Para o professor, o processo movido pelo governo dos EUA também precisa ser visto como ‘sinal dos tempos’ em que empresas de tecnologia erguem impérios a partir da captação de dados pessoais
No final do ano passado, Donald Trump colocou o Vale do Silício em rota de colisão com Washington, acusando uma das gigantes das Big Techs, a Google, do que podemos chamar de um certo monopólio. E mais: estaria a empresa erguendo fortuna a partir dos dados pessoais gerados pelos seus usuários. O episódio foi lido por muitos como mais um rompante do presidente dos EUA em controlar a tecnologia da informação desde o seu gabinete. E é, mas o professor Carlos Affonso de Souza chama atenção para o fato de haver outras nuances que precisam ser consideradas. “A ação antitruste do governo norte-americano contra a Google é bastante simbólica. De certa forma, ela é um produto direto do tempo em que vivemos, no qual se busca uma maior reflexão sobre o papel que a tecnologia, e em especial a Internet, desempenha em nossas vidas”, avalia, na entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line.
Além disso, Souza observa que “para compreender os meandros dessa disputa é preciso juntar componentes políticos, econômicos, tecnológicos, sociais e – é claro – também jurídicos”. Para ele, é reducionista também achar que a Google é a grande vilã que põe todos os seus usuários como reféns a gerar dados que sustentarão seu império. “A figura do refém parece não ser a mais apropriada quando se misturam situações em que interesses dos usuários são atendidos e tantos outros são criados. É sempre lembrada a frase de Steve Jobs sobre a importância de suprir os desejos dos consumidores, ainda que eles próprios ignorem a existência desses desejos”, pondera.
Ou seja, há sempre uma opção ativa dos usuários que, embora quase sempre muito inebriados, têm de ter condições de opção. E é aí que reside um dos aspectos da ação dos EUA. “Quando se repete o mantra de que ‘dados são o novo petróleo’ à exaustão, muitas das diferenças importantes entre a economia do petróleo e a economia dos dados passam despercebidas, mas um ponto é inegável: a ascensão do tratamento de grandes volumes de dados (big data) gerou novas oportunidades de negócios e novas experiências”, acrescenta.
O professor ainda lembra que mesmo Trump deixando a Casa Branca, isso não significa necessariamente o sepultamento dessa ação antitruste. “Me parece que a ação transcende os interesses da Administração Trump e encontra também certo eco do lado democrata, embora as preocupações sejam um pouco distintas. A pré-candidata democrata Elizabeth Warren fez da regulação das Big Techs uma plataforma de governo. Mesmo não tendo recebido a indicação do Partido Democrata, as suas ideias encontraram adeptos e devem ter repercussões na Administração Biden”, destaca. E, no fim, talvez a questão nem seja a condenação ou absolvição da Google. Para Souza, o fato em si já é interessante por acender o sinal de alerta de usuários. “Estar atento a essas transformações é o primeiro passo para sermos protagonistas e não apenas consequências desse processo”, finaliza.
Carlos de Souza (Foto: Câmara dos Deputados)
Carlos Affonso de Souza é professor da Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ. Doutor e Mestre em Direito Civil pela UERJ, ainda possui bacharelado pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro - PUC-RJ. Atua como diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro - ITS, pesquisador visitante do Information Society Project, da Faculdade de Direito da Universidade de Yale, e professor dos cursos de graduação e pós-graduação da UERJ e da PUC-Rio, lecionando disciplinas sobre Direito Civil, História do Direito e Direito da Tecnologia da Informação. Ainda participa de diversos fóruns internacionais sobre regulação e governança da Internet.
IHU On-Line – O que o duelo entre Estados Unidos e Google revela? Como compreender os meandros dessa disputa judicial e o que está por trás dessa briga?
Carlos Affonso de Souza – A ação antitruste do governo norte-americano contra a Google é bastante simbólica. De certa forma, ela é um produto direto do tempo em que vivemos, no qual se busca uma maior reflexão sobre o papel que a tecnologia, e em especial a Internet, desempenha em nossas vidas. Empresas como a Google representam muito bem a mudança que todos sentimos em nossos hábitos no transcorrer das últimas duas décadas.
Como buscamos informação, o quanto nos lembramos das coisas, como organizamos nossas mensagens eletrônicas, os vídeos que assistimos, o sistema operacional que faz rodar o nosso celular – essa peça central na explosão da Internet móvel –, tudo isso foi e é impactado pelas atividades da Google nos seus mais diversos segmentos. A vida de muita gente se tornou diferente (e paradoxalmente mais fácil e mais complexa) na medida em que a empresa aperfeiçoou e expandiu sua atuação.
O período romântico de criação da Internet e dos seus primeiros passos em direção a um ambiente comercial ficou para trás. O fascínio com o simples fato de que podemos, em questão de segundos, nos comunicar com alguém do outro lado do mundo deu lugar a um sentimento intranquilo com relação ao papel desempenhado pela tecnologia da informação. Sai de cena o acesso ao conhecimento, a comunicação global e entram no palco o discurso de ódio, as fake news, o bullying digital e os mais diversos golpes praticados na rede. É fácil oscilar entre esses dois extremos de fascinação e acusação quando algo tão fundamental e transformador como a Internet (e as empresas do Vale do Silício) entra em nossas vidas. Mas para analisar o caso antitruste do governo norte-americano contra a Google é preciso escapar tanto de uma perspectiva salvacionista como de uma postura que, na largada, condena essas empresas pelo seu tamanho e impacto.
O governo dos EUA, durante a administração de Donald Trump, foi bastante vocal contra o poder das empresas do Vale do Silício. O ex-presidente, por sinal, fez inúmeros discursos afirmando que a atual regulação sobre essas empresas precisava ser aperfeiçoada. Representantes do Partido Republicano acusam as empresas do Vale do Silício de censurarem vozes conservadoras e de favorecerem pautas defendidas pelo Partido Democrata.
A ação movida pelo governo americano não trata dessa alegada censura, mas sim a posição predominante que a Google ocupa no setor de buscas na Internet. Para compreender os meandros dessa disputa é preciso juntar componentes políticos, econômicos, tecnológicos, sociais e – é claro – também jurídicos.
IHU On-Line – Gostaria que o senhor recuperasse, também, o que levou a Google à Justiça norte-americana? O que é esse processo antitruste?
Carlos Affonso de Souza – Um processo antitruste visa a preservar a livre concorrência, combatendo práticas que sejam nocivas à criação e ao desenvolvimento de um ambiente em que empresas possam competir e inovar, gerando benefícios que podem ser compartilhados não apenas entre os seus investidores, mas também com toda a sociedade. É fácil imaginar no caso da Google, dado o tamanho da empresa e a sua posição proeminente em vários segmentos, que o processo antitruste movido pelo governo americano tenha como objetivo modificar essa situação de onipresença da companhia.
O tamanho alcançado pela empresa nem sempre é o foco de uma investigação antitruste, mas sim os meios dos quais se valeu a empresa para chegar lá e como ela se mantém nessa posição. Sendo assim, o processo busca analisar especificamente como se formou o domínio da empresa sobre as buscas na rede e o que ela tem feito para sustentar esse cenário, em especial afastando possíveis concorrentes.
Toda análise antitruste precisa desenhar um mercado relevante para que se possa medir se existe mesmo concentração, quem são os agentes afetados por ela e quais práticas importam para entender o exercício de uma posição monopolística. Será que um fabricante de suco compete com o de refrigerante? Nesse processo contra a Google o mercado relevante é busca (não se está discutindo diretamente a posição da empresa no mercado de sistema operacional móvel, por exemplo).
E quais são as condutas que vão ser analisadas para saber como a empresa chegou lá e se mantém no topo? Em sua petição inicial o governo americano deu especial ênfase aos acordos de exclusividade. Segundo o governo dos EUA, a empresa teria se valido desses acordos para garantir que a busca da Google fosse a opção padrão de busca em browsers (navegadores de Internet), em aparelhos celulares e até mesmo em automóveis e smart speakers.
IHU On-Line – Esse processo guarda similaridades com um processo contra a Microsoft no final dos anos 1990? O que há de comum e de diferente entre esses casos?
Carlos Affonso de Souza – Existe algo em comum e algo diferente entre esse processo e aquele movido pelo governo dos EUA no final dos anos noventa. Lá atrás, o processo que obrigou a Microsoft a não mais vender computadores com sistema operacional Windows tendo o navegador Internet Explorer pré-instalado visava a impedir que a porta de entrada das pessoas à rede fosse sempre a mesma: o software da Microsoft. Com as restrições impostas pelo processo, o mercado de navegadores de Internet se expandiu, surgindo alguns concorrentes de peso à alternativa da Microsoft, como o Mozilla Firefox e o próprio Google Chrome. Então é interessante notar como o navegador da Google – que hoje é dominante – tenha conseguido espaço justamente após o processo antitruste contra a Microsoft.
Mas vale lembrar que a Internet dos anos 20 não é a Internet (ou melhor dizendo, a Informática) dos anos 90 do século passado. O papel desempenhado pela Informática e pelo incipiente acesso à rede nos anos 90 era ainda um componente de um certo nicho social. Estamos falando de um acesso à tecnologia que ainda não havia chegado nem para o mesmo número de pessoas e nem de perto com a mesma qualidade. Antes da explosão da Internet móvel a rede não nos acompanhava em nosso itinerário diário. A Internet vivia em quarentena dentro dos computadores pessoais instalados em cima de mesas ou em gabinetes pré-fabricados.
Não é só a Internet que não é mais a mesma: o consumidor, o usuário que está do outro lado da tela também não é mais o mesmo. Hoje sabemos de forma muito mais intuitiva como configurar nossos aplicativos. Com dois toques ou um par de cliques é possível instalar ou desinstalar programas. Com isso todo o debate sobre a importância de se ter um aplicativo pré-instalado difere daquele ocorrido no final dos anos 90. Ao mesmo tempo, é preciso levar em consideração que esse conhecimento está longe de ser universalmente distribuído e que o conforto pode fazer com que muitos acabem usando a opção que já aparece, logo de cara, na tela de seu celular.
IHU On-Line – Como analisa o poder da Google no contexto atual? Quais as consequências geopolíticas desse poder?
Carlos Affonso de Souza – A Google é um campeão ocidental no segmento de busca na Internet, mas vale destacar que em um mercado tão importante e em franca expansão como o chinês, o líder em buscas é o Baidu. Não raramente empresas, voluntária ou involuntariamente, entram no jogo geopolítico e nesse caso não é diferente. No último ano do governo Donald Trump ocorreram sucessivos atritos entre EUA e China: do debate sobre a Huawei e a instalação de equipamentos 5G até a venda forçada do TikTok em terras norte-americanas.
Vivemos um século asiático, mas para grande parte dos usuários ocidentais de Internet esse fato poderia passar desapercebido quando se observa a “cesta básica” de aplicativos usados diariamente. Pare e pense nos apps que você usa. Quantos deles são brasileiros? Quantos são asiáticos (ou especialmente chineses)? Quantos são norte-americanos? É provável que empresas americanas sejam responsáveis por grande parte dos apps que você usa: do aplicativo de mensagens instantâneas ao e-mail, do app de streaming de música ao de conteúdo audiovisual, do app para videoconferências aos games. Mas curiosamente os hardwares que usamos, já por décadas, são de países asiáticos. Os celulares, tablets, notebooks e TVs não raramente são coreanos, japoneses ou chineses.
A mudança então não acontece na máquina, mas sim no que roda a partir dela. Aliado à expansão de produtos culturais asiáticos (animes, mangás e Kpop, por exemplo), aplicativos do lado de lá do globo começaram a fazer enorme sucesso por aqui. No mercado relevante de redes sociais, o chinês TikTok veio para concorrer com as redes sociais que pareciam firmemente alicerçadas. Então é natural que exista uma competição por mercado e que fatores geopolíticos entrem em cena.
IHU On-Line – O que faz (ou fez) da Google uma das maiores gigantes das Big Techs?
Carlos Affonso de Souza – Dados, dados e mais dados. Quando se repete o mantra de que “dados são o novo petróleo” à exaustão, muitas das diferenças importantes entre a economia do petróleo e a economia dos dados passam despercebidas, mas um ponto é inegável: a ascensão do tratamento de grandes volumes de dados (big data) gerou novas oportunidades de negócios e novas experiências. No centro dos diversos segmentos em que a Google se faz presente, da busca ao YouTube, do e-mail ao sistema operacional, está a habilidade em trabalhar com essa montanha de dados e retornar para o usuário um produto que seja transformador.
O que se discute na ação antitruste é justamente o que a empresa tem feito com esse ativo e como práticas contratuais poderiam tornar um produto que já é alimentado por um pool de dados de enorme valia ainda mais predominante com a celebração de acordos de exclusividade, garantindo que a busca da empresa seja a opção padrão em diversos aparelhos de celular, navegadores de Internet etc.
Especificamente sobre busca – que é o foco da ação antitruste – é inegável que a inovação trazida pela empresa nas últimas décadas transformou a nossa relação com o conhecimento. “Dar um google” se tornou uma expressão corrente dada a excelência do que a empresa entrega como resultados de pesquisa. Uma parte importante desse resultado vem da oportunidade de tratar um volume gigantesco de pesquisas e ir aperfeiçoando as respostas com base nos links que são efetivamente clicados por quem pesquisa algo. Da mesma forma, ao pesquisar logado em sua conta Google o usuário permite também afunilar ainda mais os resultados para dentro das categorias de interesse do mesmo. Tudo isso permite que o acesso a esses dados ajude não apenas a tornar o produto melhor, mas também a consolidar a posição da empresa.
IHU On-Line – Diante do atual poder e formas de atuação da Google, um processo antitruste não parece pequeno diante, por exemplo, da emergência de controle sobre algoritmos e coletas de dados? Por quê?
Carlos Affonso de Souza – Uma ação antitruste precisa ser entendida dentro do seu escopo: proteger a livre concorrência, viabilizando o melhor cenário possível de inovação. Existem diversas medidas regulatórias que podem olhar para outros pontos da atuação das empresas, sendo a proteção de dados pessoais e a proteção dos consumidores, por exemplo, dois outros ângulos de análise.
As ações antitruste ganham bastante repercussão não apenas pelo histórico já lembrado no campo da informática, mas também porque se ficou na memória com a ideia de que esse tipo de ação pode “quebrar” grandes empresas, forçando a sua divisão ou mesmo obrigando a venda de certos segmentos de atuação. Na entrevista coletiva em que a ação foi anunciada, as autoridades norte-americanas afirmaram que nenhuma solução para o problema por elas apontado estaria fora de cogitação.
De toda forma, parece muito improvável que essa ação antitruste do governo dos EUA chegue a esse resultado. O mais provável é que tenhamos um contencioso que se arrastará por alguns anos e que potencialmente pode até mesmo terminar em acordo. Quando se olha pelo prisma do direito concorrencial é preciso entender que ele guarda em si ferramentas importantes para modificar condutas praticadas pelas empresas, mas que essas ferramentas estão adstritas ao foco antitruste da ação. Muitas vezes o problema que se procura diagnosticar não se resolve apenas com as ferramentas antitruste, sendo necessário atentar para a relação entre o direito concorrencial com outras áreas de atuação regulatória.
IHU On-Line – Os Estados Unidos, quando moveram ação, viviam um contexto eleitoral. Essa briga com a Google pode sofrer alterações no Governo Biden?
Carlos Affonso de Souza – Não se pode retirar essa ação do contexto eleitoral que os EUA viviam em 2020. Por outro lado, me parece que a ação transcende os interesses da Administração Trump e encontra também certo eco do lado democrata, embora as preocupações sejam um pouco distintas. A pré-candidata democrata Elizabeth Warren fez da regulação das Big Techs uma plataforma de governo. Mesmo não tendo recebido a indicação do Partido Democrata, as suas ideias encontraram adeptos e devem ter repercussões na Administração Biden.
Todavia, não parece que a regulação das Big Techs seja uma prioridade para a nova Administração logo na largada, uma vez que a plataforma de atuação imediata já elencou como primeiras metas o combate à covid-19, a desigualdade social, a recuperação da economia e a questão climática.
Vale ainda ficar atento ao fato de que Kamala Harris tem um histórico de atuação profissional construído na Califórnia e, em especial, em São Francisco, estando assim imersa em uma cidade que está diretamente conectada ao Vale do Silício. Esse background pode ser importante para entender algumas movimentações do Governo Biden sobre temas de tecnologia.
IHU On-Line – Na sua opinião, somos reféns do monopólio da Google? Como romper com essa relação, sem cair em outras armadilhas das Big Techs?
Carlos Affonso de Souza – Existe um certo paradoxo quando se olham as últimas décadas de desenvolvimento das empresas do Vale do Silício. Por um lado existe grande estardalhaço com o lançamento de um novo produto, especialmente celulares. A imprensa cobre o fato com imediatismo e encontra do outro lado pessoas ávidas por receber o quanto antes essas informações. Filas se formam do lado de fora das lojas e vídeos de unboxing do desejado produto inundam as redes. Essa é a parte que faz barulho.
Muito mais silencioso é o processo de transformação das nossas experiências de vida. Me lembro de escutar uma professora, no começo dos anos de 2010, indagar o que fazia a ilustração de uma jovem tirando uma foto de si mesma estampando uma embalagem de batata frita. Nos anos 1990 não havia conexão entre o ato de tirar uma foto de si mesmo e o prazer (e as consequências) de se comer um pacote de batata frita.
Cada atividade tinha o seu momento: um momento para foto e outro para comer produtos ultraprocessados. Aliás, é justamente a evolução do celular com câmera (e, mais especificamente, o celular com câmera frontal), que dispara todo um movimento de naturalização do ato de tirar fotos de si mesmo a todo instante. Nem que seja para retratar – e compartilhar com o mundo – que se está comendo um pacote de batata frita.
Mas a figura do refém parece não ser a mais apropriada quando se misturam situações em que interesses dos usuários são atendidos e tantos outros são criados. É sempre lembrada a frase de Steve Jobs sobre a importância de suprir os desejos dos consumidores, ainda que eles próprios ignorem a existência desses desejos.
O que mudou na última década é a eliminação da categoria de consumidor de produtos e serviços tecnológicos como sendo um nicho dedicado àqueles que se interessam por esses dispositivos. Somos todos afetados diretamente pelas inovações geradas a partir da atuação das grandes empresas de tecnologia. Mesmo pessoas avessas ou que conhecem pouco sobre o funcionamento da rede carregam um celular com acesso à Internet móvel no bolso.
Entender como esse cenário muda a discussão sobre a atuação da Big Techs é fundamental. E assim podemos ser mais ou menos dependentes de uma certa empresa quanto mais ou menos prestarmos atenção sobre como a tecnologia afeta nossa rotina, nossas preferências e nossas decisões. Ter clareza sobre esse processo permite que o consumidor possa entender os benefícios e os malefícios, os proveitos e os abusos. Navegar nesse oceano de informações, muitas vezes pouco evidentes, pode ser um desafio. E por isso mesmo é que precisamos fazer acompanhar a evolução tecnológica do seu correspondente entendimento e capacitação das pessoas que se valem dela.
IHU On-Line – Quais os maiores desafios para se formar um usuário consciente dos riscos desse mundo digital? Como isso pode impactar o combate à desinformação e às fake news?
Carlos Affonso de Souza – Um dos aspectos mais nítidos dessa necessidade de melhor entendimento sobre como as tecnologias transformam nossas vidas está no combate à desinformação. É importante não colocar toda a culpa nas tecnologias pelas mazelas dos nossos tempos, e no debate sobre as chamadas fake news essa tendência aparece com especial clareza. Colocar a culpa nas redes sociais ou nos apps de mensagens instantâneas por resultados eleitorais ou pela vocalização de conteúdos desinformativos conta apenas metade da história.
É claro que o design de plataformas pode estimular ou reprimir certos comportamentos, mas o resultado final desse processo depende essencialmente de um agir humano. As “notícias falsas” são compartilhadas porque existe um público que se acredita naquele conteúdo. E o combate a esse resultado passa por medidas que são jurídicas, sociais, econômicas e tecnológicas.
Mas especialmente no que diz respeito ao aspecto social, é vital entendermos que o combate à desinformação não pode ser terceirizado. Toda vez que deixamos de apontar um link com conteúdo factual para uma pessoa próxima que compartilha um material desinformativo estamos deixando que esse conteúdo continue a se espalhar e a ganhar viralidade. Conversas francas sobre a origem do conteúdo e as suas imprecisões precisam se tornar mais frequentes do que muitos gostariam.
Por fim, vale lembrar que o termo “fake news” talvez nem ajude a encaminhar essas conversas porque muitos conteúdos desinformativos não se fazem passar por “notícias falsas”. O uso de recursos que mimetizam o conteúdo jornalístico existe em uma parcela importante dos casos, mas nem sempre esse material aparece como sendo assinado por um jornalista ou está publicado em um site que se pretende passar por jornalístico. Muitas vezes a desinformação surge como um boato, uma denúncia ou um vazamento vindo de alguém que parece ter acesso a informações privilegiadas. E, no final das contas, não passa de uma invenção esperta usada para favorecer determinado grupo de interesse.
Ter cada vez mais usuários atentos sobre a origem do conteúdo, a sua linguagem, os fatos narrados e as fontes apontadas é o objetivo do combate à desinformação. Estamos longe desse destino porque também são muitos os desafios e as transformações que a tecnologia nos proporciona e proporcionará nos anos 20. Mas estar atento a essas transformações é o primeiro passo para sermos protagonistas e não apenas consequências desse processo.