19 Outubro 2014
“Estes novos desenvolvimentos em biologia desempenham um papel, mas apenas um papel pequeno, na compreensão contemporânea da identidade humana”, adverte o sociólogo.
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Referência na área de biologia sintética, Nikolas Rose explora em sua obra como os desenvolvimentos científicos mudaram as concepções da identidade e da governança humana e o que isso significa para o nosso futuro político, socioeconômico e jurídico. No entanto, ele foge do deslumbramento de futuristas ou entusiastas dos avanços científicos. De perspectiva crítica e realista, compreende que a área ainda dá seus primeiros passos em direção ao desenvolvimento, ocupando um espaço pequeno na “compreensão contemporânea da identidade humana” na contemporaneidade.
É o caso, por exemplo, do projeto Genoma Humano, cujas perspectivas apontavam que “iríamos nos mover para uma época de fatalismo ou reducionismo genético em que os seres humanos seriam vistos inteiramente em termos de sua composição genética e seriam administrados, controlados, em termos desta composição”. No entanto, isto não aconteceu.
Rose destaca que, em verdade, mais do que se propor a criar novas formas de vida ou de manipular características inatas do ser humano, os estudos mostram que o importante não é apenas os genes, mas o modo como são ativados, ligados e desligados, durante o curso de nossas vidas. Isto é, “a genética é muito mais complicada do que algumas pessoas imaginam e os genes não são instruções digitais para se produzirem seres humanos”.
Em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line, Rose retoma a discussão do modo como a vida humana foi condicionada a “uma existência médica, biológica e cognitiva” — o corpo, o estilo de vida, os filhos, o envelhecimento —, o que vinculou de maneira inseparável a cidadania e a própria ética às questões biomédicas. Rose reflete ainda sobre o modo como este estilo de vida é pautado por um desenvolvimento científico pautado pelo capitalismo financeiro — o que gera exclusão e direciona os avanços.
Tendo em vista as recentes preocupações com a epidemia de ebola, na África, ele se pergunta: “Deveremos dispor estas vacinas às populações em Serra Leoa, apesar de elas não terem sido testadas ainda? Quem pagará por isso? Quem colherá seus benefícios? Será este, no entanto, outro exemplo de um experimento ocidental numa população aprisionada cujas vidas não significam nada?”.
Nikolas Rose é professor de Sociologia e diretor do Departamento de Ciências Sociais, Saúde e Medicina do King's College de Londres. Rose é codiretor do Centro de Biologia Sintética e Inovação (CSynBI), uma importante colaboração de pesquisa entre o King's College e o Imperial College de Londres. Biólogo, psicólogo e sociólogo, Rose cofundou duas influentes revistas radicais nos anos 1970 e 1980, desempenhando um papel fundamental na introdução do pensamento crítico pós-estruturalista francês para o público anglófono e ajudou a desenvolver novas abordagens para a análise e a estratégia políticas. Publicou amplamente sobre vários campos e disciplinas, e sua obra foi traduzida para 13 idiomas. É ex-editor administrativo de economia e sociedade e coeditor-chefe da revista interdisciplinar BioSocieties. Seu último livro, escrito com Joelle Abi-Rached, intitula-se Neuro: The New Brain Sciences and the Management of Life (Princeton: University Press, 2013).
O professor profere a conferência A biopolítica no século XXI: cidadania biológica e ética somática, no dia 22-10-2014, quarta-feira, às 9h, no Auditório Central da Unisinos. O evento integra a programação do XIV Simpósio Internacional IHU - Revoluções Tecnocientíficas, Culturas, Indivíduos e Sociedades. A modelagem da vida, do conhecimento e dos processos produtivos na tecnociência contemporânea.
Foto: Susana Roca |
Confira a entrevista.
IHU On-Line - Quais são as principais relações entre a cidadania biológica e a ética somática?
Nikolas Rose - Para responder a esta pergunta, preciso voltar um pouco. Num livro que escrevi há alguns anos, sustentei que os indivíduos estavam, cada vez mais, definindo suas vidas em termos de uma existência médica, biológica e cognitiva.
Assim, questões centrais sobre como deveriam se relacionar, como deveriam viver, o que deveriam fazer, pelo que deveriam esperar, o que deveriam temer, são postas em termos médicos ou biológicos: administrar o meu corpo, evitar a obesidade, não comer alimentos com altos níveis de colesterol, fazer exercícios, administrar a minha reprodução, preocupar-me com o declínio cognitivo fazendo palavras cruzadas para afastar as consequências de um declínio cognitivo potencial, e assim por diante. Noutras palavras, estas interrogações definidas médica ou biomedicamente estavam começando a desempenhar um papel-chave na forma como as pessoas administram suas vidas no dia a dia.
Ou seja, havia questões éticas para elas. Se considerarmos a ética tal como considero, ou seja, como algo que fala sobre os valores que deveriam orientar um indivíduo enquanto ele administra a sua existência diária, os seus juízos sobre o que é bom, o que é mau, o que é certo, o que é bobagem, o que é virtuoso, o que não é... Se considerarmos que a ética trata deste tipo de questão, então sustento que aquelas interrogações éticas estavam, mais e mais, sendo formuladas em termos somáticos sobre o corpo, sobre como administrar a existência corporal do sujeito.
Esta foi a primeira parte [da resposta]. Por que isso se relaciona com a cidadania? Porque argumentei, novamente, que os indivíduos estavam, cada vez mais, pensando sobre certas características da cidadania também dentro de um quadro biológico, ainda que as autoridades públicas estivessem se preocupando sobre, digamos, o fardo das doenças mentais de seus cidadãos, ou sobre a chegada da epidemia da obesidade, sobre as implicações potenciais de uma epidemia de demência. As autoridades procuravam administrar aqueles que habitavam os seus territórios para tentar minimizar tais ameaças.
Então, visto de cima, por assim dizer, a natureza dos cidadãos está ligada à natureza da biologia deles. E, é claro, isso deveria levantar questões amplas, tais como: Quem cuidará dessas pessoas? E dos idosos? Quem vai cuidar das pessoas com demência? Portanto, trata-se de uma ampla gama de cidadãos com interrogações.
Por outro lado, visto a partir da base, cada vez mais as pessoas estavam exigindo os seus direitos, inclusive os direitos por assistência gratuita, quando estiverem velhos, ou uma assistência gratuita à saúde caso elas — ou algum ente familiar — estiverem sofrendo de demência. Elas estavam exigindo o acesso a drogas muito caras contra o câncer a fim de prolongar suas vidas, ou o acesso a outros tipos de atividades que promovem a saúde. Foi assim que a cidadania se integrou, de forma nova, a estas questões biomédicas. Eis uma longa resposta para a sua curta pergunta.
IHU On-Line - Como essas duas categorias se misturam e dialogam com a biopolítica no século XXI?
Nikolas Rose - Penso a biopolítica como vitalidade: disputa biopolítica em torno do que é a vida como uma espécie de característica vital dos seres humanos, individual e coletivamente. Penso em todas aquelas disputas sobre a administração da vida, a modelagem da vida, a organização da reprodução, o acesso ao aborto, à testagem genética, se os indivíduos deveriam ou não ser geneticamente testados, ou se deveriam ter acesso à assistência médica personalizada, e assim por diante. Desse modo, tenho argumentado que, cada vez mais, a política — a biopolítica — se tornou uma política em torno de questões vitais. E, na medida em que estas interrogações vitais foram compreendidas na linguagem da biologia ou da biomedicina — que é uma espécie de linguagem molecular, uma compreensão molecular do corpo humano como um tipo de máquina vital —, elas acabaram se tornando uma característica da biopolítica contemporânea. Em resumo, este é o argumento — ou parte do argumento que fiz — num livro chamado Politics of Life Itself.
IHU On-Line - Em que medida o biopoder e a dignidade humana são categorias importantes para uma reflexão ética sobre as descobertas e aplicações da biologia sintética?
Nikolas Rose - Esta é a pergunta principal. Quer que eu responda especificamente sobre a biologia sintética? Acho que é importante, neste momento, fazer uma distinção entre a realidade da biologia sintética e a esperança por uma biologia sintética. No momento, ela é uma atividade, em grande parte, laboratorial. Embora haja grandes esperanças pela forma na qual ela possa produzir novas maneiras de criar energia, novas maneiras de se produzir drogas, novos organismos que possam ter consigo funções úteis para os seres humanos, no momento ela se encontra, quase que inteiramente, na fase laboratorial de pesquisa. Portanto, estamos num estágio muito, muito inicial. E, até certo ponto, precisamos ter cuidado sobre as projeções para o futuro a partir de onde nos encontramos no presente. Precisamos perceber que há um longo e sinuoso caminho entre o desenvolvimento destas coisas em laboratório, onde elas podem ter sucesso ou fracassar, e então trazê-las para dentro do mundo. Isso pode levar 5, 10, 15, 20 anos.
Em relação à bioética, penso ser importante aos que se preocupam com as implicações bioéticas se focarem nas coisas que estão acontecendo agora sem supor que tudo que se diz nos debates sobre a biologia sintética seja imediatamente possível. Darei aqui um exemplo muito simples. Uma das grandes preocupações, especialmente nos Estados Unidos, é quanto à forma como a biologia sintética pode possibilitar que terroristas (ou aqueles com intenções malignas) produzam patógenos (bactérias ou vírus) e os usem em ataques terroristas. Meus colegas e eu realizamos um workshop de dois dias para examinar estas questões. O resultado desta atividade com atores muito experientes vindos de uma ampla gama de disciplinas é que estas preocupações estão, realmente, muito fora da realidade. Temos acesso, ou os terroristas têm acesso, a alguns dos patógenos mais virulentos atualmente. Estes estão ao nosso alcance neste momento, mas eles não são usados em grande parte porque é difícil fazer deles armas, é muito difícil usá-los como armamento eficaz.
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“Os leitores de meus livros saberão que sou um tanto cético sobre ideias a respeito da autonomia” |
Então, se o discurso ético acentua os perigos da biologia sintética em relação aos patógenos, na verdade ele serve para aqueles que querem usar estas armas como “armas de medo”, e não armas de destruição propriamente. Se dissermos a alguém: “Colocamos patógenos sintéticos em sua água, e agora você vai morrer”. Isso pode soar improvável de acontecer; na verdade, é provavelmente impossível que isso aconteça. Mas o medo que isso geraria é bastante grande.
Percebo que a ética precisa se manter bem próxima à realidade e evitar aceitar todas as declarações sobre o que vai provavelmente acontecer em 15, 20 ou 30 anos. Não vamos valorizar as questões de biopolítica, embora eu pense que chegamos numa época em que a vida pode ser administrada e modificada no nível molecular, e isso está nos oferecendo, ao lado de especialistas, cientistas, desenvolvedores de tecnologia, um tipo de poder sobre a vida que, realmente, nunca tivemos antes. E aqui estamos nós, com certa cautela — precisamos ser cautelosos quanto a entender a questão —, pois há muitos problemas envolvendo o poder.
Estamos, todavia, numa época em que as disputas de poder sobre esta técnica de manipulação da vida serão cada vez mais salientes. Quanto à participação da biologia sintética como sendo, verdadeiramente, um elemento destas disputas, penso que ela intensifica mais claramente a ideia de que podemos administrar a vida no nível molecular, e até mesmo no nível atômico. Mas não acho que este seja o principal espaço conceitual para a análise do biopoder contemporâneo.
Foto: prezi.com |
IHU On-Line - Quais são as principais mudanças nas concepções de identidade e governança humana a partir dos desenvolvimentos tecnocientíficos?
Nikolas Rose - Penso que estes novos desenvolvimentos em biologia desempenham um papel, mas apenas um papel pequeno, na compreensão contemporânea da identidade humana. Se pegarmos o exemplo da genética, com certeza há os que previram que, com o Projeto Genoma Humano e com sua conclusão, iríamos nos mover para uma época de fatalismo ou reducionismo genético em que os seres humanos seriam vistos inteiramente em termos de sua composição genética e seriam administrados, controlados, em termos desta composição. Na realidade, tal previsão não aconteceu, e isso se deu por duas razões.
Em primeiro lugar está o Projeto Genoma Humano que nos mostrou, de fato, que a maioria daquilo que pensávamos sobre a genética estava errado, que, na verdade, a genética é muito mais complicada do que algumas pessoas imaginam e que os genes não são instruções digitais para se produzirem seres humanos. Os genes somente operam no curso do desenvolvimento, mudando continuamente junto do meio ambiente. E os genes que herdamos desempenham apenas, na melhor das hipóteses, um papel pequeno, porém importante. Mas o que é também importante é como estes genes são ativados, ligados e desligados, durante o curso de nossas vidas no que se chamou, por convenção, de epigenética .
Assim, no que diz respeito à identidade humana, não vimos nenhum reducionismo genético. Vimos explicações genéticas se entrelaçarem, de forma complicada, com outros tipos de explicações. É evidente que há alguns que ainda sonham com explicações genéticas simples sobre doenças humanas complexas; muitas pessoas ainda estão procurando a base genética simples dos problemas complexos de saúde mental. Porém, estão fracassando em grande medida.
Em segundo lugar, penso que quando as pessoas pensam sobre a constituição genética delas, sempre imaginam isto relacionando-a com noções mais antigas de herança, do tipo: “Eu recebi de minha mãe”, ou “Recebi de meu pai”, ou ainda: “Herdei de meus avós”. Estas ideias muito antigas de herança ainda têm grande presença entre as pessoas. Elas se interligam com os argumentos genéticos contemporâneos. Então, de novo, acho que precisamos pensar — e é por isso que a pesquisa de cunho etnográfico, pesquisa detalhada, é valiosa para nós. Penso que ela mostra, em contextos específicos, como as pessoas se ocupam e trabalham com as novas compreensões genéticas que elas fazem por si mesmas.
IHU On-Line - Em que sentido essas mudanças de identidade e governança se traduzem numa modelagem da vida?
Nikolas Rose - Acho que houve uma mobilização da vida desde as origens da domesticação, da criação de cães, da criação de animais, na tentativa de extrair uma espécie de mais valia a partir das capacidades vitais da vida em si. Desde estes tempos, o homem mobilizou suas mais-valias (ou o excedente) para fins próprios. Não que as coisas sejam as mesmas hoje como foram nos primórdios da agricultura, mas, de novo, penso que há uma continuidade, bem como uma mudança, aí presente.
Voltemos para a pergunta sobre a biologia sintética: está claro que uma das coisas que os biólogos sintéticos precisam fazer é mobilizar as propriedades criativas vitais dos organismos vivos e direcioná-los para fins humanos, e assim fazerem organismos que possam ser produtores bastante eficazes de energia, para mobilizar as propriedades vitais das bactérias de forma que elas digiram os poluentes e assim por diante.
Portanto, nesse sentido há uma tentativa de extrair mais valia, de extrair algo que seja explorável a partir das propriedades vitais da vida em si. Quanto a isso, eu mesmo sou uma espécie de neovitalista. Penso que há algo intrigante quanto aos organismos vitais que os distingue da matéria morta. No entanto, algumas pessoas pensam que a biologia sintética nos mostrou que este não é o caso. Claramente pode-se ver a mobilização de mais valia a partir do excedente vital dos seres humanos. Pode-se considerar o transplante de órgãos, a venda de componentes reprodutivos como óvulos e espermatozoides, a exploração das capacidades reprodutivas das mães de aluguel. E, em certo nível, vemos também os esforços no prolongamento da vida ou no aperfeiçoamento das capacidades intelectuais ou das capacidades de memória. Então, percebemos maneiras de tentar manipular, tentar aperfeiçoar ou modular as capacidades vitais para fins humanos e, assim, há uma mobilização da vitalidade. Isso remonta ao que eu disse no começo. Uma vez que começarmos a ver a vitalidade como um tipo de mecanismo, como um mecanismo incrível mas de forma alguma mecanicista, e uma vez que começarmos a fazer a engenharia reversa deste mecanismo, poderemos compreender os processos vitais no nível molecular — e esta compreensão se relaciona intrinsecamente com as intervenções.
Portanto, uma vez que pudermos compreender, poderemos intervir. E uma vez que pudermos intervir, em seguida, num certo sentido, quase tudo se torna possível. Mas há muitas e muitas coisas que ainda são biologicamente impossíveis. A ideia de poder fazer a engenharia reversa de qualquer processo vital, de poder analisá-lo em suas propriedades moleculares e de poder intervir para transformar tais propriedades moleculares de forma que seja possível usar a natureza vital criativa de um organismo vivo para as nossas próprias finalidades — penso que isto tudo seja parte do sonho principal de nossa época.
“Precisamos pensar sobre como tudo o que acontece ao humano tem reverberações em todo o meio ambiente — animado e inanimado — em que vivemos” |
IHU On-Line - Ao mesmo tempo em que há um imenso desenvolvimento tecnocientífico na sociedade, convivemos ainda com problemas como terrorismo, fome e epidemias. Como compreender esse paradoxo?
Nikolas Rose - Uma resposta simples, mas que não está inteiramente equivocada, é que as nossas capacidades tecnocientíficas estão sendo usadas para beneficiar uns poucos. Isso não está completamente equivocado, como disse. Podemos considerar a produção farmacêutica, por exemplo. Podemos perceber que, apesar dos melhores esforços empreendidos por muitas organizações mundiais na área da saúde, a produção farmacêutica ainda está devotada às doenças de uns poucos, os poucos ricos, em vez de voltar-se às doenças da grande maioria.
Até certo ponto podemos ver, em relação à agricultura — e você pergunta sobre a fome —, que, embora tenhamos poderosas tecnologias agrárias e tecnologias agrobiológicas, a forma como elas estão sendo desenvolvidas, em grande parte por empresas privadas, e a forma como elas estão sendo implantadas, em grande parte para manter os monopólios privados, também cooperam para o bem de uns poucos. Penso nos acordos comerciais que têm sido feitos entre os EUA e muitos países da América Latina sobre o uso de organismos geneticamente modificados, de culturas geneticamente modificadas e assim por diante. Os fazendeiros não têm permissão para manter as sementes no intuito de usá-las na próxima geração, ou para realizar experimentos por eles mesmos e melhorá-las.
Assim, em certos níveis os paradoxos que você aponta na pergunta são os paradoxos do capitalismo financeiro acionista internacional e a forma como ele se cruza com os desenvolvimentos tecnocientíficos que enxergamos. Penso que existem — e esta é provavelmente uma opinião pessimista para se terminar uma resposta — responsabilidades também para com os eventos atuais. Vemos o debate corrente sobre o vírus ebola mencionado na pergunta. Sabemos que este paradoxo carrega consigo as suas próprias questões éticas. Sabemos que temos vacinas não experimentadas ainda.
Deveremos dispor estas vacinas às populações em Serra Leoa, apesar de elas não terem sido testadas ainda? Quem pagará por isso? Quem colherá seus benefícios? Será este, no entanto, outro exemplo de um experimento ocidental numa população aprisionada cujas vidas não significam nada? A meu ver, infelizmente vivemos num mundo em que este paradoxo leva as pessoas a rejeitarem as possibilidades de usarmos a oferta da biotecnologia para aliviar a fome e administrar doenças. Penso que há ainda um grande potencial nos organismos geneticamente modificados no sentido de aliviar a fome, e é uma lástima que a luta contra as grandes indústrias do agronegócio seja uma luta contra a própria modificação genética, ou que apresente os seus argumentos em termos contrários aos organismos geneticamente modificados. Penso que isso não seja nada útil. Pertenço a uma antiga tradição que considera o desenvolvimento científico como fundamental ao progresso humano ao longo dos séculos, e como algo que vai continuar sendo fundamental para o progresso humano no futuro. O que precisamos fazer é abraçar a ciência e a tecnociência e tentar usá-las para finalidades humanas e públicas em vez de virar as coisas para a tecnociência em si.
IHU On-Line - Qual é o espaço para a autonomia do sujeito numa sociedade cada vez mais dependente da tecnociência?
Nikolas Rose - Acho que os leitores de meus livros saberão que sou um tanto cético sobre ideias a respeito da autonomia e penso que muitos aqui enfatizam estas ideias em detrimento da ética da dependência, obrigação e solidariedade, que fornecem as condições sob as quais as pessoas podem se sentir como se fossem autônomas. Assim, a autonomia de desenvolve fora de uma infraestrutura coletiva e, até certo ponto, de uma infraestrutura tecnológica. E, se pensarmos sobre isso, poderemos pensar todos os tipos de formas nas quais a tecnologia pode fortalecer a autonomia, porém a certo custo.
Dessa forma, por exemplo, podemos pensar sobre a maneira como as tecnologias móveis de saúde em nossos aparelhos de celular melhoram a nossa capacidade de saber algo sobre as condições de saúde e, talvez, nos ajude a administrá-las. Mas, no mesmo instante, tais tecnologias enviam estas informações para algumas grandes empresas que as usam para seus próprios fins. Podemos dizer o mesmo sobre o tipo de tecnologias sensoriais que se usam em algumas circunstâncias a fim de permitir que alguns idosos vivam em suas casas. Com elas, é possível monitorar se a pessoa está ou não se movendo em sua casa, usando tecnologias sensitivas remotas. Fica-se sabendo se ela acordou no horário certo, se está indo para a cozinha ou o banheiro, etc. Estas tecnologias móveis podem ser usadas para ajudar as pessoas a ficarem em casa e, assim, terem a sua autonomia garantida.
Por outro lado, esta autonomia é garantida a custo de uma espécie de regime de vigilância, se quisermos assim chamar. O mesmo também acontece com as tecnologias que envolvem monitorar espaços internos do nosso organismo, colocando um sensor em nossas artérias coronárias para ver se há, ou não, um acúmulo de material gorduroso e comunicá-lo ao médico. Num nível, isso serve para nos manter um ser humano autônomo. Não é preciso fazer exames o tempo todo, e assim por diante. Mas, noutro nível, tais tecnologias fazem com que os hábitos alimentares e de bebidas sejam monitorados por quem quer que os observe. Portanto, penso que há sempre uma troca nestas questões de autonomia.
E é por isso que elas são eticamente interessantes. É por isso que são difíceis de avaliar. Se tudo fosse simples, então estaria tudo bem. Mas, infelizmente, nos esforçamos junto de nossos alunos no sentido de reconhecer que as coisas são realmente complicadas, realmente ambíguas. E o papel da análise crítica não é se afastar desta ambiguidade, mas ajudar a pensarmos como encarar a questão. Assim, em última instância, é preciso tomar decisões que não são decisões sem custos. Não há autonomia pura. Não há liberdade pura. Tais ideias são fantasias, sinto muito.
IHU On-Line - Ao lado dos inegáveis avanços trazidos pelos saberes oriundos da tecnociência, qual é a sua percepção sobre o antropocentrismo que caracteriza o empreendimento humano da ciência moderna?
Nikolas Rose - Esta pergunta é bastante interessante. De novo, acho que existem duas formas de se pensar aqui. Por um lado, penso que, sim, grande parte da ciência contemporânea é antropocêntrica no sentido de que, em última instância, ela busca beneficiar o ser humano. No entanto, penso que cada vez mais — naquilo que alguns estão chamando de antropoceno — estamos percebendo que é impossível separar os humanos de outras espécies.
Quero dizer, podemos ter a opinião ética de que todas as espécies se equivalem em valor, mas, mesmo se deixarmos isso de lado, o planeta que tiver o objetivo de apoiar os seres humanos é aquele que terá de apoiá-los através de uma relação complexa com um monte de outras dimensões — animadas ou inanimadas — daquele mesmo planeta. E se pensarmos que é possível simplesmente desenvolver um sem afetar os demais, se pudermos aumentar, por exemplo, a expectativa de vida humana de forma que todos nos tornemos imortais, ou transformar as dietas humanas de forma tal que não comamos carne, sem ter maiores consequências para todo o resto da ecosfera em que vivemos, começaremos a perceber que esta é uma maneira míope de se pensar.
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“Os genes não são instruções digitais para se produzirem seres humanos” |
Então, até certo ponto as pessoas estão começando a reconhecer que precisamos pensar, de forma mais simples, sobre as externalidades de nos focarmos sobre os seres humanos. Ou, para dizer de forma mais sofisticada, precisamos pensar sobre como tudo o que acontece ao humano, cada transformação que fazemos numa forma humana de vida, tem reverberações em todo o meio ambiente — animado e inanimado — em que vivemos. E que muitas destas reverberações estarão voltando para nos assombrar, seja no curto prazo ou em definitivo, para assombrar as gerações futuras.
Isto torna as intervenções dez vezes mais complicadas. Mas, infelizmente, esta é a situação em que nos encontramos e que, penso eu, as pessoas estão recentemente começando a compreender, na medida em que pensamos sobre as transformações na expectativa de vida, na demografia, nas transformações das dietas, nas implicações da organização acelerada, no crescimento populacional em diferentes regiões do mundo, e assim por diante. Estamos começando a perceber que estes são fenômenos grandemente inter-relacionados. Estas inter-relações precisam ser analisadas, mas — para ser franco — não somos muito bons em analisá-las, até mesmo no curto prazo, quem dirá fazer previsões acuradas sobre como estarão se comportando no longo prazo. Talvez possamos pensar num horizonte de tempo para 10 anos, talvez 20, mas além de 20, 30, 40 anos, nós, seres humanos, não somos nada bons em prever. Feliz ou infelizmente, é uma prova das incógnitas que perturbam os nossos cuidadosos planos.
Por Márcia Junges e Andriolli Costa
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Biopolítica e complexidade. Da cidadania biológica à ética somática. Entrevista especial com Nikolas Rose - Instituto Humanitas Unisinos - IHU