, a Anistia Internacional Brasil tem repetido que mortes evitáveis têm culpas atribuíveis. O governo brasileiro ao longo de 2020 enviou mensagens de saúde confusas e mentirosas e deixou de implementar políticas para proteger os setores de maior risco. Embora o enfrentamento da pandemia de Covid-19 tenha sido desafiador no mundo inteiro, a epidemia no Brasil foi exacerbada pelas constantes tensões, omissões, negligências. Ainda em maio de 2020 lançamos a Campanha Nossas Vidas Importam, sugerindo caminhos mínimos necessários para a efetiva proteção da população diante da pandemia, e muitas destas recomendações foram ignoradas. Até hoje há falta de coordenação entre autoridades federais, estaduais e municipais na gestão e no enfrentamento da pandemia, assim como ausência de um plano de ação claro e baseado nas melhores informações científicas disponíveis e pela falta de transparência nas políticas públicas, entre outros fatores.
É urgente uma mudança de rumo no enfrentamento da Covid-19, no Brasil. É urgente a adoção de medidas específicas que garantam de forma adequada a proteção das pessoas que vivem em favelas e periferias, pessoas em situação de rua, da população negra, pessoas em privação de liberdade (incluindo adolescentes e jovens no sistema socioeducativo), mulheres (cis e trans, especialmente as negras e indígenas), dos povos indígenas, das comunidades quilombolas, dos povos e comunidades tradicionais do campo, da floresta e das águas, de trabalhadoras e trabalhadores autônomas e autônomos (especialmente informais), população LGBTQI, migrantes e refugiados, crianças, adolescentes e idosas e idosos dos diferentes grupos. É obrigação do poder Executivo, governos federal, estaduais e municipais atuar em conjunto, e a Anistia Internacional Brasil vem a público com esse relatório para exigir isso.
IHU On-Line - Como a sociedade está reagindo à instrumentalização da pandemia?
Jurema Werneck – A sociedade civil se uniu desde o primeiro momento para suprir as lacunas do poder público e apontar caminhos para os problemas que emergiram com a pandemia. A Anistia Internacional Brasil se uniu a 39 organizações da sociedade civil e lançou, em maio de 2020, a campanha Nossas Vidas Importam. Produzimos e endereçamos uma agenda de recomendações às autoridades públicas municipais, estaduais e federal para que o enfrentamento da pandemia tivesse respostas rápidas e adequadas para garantir que as populações historicamente vulneráveis pudessem ter os direitos humanos à vida e à saúde garantidos: moradores e moradoras de favelas, mulheres, indígenas, LGBTQIs, especialmente pessoas trans, quilombolas, migrantes e refugiados, pessoas em situação de rua, pessoas em privação de liberdade, e idosos e idosas, crianças e adolescentes desses diferentes grupos, população negra e trabalhadores e trabalhadoras informais e autônomos. Mas essas recomendações não foram postas em prática e chegamos à triste marca de mais de 400 mil vidas perdidas.
As medidas de assistência social emergenciais, impostas pela ação articulada entre sociedade civil e Congresso Nacional, foram insuficientes para atender às necessidades econômicas de milhares de brasileiros e brasileiras que, além de lutar contra a Covid-19, precisam enfrentar o desemprego e a fome. E, mais uma vez, foi a sociedade civil que se mobilizou e continua se engajando para garantir que chegue o básico aos lares das pessoas, a exemplo da Campanha Tem Gente Com Fome, Dá de Comer, da Coalizão Negra Por Direitos, com apoio da Anistia Internacional Brasil e outras organizações. A sociedade civil está fazendo a sua parte e é lamentável constatar que os governos não estão cumprindo o seu dever.
IHU On-Line - Em comparação com outros países analisados, qual é a situação do Brasil em relação aos abusos de direitos humanos durante a pandemia?
Jurema Werneck – A situação em que o Brasil se encontra, com recordes de óbitos por dia e o número assustador de mais de 400 mil vidas perdidas, é um reflexo da negligência e omissão do governo brasileiro. E evidencia a maior violação de direitos humanos que atitudes negacionistas geraram ao longo de 2020: a ameaça ao direito à vida.
O Brasil faz parte de um grupo felizmente pequeno de nações cujas lideranças negacionistas têm contribuído ativamente para esta tragédia mundial, que são as inumeráveis vidas perdidas de pessoas cujas mortes poderiam ter sido evitadas.
IHU On-Line - Recentemente, a senhora questionou o Projeto de Lei - PL 948/21, que altera as regras de aquisição e doação de vacinas por pessoas jurídicas de direito privado, cujo texto-base foi aprovado na Câmara dos Deputados e aguarda apreciação do Senado Federal. Caso o PL seja aprovado, como a legislação poderá contribuir para a violação dos direitos humanos no país?
Jurema Werneck – O projeto é um atentado ao acesso universal à saúde, que é um dos direitos humanos básicos e fundamentais. Furar fila não pode se transformar em política pública! O ideal é haver vacina para todas e todos, mas o governo federal não fez o que devia para termos a maior quantidade de vacinas possível para a população. Os laboratórios estão colocando o lucro à frente do direito à vida e isto também é inaceitável. Dificultar ainda mais a vacinação para brasileiros e brasileiras é aprofundar as vulnerabilidades daquelas e daqueles que já enfrentam os piores resultados das desigualdades raciais, de gênero e sociais que marcam nossa história desde sempre. Ou seja, com esse PL são perpetuados privilégios e não promovida a igualdade de oportunidades de imunização. Quem tem dinheiro, conseguirá se vacinar, quem não tem, será que dará tempo de esperar pela vacina?
IHU On-Line - Por que é fundamental impedir o fura fila na aquisição das vacinas e fortalecer o SUS e o Programa Nacional de Imunizações neste processo?
Jurema Werneck – Em primeiro lugar, porque saúde é direito de todas e todos e não privilégio de uns poucos. Diante da escassez de vacinas, é urgente priorizar as necessidades daqueles e daquelas que apresentam maior risco de adoecer e morrer de Covid-19. A negligência das autoridades, que inclui a gestão inadequada do Programa Nacional de Imunizações - PNI, deixa desprotegidas aquelas pessoas e grupos que experimentam o impacto direto de décadas de abandono, de políticas excludentes e de violações de direitos humanos. Os dados sobre adoecimento e morte por Covid-19, e também por outras causas, desagregados por raça, gênero, condição social e outros, comprovam que a equidade nas ações de saúde e da vacinação é necessária e crucial.
O poder público precisa garantir vacina para todos e de forma gratuita. Vacinação não é privilégio, é direito. O Sistema Único de Saúde e o PNI já foram referências globais de como é possível aplicar a universalidade e a equidade nas ações e políticas de saúde, ainda que muito precisasse ser aperfeiçoado. E o Programa Nacional de Imunizações, ao ser atravessado por esse tipo de projeto e iniciativas de grupos de privilégio, sofre ataques inaceitáveis na sua longa e bem-sucedida história de atendimento à saúde pública de milhões de brasileiros e brasileiras.
Durante todos esses anos, mesmo tendo seus recursos drenados de maneira incessante, inclusive a partir da Emenda Constitucional 95, que em 2016 congelou os investimentos em saúde e educação, o SUS seguiu prestando assistência a todas as pessoas no Brasil. O Informe da Anistia Internacional Brasil aponta a negligência das autoridades públicas, e exigimos que o direito à vida seja garantido por meio da imunização.