27 Fevereiro 2013
"Ciência é algo verificável, baseado em evidências e cumulativo. Mesmo tendo titulação acadêmica, não se pode afirmar qualquer coisa, desconectando-se da realidade", considera o pesquisador.
"Este ano será divulgado o quinto relatório do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas – IPCC e, apesar do conservadorismo da comunidade científica, as evidências são tão gritantes que, sem dúvida, algumas das afirmações do relatório referentes ao aquecimento global e ao papel antrópico vão ser mais fortes ainda que do quarto", informa Alexandre Araújo Costa, professor titular da Universidade Estadual do Ceará, em entrevista concedida, por telefone, à IHU On-Line.
Segundo ele, "o IPCC deixa muito claro que o aquecimento global é inequívoco. Ele existe e é antrópico. Não há como explicar esse aquecimento a não ser pelo aumento na concentração dos gases do efeito estufa. Se fosse pela atividade solar e outros efeitos naturais, teríamos tido, na realidade, um ligeiro resfriamento na metade final do século XX, uma diminuição da ordem de 0,1 a 0,2 graus e não um aquecimento de 0,8 graus".
Alexandre Araújo Costa (foto) é professor, pesquisador e um dos autores do primeiro relatório do Painel Brasileiro de Mudanças Climáticas. Mestre em Física pela Universidade Federal do Ceará, cursou doutorado em Ciências Atmosféricas pela Colorado State University e possui pós-doutorado pela Universidade de Yale. Foi gerente do Departamento de Meteorologia e Oceanografia da Fundação Cearense de Meteorologia e Recursos Hídricos. É professor titular da Universidade Estadual do Ceará e bolsista de produtividade do CNPq.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – O senhor faz parte da corrente de cientistas, que é a grande maioria, que sustenta que há, sim, aquecimento global relacionado à emissão de gases do efeito estufa, entre eles o CO2. Realmente existe o aquecimento global causado por esses gases ou a variação térmica do planeta está relacionada a fenômenos naturais?
Alexandre Araújo Costa – Ciência é algo bem estabelecido, verificável, baseado em evidências e cumulativo. Mesmo tendo titulação acadêmica, não se pode afirmar qualquer coisa, desconectando-se da realidade. Por exemplo, as espécies animais que existem hoje surgiram há 6 mil anos atrás do jeito que são? É evidente que não, pois isso contraria as evidências. Do mesmo modo, negar o aquecimento global é contrariar medições, dados, evidências. Então, é preciso ser bem claro. Não existe mais debate na comunidade científica quanto a isso. O pesquisador analisa dados, submete artigos, isso é debatido em congressos científicos, isso é avaliado para publicação em periódicos. E, obviamente como são hipóteses testáveis, esse processo é repetido várias vezes. No nosso caso específico, existe um corpo de evidências tão grande quanto o que existe a favor da evolução das espécies ou da gravitação universal.
Caminho científico
O Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas – IPCC existe desde 1988, com o objetivo de contribuir para o entendimento dos processos climáticos. Sou um dos autores principais do primeiro relatório do Painel Brasileiro das Mudanças Climáticas, que funciona na mesma lógica, inclusive com a mesma distribuição de trabalho em grupos (bases físicas, vulnerabilidade e impactos e mitigação) e posso lhes dizer como funcionam os painéis. O IPCC não faz nada que não seja levantamento de literatura. Ou seja, não existe uma ciência produzida pelo IPCC à parte da ciência do clima e das demais áreas do conhecimento, que se reflete no que é publicado em revistas tais como a Science e a Nature, além de inúmeras publicações da área em outros meios. Junto à comunidade de cientistas ativos, que desenvolvem pesquisa independente e publicam, existe um claro consenso em torno da existência do aquecimento global e de suas causas. Infelizmente, existe uma distorção disso junto à opinião pública, que é, na verdade, consequência de uma exposição desproporcional dos que defendem a negação das mudanças climáticas, algo que se assemelha ao criacionismo ou do geocentrismo.
Levantamento histórico
O que a ciência tem é atestado por medidas de superfície, de rádiossonda, de satélites. Outro ponto é que o aquecimento não se restringe à temperatura da superfície e do ar, pois existe um fluxo de calor para o planeta que interfere em outros componentes do sistema climático. Na Física básica, aprende-se que existe o calor sensível, que envolve mudança de temperatura sem mudar a fase e o calor latente, que, por exemplo, faz com que o gelo derreta sem mudar a temperatura. Quando dizem “não houve mudança significativa de temperatura, nos últimos 5, 6 anos”, isso é uma meia verdade, pois houve um aumento do conteúdo de calor dos oceanos, sem contar que o que aconteceu com as calotas polares, que perderam massa, principalmente no Ártico. Tudo isso é perfeitamente compatível com o que é fundamental nesse processo todo, que é um desequilíbrio energético: existe mais energia chegando no planeta na forma de radiação de onda curta, isto é, solar, do que deixando o planeta na forma de radiação de onda longa, ou infravermelho. Por conta desse desequilíbrio energético, o planeta está aquecendo, conforme o esperado para uma concentração de CO2 beirando 400 partes por milhão.
Experimentos
É muito estranho e sinto até um certo constrangimento em ovir alguém dizer que o CO2 não exerce controle sobre o clima. Ora, a primeira estimativa do potencial de aquecimento do clima causada por um eventual aumento de CO2 foi feita ainda no século XIX por Arrhenius, uma estimativa razoável para a época. É um fato: nós estamos em meio a um experimento climático planetário involuntário de grandes proporções, que está mudando a face do planeta. Nas eras glaciais, a concentração desse gás era de 180 ppm e nos interglaciais dos últimos 800 mil anos não ultrapassou 300 ppm. Mais: não há registro na história da Era Cenozóica, nos últimos 65 milhões de anos, de existência da calota polar do Ártico em períodos com concentrações de CO2 acima de 400 partes milhão. Há 34 milhões de anos, quando surgiu a calota polar da Antártica, isso aconteceu justamente quando a concentração de CO2 baixou de 500 ppm (partes por milhão). Toda a história do nosso planeta mostra, portanto, uma relação íntima entre CO2 e temperatura.
IHU On-Line – Centros de pesquisa como do Met Office, de Oxford a Berkeley, e entidades globais defendem que existe o aquecimento global. O senhor considera que há o risco destas instituições estarem envolvidas em manipulação de informações para defender interesses dos países ricos?
Alexandre Araújo Costa – Pensar nessa possibilidade é pensar em uma teoria da conspiração inteiramente fantasiosa, além do que chega a ser ofensivo para nós, cientistas. A comunidade científica do clima é a mais transparente que existe. Exatamente porque o clima não tem fronteiras, nossa ciência não tem fronteiras também. Os dados coletados, os resultados de modelos estão aí para todo mundo. Então a resposta é muito clara: não. Não há manipulação de dados pelos centros. Para que isso pudesse ser uma história coerente, teria que ter todos os cientistas da área envolvidos nessa conspiração. Além deles, todos os editores das revistas científicas que publicam artigos com os resultados. Teria que ter corrompido as empresas que fabricam sensores meteorológicos, porque os dados de muitos sensores chega automaticamente e por aí vaí...
Interesses
Se há interesses em jogo, posso garantir que não há interesse maior do que o das companhias de combustíveis fósseis em confundir a opinião pública. É claro que há empresas que querem vender seus aerogeradores, seus painéis solares, etc. Sem dúvida alguma. Mas veja: entre as maiores empresas do mundo, a de maior faturamento é a Shell, a segunda é Exxon. Da lista de 12 maiores companhias do mundo, só o Walmart não pertence ao ramo do petróleo, automobilístico, do gás natural ou do carvão mineral. Há também uma pesquisa que mostra claramente o envolvimento desse setor com os bancos, com os executivos destes tendo assento no conselho deliberativo dessas companhias e vice-versa. E essas corporações poderosíssimas tentam confundir a opinião pública para atrasar as medidas necessárias para conter o aquecimento global, para que seus lucros gigantescos não se reduzam. É a mesma tática utilizada pela indústria do tabaco que, mesmo diante de todas as evidências de câncer ligado ao fumo, conseguiu ganhar muito tempo, semeando dúvidas que não deveriam existir. Sobre o clima, é até espantoso que nós cientistas tenhamos conseguido fazer minimamente que nossas descobertas sejam vistas, sejam ouvidas, passando por cima dessas corporações.
IHU On-Line – É possível estabelecer um diálogo entre estas duas correntes, isto é, os que atribuem o aquecimento da superfície terrestre aos gases do efeito estufa e os que negam essa relação?
Alexandre Araújo Costa – O que existe é o método científico. A ciência é totalmente aberta e há um diálogo constante na comunidade científica com base neste método. Tipicamente, em suas pesquisas, obtêm-se resultados que devem ser reportados em um artigo e submetidos à apreciação editorial de revistas e periódicos. Os pares avaliam, questionam, verificam a correção do método, a qualidade e o mérito do trabalho. O que se pode chamar de diálogo se dá desta forma, através da literatura científica, porque em ciência é preciso estar amarrado em evidências. Nesse contexto, o IPCC cumpre justamente o papel de facilitar, acelerar e qualificar o diálogo na comunidade científica, ao produzir aquilo que são certamente o mais rico compêndio da ciência contemporânea: os seus relatórios. Neles, para se obter, digamos, uma estimativa da influência do sol ou do CO2 no clima nos últimos 250 anos, consideram-se as estimativas feitas por vários autores. O número que o IPCC mostra, que é uma média de todas essas estimativas (publicadas em artigos revisados), é que o acúmulo de energia devido ao CO2, em 2007, já era oito vezes maior que a contribuição das variações na atividade do sol.
IHU On-Line – Quais foram os principais avanços científicos que permitem garantir que o aquecimento global, atualmente, decorre da intervenção humana no planeta?
Alexandre Araújo Costa – Agora temos uma rede de sensores observacionais bastante significativa. Uma das recentes lacunas, mas que está mais próxima de ser preenchida, são as medidas nos oceanos. Hoje existe uma rede de boias que permite quantificar o conteúdo de calor oceânico e entender melhor os fluxos de energia. Afinal, sabe-se que os continentes aquecem e esfriam muito rapidamente, e a maior contribuição para a termodinâmica do clima vem dos oceanos. Na verdade, mais de 90% do desequilíbrio energético associado ao aumento do CO2 é energia que vai para os oceanos. Uma fração menor vai para o gelo, outra para a superfície, outra para a atmosfera. Se formos verificar o que tem acontecido, perceberemos que o aquecimento é muito mais visível quando monitoramos os oceanos.
Monitoramento instantâneo
Os satélites também têm permitido que nós possamos fazer o monitoramento global como nunca antes se imaginou, principalmente das calotas polares, onde os resultados são dramáticos. O gelo marinho não tem apenas diminuído em área; ele tem diminuído em volume. Além de estar cobrindo uma área menor, tendo chegado ao menor valor da história no ano de 2012, ele tem se tornado muito menos espesso. A estimativa em 1979 era de que o gelo marinho do Ártico ocupava 16.855 quilômetros quadrados. Em 2012, são apenas 3.261 quilômetros quadrados.
Projeções conservadoras
Com base nessas novas observações e a partir dos relatórios do IPCC, é possível aferirmos as projeções com a realidade. Em termos da temperatura da superfície, a evolução recente da temperatura, tem estado perfeitamente dentro do intervalo de projeções, determinado a partir dos vários resultados de modelos diferentes, de vários grupos de pesquisa. Já nas outras questões, as projeções têm-se mostrado conservadoras. A expectativa era a de que os oceanos, no começo deste século, se elevassem a uma taxa de 2 milímetros por ano, mas o que a realidade mostra são 3,3 milímetros por ano, correspondendo ao valor mais “alarmista” dentre as projeções de 2007. Hoje, todos sabemos que a projeção de elevação do nível do mar vem sendo subestimada.
Outra projeção que se mostrou muito “cautelosa” é a de perda de gelo nas calotas. A média de degelo que se viu no Ártico em 2012 somente era esperada para 2030, pelo mais pessimista de todos os modelos e para 2060 considerando-se a média de todas as projeções. Havia até modelos que apontavam que chegaríamos no final do século e não teríamos o degelo de 2012. A questão é mais grave porque há, aí, mecanismos de retroalimentação. O gelo é mais brilhante do que o oceano e o solo, ou seja, tem maior albedo, então quando ele derrete expõe uma superfície mais escura, que absorve mais radiação solar, aquecendo o planeta mais rapidamente. Quando se tem um degelo na superfície, a tendência também é que a água de cima da superfície pressione o gelo e consiga perfurar a calota e chegar até a base, levando à ruptura de grandes blocos de gelo. Por fim, sabe-se hoje que o gelo mais novo deixa passar mais raios solares o que gera um aquecimento no oceano abaixo. Esses aspectos não eram levados em conta pelos modelos até recentemente, e isso faz muita diferença.
IHU On-Line – Deseja acrescentar algo?
Alexandre Araújo Costa – Este ano será divulgado o quinto relatório do IPCC e, apesar do conservadorismo da comunidade científica, as evidências são tão gritantes que, sem dúvida, algumas das afirmações do relatório vão ser mais fortes ainda que do quarto. O IPCC deixa muito claro que o aquecimento global é inequívoco. Ele existe e é antrópico.
Combustíveis fósseis
Nós sabemos que o aquecimento global vem da queima de combustíveis fósseis por uma razão muito simples. São vegetais soterrados há milhões de anos que se decompuseram e se transformaram em hidrocarbonetos. A composição isotópica é diferente entre a atmosfera e as plantas que, quando fazem fotossíntese, dão “preferência” ao carbono 12. Quando as plantas apodrecem, milhões de anos depois, os átomos de carbono permanecem. Portanto, os combustíveis fósseis têm uma composição de carbono 12 e 13 diferente da atmosfera, ou seja, são pobres em carbono 13. Se eu queimar combustíveis fósseis e colocar na atmosfera o resultado da queima, vou diminuir a proporção de átomos de carbono 13, que é exatamente o que está acontecendo! Sabemos que o planeta aquece, sabemos que isso se dá principalmente pela elevação das concentrações de CO2 e sabemos exatamente de onde esse aumento vem. Para mim, não há dúvida de que as distorções existentes entre a comunidade científica e o que é veiculado midiaticamente estão relacionadas aos interesses da indústria petroquímica e, no Brasil, a outro componente: o agronegócio. Basta ver o relatório do Aldo Rebelo, de desmanche do Código Florestal, que lançou mão de argumentos de negação do aquecimento global.
Desigualdade, quem sofre são os mais pobres
Outra coisa que é fundamental ressaltar é a desigualdade no processo todo. Quem lucrou com as emissões foram meia dúzia de corporações. Quem é mais pobre é que sofre mais com os impactos. É sobre o pescador que depende dos peixes, que dependem dos corais e pequenos moluscos cuja sobrevivência está sendo comprometida por conta da acidificação dos oceanos, resultado da dissolução do CO2 acumulado na atmosfera. Também são esperados mais eventos extremos com os climas mais quentes, tanto mais enchentes quanto mais secas.
Não é à toa que habitantes de países insulares têm apresentado reivindicações muito claras em relação ao que se refere ao clima, porque buscam que a concentração de CO2 volte para 350 partes por milhão. Esse é o nível seguro que evitaria o aquecimento de um grau. Acima dessa concentração, como já estamos, os impactos esperados sobre esses países são enormes, não só devido à elevação dos oceanos, o que pode fazer alguns deles praticamente desaparecerem ao longo desse século, como também pode comprometer, já nos próximos anos, seus lençóis freáticos, ficando sem água potável.
Energia renovável
O Brasil poderia dar um bom exemplo e sair dessa lógica de hidrelétricas de grande porte e termelétricas, que teve continuidade no governo Dilma, em relação ao de FHC. Hoje, 5% da energia total da Alemanha vem de energia solar, grande parte delas de cima do telhado das casas. Eles têm um plano de em dez anos desativar todas as usinas nucleares exatamente em função do crescimento da energia solar. O local do Brasil onde tem menos radiação solar tem 40% a mais que a Alemanha. Imagina se o governo subsidiasse estes painéis! Eu acho que para as famílias de baixa renda seria doar mesmo e, para a classe média, subsidiar ou criar linhas de crédito. Esse é o caminho.
Zerando o desmatamento e com os recursos renováveis que temos em abundância, o Brasil poderia ser um país de emissão zero, exceto pelo transporte, que também pode evoluir com a necessária aposta no transporte público. O Brasil poderia, então, “falar grosso”, não só com Estados Unidos, mas também com a Comunidade Europeia, com a China e com a Índia, que não têm cortado as emissões em níveis aceitáveis. Em relação às políticas públicas de incentivos ao transporte individual, como a redução de IPI, supostamente para preservar os empregos dos trabalhadores, o país criou algumas cidades com o trânsito totalmente inviabilizado, sem falar da emissão enorme de CO2. É preciso um transporte coletivo bom e barato. É um direito nosso de ir e vir, casado com a necessidade de reduzir emissões.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
''A concentração de CO2 hoje está beirando 400 partes por milhão.'' Entrevista com professor Alexandre Costa - Instituto Humanitas Unisinos - IHU