15 Outubro 2013
A onipotência de um Deus Todo-poderoso alimenta a angústia e a culpa, adverte Jean-Daniel Causse, pois este é associado a um déspota. Nossa época tem ódio ao corpo e à encarnação porque “a falta nos é insuportável”, constata o psicanalista.
Foto de www.gibertjoseph.com |
“Exegese e psicanálise correspondem a dois métodos distintos; suas perspectivas ou projetos não são os mesmos, seus léxicos são específicos, etc. Portanto, só há diálogo e articulação se as singularidades forem respeitadas”, disse Jean-Daniel Causse (foto abaixo) na entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line. Segundo ele, seu interesse e de Elian Cuvillier em escrever Traversée du christianisme. Exégèse, anthropologie, psychanalyse (Montrouge: Bayard, 2013) foi, ao revisar os grandes temas do cristianismo, “compreender que figuras do humano são elaboradas. Se preferirmos usar o singular: qual sujeito é construído pelo cristianismo?”
E acrescenta: “Um Deus que não é autofundado, ou causa dele mesmo, é o que permeia o pensamento de Agostinho. Na verdade, o que ele diz em dado momento é que o Pai não é Pai sem que haja o Filho. Só existe Pai porque existe o Filho. Não há Pai em si, nele mesmo. É o Filho que faz do Pai um pai. E, inversamente, o Filho não é Filho sem o Pai”.
Jean-Daniel Causse é psicanalista pela Universidade Paul Valéry – Montpellier III, na França, e doutor em Teologia pela Universidade Marc Bloch-Strasbourg II, nesse mesmo país. Leciona no Departamento de Psicanálise da Universidade Paul Valéry – Montpellier III e é membro do
Centro de Pesquisas Interdisciplinares em Ciências Humanas e Sociais (C.R.I.S.E.S, sigla em francês). Também com Elian Cuvillier escreveu Mythes grecs et mythes bibliques. L’humain face à ses dieux (Paris: Cerf, 2007). Com Cuvillier e André Wenin é autor de Divine violence. Approche exégétique et anthropologique (Paris: Cerf, 2011).
Confira a entrevista.
IHU On-Line - O que motivou você a realizar este trabalho interdisciplinar de releitura das principais afirmações teológicas do cristianismo?
Foto de www.iptheologie.fr |
Jean-Daniel Causse - Em Traversée du christianisme. Exégèse, anthropologie, psychanalyse (Montrouge: Bayard, 2013), texto que redigi junto com Elian Cuvillier, revimos as grandes afirmações do cristianismo – os dogmas, como se diz – para saber se ainda podemos esperar que elas nos esclareçam o contexto considerado pós-moderno dos dias de hoje. Em nossa abordagem central, fizemos as seguintes perguntas: O que o cristianismo ainda nos dá a pensar? Qual forma de existência e qual compreensão do mundo decorrem do cristianismo? Qual é, afinal, o gesto decisivo do cristianismo? O que é o cristianismo, no fundo? Foi a essas perguntas muito simples que tentamos responder. Tínhamos a convicção de que o cristianismo é uma invenção de um sujeito humano e uma forma dada ao mundo.
IHU On-Line - Em que aspectos ou em que bases metodológicas a exegese e a psicanálise conseguem dialogar nessa revisão de concepções teológicas que acompanham a história do cristianismo?
Jean-Daniel Causse - Não é a primeira vez que cruzamos as perspectivas exegéticas e psicanalíticas. Já o fizemos anteriormente num livro intitulado Violence divine (ao qual se associou o exegeta belga André Wenin) e, antes disso, por exemplo, em Mythes grecs, mythes bibliques. L’humain face à ses dieux. Exegese e psicanálise correspondem a dois métodos distintos; suas perspectivas ou projetos não são os mesmos, seus léxicos são específicos, etc. Portanto, só há diálogo e articulação se as singularidades forem respeitadas. Você deve ter percebido que Traversée du christianisme tem por subtítulo: exegese, antropologia, psicanálise. Entre a exegese e a psicanálise, há a antropologia. Esta funciona como um traço de união. De fato, o que nos interessou, ao revisarmos os grandes temas do cristianismo, foi compreender que figuras do humano são elaboradas. Se preferirmos usar o singular: qual sujeito é construído pelo cristianismo? Trata-se de uma questão de teologia – saber quem é Deus –, mas ela é correlativa da questão de saber o que significa ser humano, e como sê-lo. Temos então a ideia de que não é algo dado, mas um acontecimento ou uma emergência. Trata-se de vir a ser sujeito.
IHU On-Line - Quais as principais questões antropológicas subjacentes aos temas teológicos que vocês retomam nesse estudo interdisciplinar? Que concepção – ou concepções - de ser humano perpassa estes temas?
Jean-Daniel Causse - Na realidade, as coisas são consideradas de outro modo. Poderíamos dizer que a temática geral segue um credo. Um pouco como o símbolo dos Apóstolos. Não há aí nenhum retorno nostálgico, nenhuma ideia de atemporalidade. Há a ideia de que aí está o que precisamos pensar para hoje. Mas cada tema – o leitor perceberá isso se consultar apenas o sumário – é construído em relação com uma questão antropológica central. Por exemplo: em que sentido a encarnação – que está no cerne do cristianismo – é um modo de pensar o corpo e provavelmente de produzir uma nova concepção do corpo? De que modo a criação – como mito fundamental – permite rever a relação com a origem? De que maneira a ideia de onipotência deve ser retomada para não produzir a angústia ou o fatalismo? O que faz com que o dogma cristão da trindade permita pensar a necessidade dos “três” para que haja laço social entre os humanos? Será que é realmente possível encontrar uma pertinência na ideia do pecado original ou naquela do sacrifício? De que modo a ressurreição é um vazio constitutivo que faz surgir um ser que foge daquilo que quer contê-lo num saber ou num poder?
IHU On-Line - Como podemos compreender hoje o problema da natureza humana e divina deJesus enfrentado pela Igreja primitiva? Como a kenosis de Jesus, na formulação que encontra na antropologia paulina, contribui para resolver este problema?
Jean-Daniel Causse - Temos aí um exemplo típico da nossa abordagem. Não estamos absolutamente interessados nas questões especulativas sobre a divindade nem sobre a humanidade de Jesus, não queremos saber como isso acontece. Nossa questão é diferente. Ela consiste em indagar quais são as consequências antropológicas de pensar que Deus encarna, torna-se humano etc. De fato, como você afirma, Paulo pensou a encarnação em termos de kenosis. Embora raro, esse termo é central. Paulo o emprega para dizer que Deus só toma corpo na condição de não ser o todo, ou seja, se renunciar à totalidade (kenosis significa despojamento, o fato de esvaziar-se de si mesmo). Algo deve perder-se para que haja corpo. São muitos os efeitos de pensar, por exemplo, que nossa época é aquela do ódio do corpo, da encarnação, justamente porque a falta nos é insuportável.
IHU On-Line - Que concepção de ser humano atravessa o relato de sua origem como criação e a Nova Criação em Cristo?
Jean-Daniel Causse - A teologia antiga sustentou a ideia de que a criação divina é uma criação ex nihilo, isto é, uma criação vinda de nada, do nada, ou daquilo que não existe. Esta ideia da criação como criação ex nihilo opõe-se à ideia de um demiurgo, de um deus artesão que cria a partir de uma matéria já existente. Não podemos desenvolvê-la aqui, mas a tese da criação ex nihilo supõe que o criado seja radicalmente diferente do criador. Aquilo que é criado é realmente Outro, uma vez que não é a continuidade. Há também na criação ex nihilo uma ruptura com uma relação de causa a efeito. A criação não é o que devia ser obrigatoriamente. É o que poderia não ter sido. É, pois, aquilo que existe sem causa, sem razão, portanto, gratuitamente, o que não significa sem destino, sem meta. Observa-se o interesse disso para refletir sobre uma nova criação que se encontra em Cristo.
IHU On-Line - Em que a concepção teológica de “Deus todo-poderoso” se distingue de nossas concepções de onipotência?
Jean-Daniel Causse - A onipotência é uma questão muito delicada, pois alimenta uma angústia e uma culpa. Associa-se o Deus Todo-poderoso a um déspota. Paulo inverteu completamente a perspectiva, não passando da onipotência divina a uma não-potência divina ou a uma impotência, mas sim sustentando, paradoxalmente, que a potência se realiza na fraqueza. O que isto quer dizer? Em todo caso, que a condição humana, com seus limites, contém recursos insuspeitos e infinitos. É a diferença que existe em Paulo entre a energeia e a dunamis.
IHU On-Line - Que conhecimento da Trindade perpassa o Novo Testamento? Quais as principais referências para uma compreensão da Trindade em chave antropológica?
Jean-Daniel Causse - Buscaríamos em vão, nos textos do Novo Testamento, a expressão do dogma trinitário do modo como é formulado nos concílios ecumênicos. No entanto, os elementos fundadores que conduzirão à formulação do dogma trinitário estão bem presentes nos diferentes testemunhos dos textos do Novo Testamento (cf., por exemplo, 1 Cor 12, 4-6; 2 Cor 13, 13; Ef 4, 4-6; Mt 28, 19). Eles estão, certamente, ainda longe dos grandes concílios, mas, de certa maneira, já estão no caminho deles. Na verdade, ao abrir espaço para a confissão de um Deus Único e, ao mesmo tempo plural (o que não significa, obviamente, três deuses!), o Novo Testamento testemunha esse fato incontestável e, ao mesmo tempo, decisivo para o nosso propósito: os primeiros cristãos expressaram sua fé no Deus Único, revelado de modo singular em Jesus, o Senhor, e revestido pelo Espírito Santo, ou seja, pelo próprio Espírito de Deus. Esta figura do Espírito, aliás, é central no livro dos Atos (mais de 50 ocorrências), ou no evangelho de João, com a noção de “consolador” (Jo 14, 16-17. 25-26; 15,27; 16, 7-11), ou ainda no texto de Rom 8, 23. 26-27).
IHU On-Line - Quais as contribuições de Agostinho e Lacan para uma explicitação das relações intratrinitárias entre o Pai e o Filho e o Espírito Santo? Como nós, crentes, estamos implicados nessas relações?
Jean-Daniel Causse - Agostinho foi, sem dúvida, o primeiro a tematizar, pelo menos com tal sutileza, um pensamento da Trindade. Ele reflete numa lógica de substancialista. Mas, em certos momentos, também se abre para a ideia de que a trindade é relacional. Ele tem então a ideia de que o Pai não é autofundado. Um Deus que não é autofundado, ou causa dele mesmo, é o que permeia o pensamento de Agostinho. Na verdade, o que ele diz em dado momento é que o Pai não é Pai sem que haja o Filho. Só existe Pai porque existe o Filho. Não há Pai em si, nele mesmo. É o Filho que faz do Pai um pai. E, inversamente, o Filho não é Filho sem o Pai. Quanto ao Espírito Santo, é o laço, a relação ou o que faz a mediação. Lacan retoma isso de forma totalmente laicizada, formulando os três registros da psicanálise: o real, o imaginário e o simbólico. A tese de Lacan é a de que dois não é possível sem que haja três. Poderíamos dizer que para estar ligado ao outro, é preciso que haja mais ou outra coisa além de um e outro simplesmente.
IHU On-Line - Em que perspectivas o pensamento lacaniano instiga o diálogo entre exegese e psicanálise? Quais são as luzes e sombras que surgem desse nexo?
Jean-Daniel Causse - Lacan é profundamente marcado pela cultura cristã, católica na verdade, mas à distância. Ele não se reconhece numa confissão. Mas o pensamento lacaniano questiona profundamente como se tornar alguém, uma pessoa, o que significa ser reconhecido como sujeito singular. Lacan defendeu constantemente a singularidade de cada um, o que faz com que cada um seja um ser único, a ser reconhecido no que é. É esta posição que possibilita um diálogo. Porém, ao mesmo tempo, o Outro de Lacan não é o Deus do cristianismo. Não se deve estabelecer uma concordância. É preciso deixar que as coisas se aclarem na diferença.
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Teologia, antropologia e psicanálise. Desafios para o cristianismo, hoje. Entrevista especial com Jean-Daniel Causse - Instituto Humanitas Unisinos - IHU