31 Julho 2013
“Diria que, mesmo não sabendo o impacto real na transformação do comportamento dos ouvintes, a linguagem discursiva encontra no seu correlato a linguagem gestual e performática, um Papa que possuí certa empatia natural com as massas”, avalia a doutora em Ciências Sociais.
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Confira a entrevista.
Em sua visita ao Brasil, o Papa Francisco demonstrou que sua proposta está baseada em “diálogo, diálogo, diálogo”, observa Brenda Carranza, em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line. Na avaliação dela, o Papa insistiu na abordagem de “uma nova evangelização”, a qual exige “ir para as periferias existenciais, geográficas e econômicas, espirituais, ampliando assim a noção de pobreza e colocando no centro a carência do amor com todos seus desdobramentos”.
Brenda acentua que a comunicação verbal de Bergoglio “deixa claras suas ideias e, ao mesmo tempo, as reforça com frases de impacto e gírias juvenis (cultura do encontro, da solidariedade, do descartável, globalização da indiferença; bota-fé, mais água no feijão)”. Para ela, nessa linguagem o Papa transmite “a visão da Igreja sobre a cultura contemporânea e suas relações com a modernidade, retomando, de forma pastoral, os eixos doutrinais da agenda dos pontificados anteriores que incluíram o relativismo, a laicidade e a descrença como ameaças à doutrina cristã, portanto, a necessária defesa do papel agregador da família e da Igreja”.
De acordo com a pesquisadora, os gestos de Francisco, comentados amplamente, são “atributos naturais, reais e verdadeiros, porém magnificados pela linguagem midiática”. E assinala: “Isso tem suas consequências, quer seja na forma como será direcionada a opinião pública quer como será recebida a pessoa, a personagem e sua mensagem. Portanto, será tecida a filigrana de um carisma midiático que, com o intervalo do pontificado de Bento XVI, estabelece um continum entre Francisco e João Paulo II, esse último perfilado como o Papa das multidões, o Papa peregrino”.
Brenda Carranza é doutora em Ciências Sociais e professora da Pontifícia Universidade Católica de Campinas - PUC-Campinas, e coordenadora da Coleção Sujeitos & Sociedades da Editora Idéias & Letras. Entre suas publicações, destacamos Der Katholische Pentekostalismus Brasilens im Wendel. In Pentekostalismus, Frankfurt; Juventude em Movimento: política-linguagens-religião. In: Mobilidade religiosa; Il cristianesimo pentecostale: nuovo volto della chiesa cattolica. In: Religioni e Società; Catolicismo midiático; Catholicism and syncretic religions. In. Concilium.
Confira a entrevista.
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IHU On-Line - Que avaliação faz da Jornada Mundial da Juventude - JMJ enquanto um evento de evangelização de jovens? A que atribui o sucesso desse encontro?
Brenda Carranza - A JMJ é um evento de massa que abrange um sentido muito elástico de evangelização, pois inclui diversas dimensões. Ao se propor congregrar peregrinos brasileiros e estrangeiros, a JMJ propícia espaços e momentos de interculturalidade nos quais línguas, estilos diferentes, visões de mundo, interagem com um objetivo comum. Proposta nem sempre ao alcance de setores populares, maioritários nesse evento. Se é verdade que essa convivência não se improvisa, pois em tese os participantes preparam-se durante dois anos nas suas comunidades locais, também, é certo que será no confronto com o diferente que os jovens se exercitam na alteridade, na aceitação do diferente, na curiosidade do conhecimento daquele que não pertence a meu círculo de relações próximas. Isso por si só já é um ganho. Dadas as condições da infraestrutura, por muitos apontada como precária e caótica, observou-se que os participantes tiveram paciência ao levar numa boa as dificuldades enfrentadas. É um milagre que milhares de pessoas se deslocassem, interagissem e convivessem durante vários dias, sem maiores percalços e com tanta disposição. Não resta a menor dúvida de que a gratuidade é a tônica que perpassa o evento, pois sem o trabalho dos mais de 65 mil voluntários, a JMJ teria sido inviável, humana e economicamente. São a interculturalidade, alteridade, paciência e gratuidade as que educam essa geração que, indiscutivelmente, transfere para a vida cotidiana o que vivência no plano religioso, portanto, com a respectiva incidência na construção da democracia participativa. Obviamente, isso faz com que o encontro seja um sucesso.
IHU On-Line - Ao analisar a JMJ, a senhora menciona a consagração de uma cultura gospel católica. Do que se trata especificamente? Como avalia essa cultura a partir da tradição e do objetivo da Igreja?
Brenda Carranza - Não imagino duas décadas atrás a possibilidade da realização de um flash mob com participação de cardeais, bispos e sacerdotes prévio à realização de uma eucaristia presidida pelo Papa. Acho que não se tinham as condições de manter, durante muitas horas e seguidas, shows animados por padres, bandas e artistas católicos (nacionais e internacionais), todos em sintonia com um estilo gospel. Estilo que nasce no seio das igrejas pentecostais protestantes que, aliaram à gestualidade (olhos fechados, expressões faciais chorosas, cabeça jogada para trás, braços levantados), à dança e, posteriormente, diversos gêneros musicais (rap, funk, hi-hop, forró, reggae), como expressões de louvor e adoração. No final dos anos 1990, com a consolidação do pentecostalismo católico, a Renovação Carismática Católica promoverá a disseminação da música como estratégia de evangelização da juventude, incentivando a formação de inúmeras bandas musicais e a incorporação do gosto gospel. Logo teremos a emergência de uma geração de sacerdotes e religiosos cantores que alavancarão a indústria fonográfica gospel na seara católica, abrindo um novo nicho de mercado consumidor.
Quando afirmo que a JMJ cristalizou a consagração da cultura gospel católica no Brasil, estou-me referindo à evidência desse processo, onde a música, a dança, a adoração e o louvor se entrelaçam com o mercado, o espetáculo, o entretenimento e a experiência religiosa. Em nome de uma modernização e rejuvenescimento da Igreja, essa é uma tendência que se impôs nas diversas latitudes eclesiais. Enquanto a tendência, a cultura gospel rompe com certo estilo tradicional de lidar com a juventude, substituindo o grupo de jovens por cristotecas — espaços de lazer, em ambientes sem álcool, nem drogas e sexo — que serão replicadas na congregação de milhares de jovens em eventos massivos como festivais, rebanhões, acampamentos etc. Por isso foi quase natural que em Copacabana assistíssemos a inúmeras apresentações de artistas consagrados pela mídia e a juventude, mas, na verdade, tal espetáculo é fruto de um processo histórico-cultural que deita suas raízes no universo evangélico.
IHU On-Line - A senhora distingue a visita do Papa ao Brasil em dois momentos: o encontro com os jovens na JMJ, e o encontro do Papa com outros setores da Igreja e da sociedade civil. Quais as especificidades de cada encontro?
Brenda Carranza - Sem dúvida são duas agendas, com especificidades e convergências. A JMJ pressupõe uma dinâmica própria que inclui uma semana missionária na qual os peregrinos de outros países fizeram visitas às igrejas locais no Brasil. No Rio de Janeiro, os peregrinos realizaram encontros catequéticos com bispos brasileiros e de outros países, conviveram com famílias que os acolheram, confraternizaram entre eles ora na proximidade de línguas ora nos shows, nas atividades litúrgicas, na vigília, na via sacra, ainda nos percursos até Copacabana. Já o Papa teve pronunciamentos diante de autoridades oficiais, na sua qualidade de chefe de Estado (Chegada, despedida), interação com diversos setores da sociedade civil (no Teatro municipal), contato com realidades das pastorais sociais (Favela de Varginha, Inauguração do Hospital para recuperação de dependentes químicos), expressão de religiosidade popular (visita ao Santuário de Aparecida), encontro com a hierarquia e setores da Igreja (missa na catedral, mensagem aos membros do CELAM). Enfim, uma agenda paralela aos eventos da JMJ, com mensagens direcionadas a públicos diversos. No seu conjunto as mensagens abordaram temas centrais da realidade latinoamericana como: corrupção, injustiça, relações de mercado, exclusão social. Diante dos eminentes conflitos sociais, com causas histórico-estruturais, Francisco propõe: “diálogo, diálogo, diálogo”. Ao interior da Igreja, o Papa insiste na sua abordagem — que vem sendo reiterada nas suas intervenções no Vaticano — sobre a tônica que uma nova evangelização exige, isto é: ir para as periferias existenciais, geográficas e econômicas, espirituais, ampliando assim a noção de pobreza e colocando no centro a carência do amor com todos seus desdobramentos.
A convergência de agendas, JMJ e do Papa, se dá nos momentos previstos como a abertura oficial da JMJ, Via Sacra, Vigília, Missa de envio, encontro com os voluntários e o inesperado contato com seus conterrâneos argentinos. Do lado do Papa observamos uma comunicação verbal que, a partir de seus pronunciamentos extremamente objetivos e diretos, deixa claras suas ideias e, ao mesmo tempo, as reforça com frases de impacto e gírias juvenis (cultura do encontro, da solidariedade, do descartável, globalização da indiferença; bota-fé, mais água no feijão). Nessa linguagem é transmitida a visão da Igreja sobre a cultura contemporânea e suas relações com a modernidade, retomando, de forma pastoral, os eixos doutrinais da agenda dos pontificados anteriores que incluíram o relativismo, a laicidade e a descrença como ameaças à doutrina cristã, portanto, a necessária defesa do papel agregador da família e da Igreja.
Houve, também, nessas mensagens, uma orientação religiosa que evoca a fé como bússola que dá sentido de vida (você está disposto a entrar na revolução da fé?) e, de forma pitoresca no encontro com os voluntários, ilustra com a própria experiência vocacional as opções ético-morais que devem reger uma juventude cristã/católica. Diria que, mesmo não sabendo o impacto real na transformação do comportamento dos ouvintes, a linguagem discursiva encontra no seu correlato a linguagem gestual e performática, um Papa que possuí certa empatia natural com as massas. Daí que o discurso que apela para a cultura do encontro se complementa nas atitudes pessoais do pontífice, demonstradas ao longo de sua exposição pública (proximidade, abertura de janelas, atenção às pessoas, quebra de protocolos, simplicidade etc). Em outras palavras, a narrativa de carinho se expressa com gestos de carinho, voz e atitude convergem coerentemente. Resultado? Magnetismo pelo convencimento.
IHU On-Line - Qual foi o papel da mídia enquanto produtora de sentido durante a JMJ e a visita do Papa ao Brasil?
Brenda Carranza - Se compreendermos como produção de sentido a capacidade que os mass media têm de recortar a realidade e de interpretá-la a partir de um determinado ponto de vista, diria que a mídia brasileira, concretamente a Rede Globo, com sua ampla teia de meios difusores, é decisiva para construir uma imagem do Papa Francisco, como Papa Pop. Nos seis dias de cobertura total dos movimentos, gestos e palavras do Papa, a lente das câmaras, com seus artifícios de aproximação e/ou distanciamento, foram construindo com linguagem imagética um Papa próximo, meigo, emotivo, atento, simples, de fácil acesso, cativante. Atributos naturais, reais e verdadeiros, porém magnificados pela linguagem midiática. Isso na lógica da comunicação tem suas consequências, quer seja na forma como será direcionada a opinião pública quer como será recebida a pessoa, a personagem e sua mensagem. Portanto, será tecida a filigrana de um carisma midiático que, com o intervalo do pontificado de Bento XVI, estabelece um continum entre Francisco e João Paulo II, esse último perfilado como o Papa das multidões, o Papa peregrino. No circuito da mídia, a reiteração de frases que começam afirmando: “todo mundo gosta de” , “não tem ninguém que”, “o Brasil inteiro sente que”, “toda a cidade parou quando ”, fusionam a mídia e a multidão no crescendo da euforia, ambas se retroalimentam. Telinhas, telões, microfones, redes sociais ecoam a sensação de um sentimento comum que universaliza a empatia e fecha, subliminalmente, a possibilidade de discordância. Tudo isso, independe da vontade pessoal, pois responde a lógica da própria mídia.
IHU On-Line - Francisco, a exemplo de João Paulo II, é um papa midiático? Quais as vantagens e desvantagens desse comportamento?
Brenda Carranza - Acho que o processo da construção de um carisma midiático do Papa Francisco iniciou-se na sua primeira aparição pública, lá no 13 março de 2013, quando se dirigiu à multidão de forma espontânea (foram procur-me no fim do mundo) e próxima (rezem por mim). De início as intervenções do pontífice mudaram de tom: da presença teológica, para o contato pastoral. A espiral midiática dará sequência, o bispo de Roma terá sua vida pessoal detalhada exaustivamente, o passado exposto e o presente alinhavado no formato de pequenos detalhes: olhares, gostos, sorrisos, opções e palavras devem fazer sentido para que encaixem na personagem que é construída. Por isso, o discurso que apela para a cultura do encontro se complementa nas atitudes pessoais do pontífice demonstradas ao longo da sua passagem pelas ruas (proximidade, abertura de janelas, atenção às pessoas, quebra de protocolos, simplicidade).
Não se trata aqui de juízo de valor, mas da percepção da lógica midiática que também produz e reproduz um carisma com códigos próprios. Nesse processo diria que, mesmo não sabendo o impacto real na transformação do comportamento dos ouvintes/receptores, a linguagem discursiva do Papa corresponde uma linguagem gestual e performática, multiplicando a empatia que facilita a recepção de sua pessoa e mensagem, logicamente predispõe-se as massas para escuta. Isso não é pouco, daí que falamos em fenômeno midiático. Mais que desvantagens, neste momento, tendo a pensar em desafios. Um deles pode ser o fardo que toda construção midiática positiva traz, pois permite depositar num sujeito expectativas que vão além dos límites da capacidade pessoal e das condições históricas que permitem mudanças concretas. Ou seja, a passagem da utopia para a ação que o carisma propõe.
IHU On-Line - Qual é o recado do papa aos bispos brasileiros e lationoamericanos, sacerdotes, religiosos?
Brenda Carranza - Parece-me que esse “recado” está na ordem das palavras, do exemplo e da sútil exhortação. Expressões como: “Deixar a psicologia do principado” teve o testemunho de um carro simples de vidros abaixados e o chamado a abdicar de hábitos ostentosos; “Pensemos com decisão na pastoral desde a periferia”, completa-se com a visita a Manguinhos, clamando por sair da sacristia e colocar como epicentro o encontro entre pessoas; “Quem é o principal beneficiário da labor eclesial, a Igreja como organização ou o povo de Deus?”, inclui a inaguração de um serviço no hospital São Francisco e reclama para o descentramento da Igreja. Frases e imagens fortes que deslocam certa visão eclesiológica e comportamento clericalista, alicerçados no carreirismo como hábito e na burocracia como meio de ascensão e privilégio. Certamente, convertem-se em denúncia de uma estrutura que precissa ser renovada. Sem dúvida que, a mensagem tem um duplo registro.
O primiero ad intra eclessia, pois alerta a parcela maior da igreja, a seu universo leigo, que os portadores do sagrado padecem de um mal que precissa ser “curado”. Reconhecimento que rompe simbolicamente com determinados modelos eclesiais que se tem imposto nas últimas décadas. O segundo, ad extra eclessia admite-se publicamente que há necessidade de transformação estrutural, a começar pela Curia romana. O que sinaliza para uma atitude aberta que permite abordar outros temas nevrálgicos entre outros pedofilia, escândalos econômicos, falta de transparência, patriarcalismo, responsáveis por desencadear a deslegitimação da Igreja. Esse duplo registro alívia as tesões entre a Igreja e a sociedade, dá um respiro ao interior do catolicismo e autoriza a imaginar seu revigoramento, pois coloca no âmago da sua mensagem religiosa a preocupação com as dores e as angústias dos homens e das mulheres contemporâneos.
IHU On-Line - Deseja acrescentar algo?
Brenda Carranza - Embora cedo, parece-me que esta primeira viagem internacional, do Papa é fundamental para compreender a dimensão das rupturas simbólicas que têm marcado o início de seu pontificado. Rupturas que, como já disse, articulam-se na solda que seus discursos, palavras e gestos mostram. A passagem de Francisco pelo Brasil sinaliza uma outra rota de um papado mais latinoamericano do que européio, mais colegiado do que hierárquico, mais pastoral do que magisterial, mais coração do que razão, mais Vaticano II do que disciplinar, mais social do que doutrinal, mais inspirador do que amoestador. Enfim, mais respiro. Estamos diante de novos rumos do catolicismo? O tempo confirmará. Por hoje, é uma esperança.
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'A JMJ cristalizou a consagração da cultura gospel católica no Brasil'. Entrevista especial com Brenda Carranza - Instituto Humanitas Unisinos - IHU