10 Julho 2010
“O pluralismo religioso é a democratização do campo religioso”, afirma o doutor em Ciências Sociais Wagner Lopes Sanchez. Para ele, isso só é possível graças à existência da diversidade religiosa e à reivindicação da liberdade religiosa. E se a sociedade é democrática, uma de suas exigências “é justamente a convivência dialogal entre as várias visões de mundo”, incluindo a religiosa. Por isso, defende, o diálogo inter-religioso deve se pautar por quatro grandes temáticas, segundo ele: a justiça, a paz, a defesa do meio ambiente e a construção da tolerância.
Nesta entrevista, concedida, por e-mail, à IHU On-Line, Sanchez aborda também o aspecto heterogêneo do campo religioso, que, segundo ele, é marcado por três grandes posições: o exclusivismo, o inclusivismo e o pluralismo. Especificamente com relação ao cenário brasileiro, ele afirma que o cenário é marcado por um florescimento religioso, por uma busca da religião como opção, além daquilo que ele chama de “mixagem religiosa”, sem contar a persistência das várias formas de fundamentalismos.
Wagner Lopes Sanchez é filósofo e historiador, com mestrado e doutorado em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP. Atualmente, é professor assistente-doutor do Departamento de Teologia e Ciências da Religião da mesma instituição. É membro da diretoria do Centro Ecumênico de Serviços à Evangelização e Educação Popular – CESEP. É autor de “Pluralismo religioso. As religiões no mundo atual” (São Paulo: Edições Paulinas, 2005) e organizador da obra “Cristianismo na América Latina e no Caribe. Trajetórias, diagnósticos, prospectivas” (São Paulo: Edições Paulinas, 2003).
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Como podemos entender, em linhas gerais, o fenômeno do pluralismo religioso atual?
Wagner Lopes Sanchez – Nas sociedades ocidentais, o pluralismo é uma característica constante em diversas esferas. Com a liberdade de pensamento e de expressão, o pluralismo torna-se uma consequência fundamental. No caso do campo religioso, o pluralismo religioso é reflexo de dois fatores: existência da diversidade religiosa e reivindicação de liberdade religiosa. O pluralismo religioso é uma condição social própria de sociedades onde não há hegemonia religiosa ou onde a hegemonia religiosa tende a desaparecer.
O pluralismo religioso é, na verdade, a democratização do campo religioso, em que todos os sujeitos religiosos são reconhecidos como legítimos em suas reivindicações, desde que respeitados os princípios éticos.
IHU On-Line – Em sociedades cada vez mais plurais, qual a importância do diálogo inter-religioso? Quais as condições e a “pauta” desse diálogo, em sua opinião?
Wagner Lopes Sanchez – Uma das exigências de sociedades democráticas é justamente a convivência dialogal entre as várias visões de mundo. Os diversos sujeitos, individuais ou coletivos, numa sociedade plural, são convidados constantemente a dialogar sobre as grandes questões que estão colocadas, e a reconhecer o direito à diferença como legítimo. Obviamente, isso se aplica também às religiões. De um lado, elas são convidadas a contribuir na solução dos grandes problemas humanos e, de outro lado, são convidadas a reconhecer a necessidade da convivência até mesmo como uma necessidade de sobrevivência.
Por isso, em sociedades caracterizadas pelo pluralismo religioso, a questão do diálogo inter-religioso coloca-se como um imperativo e como um desafio. Essa exigência não é fundamental apenas para as próprias religiões, mas também para o conjunto da sociedade. Com o diálogo inter-religioso todos ganham: a sociedade em geral, aqueles que têm adesão religiosa e aqueles que não têm nenhuma referência religiosa. A inexistência do diálogo inter-religioso, em contrapartida, pode trazer problemas para as próprias religiões e para o conjunto da sociedade. Quanto à pauta, levanto quatro itens que, penso, são muito atuais: justiça, paz, defesa do meio ambiente e construção da tolerância.
IHU On-Line – Como o cristianismo se posiciona diante do pluralismo religioso e do diálogo inter-religioso? Dentro disso, quais os desafios e possibilidades que se colocam diante dele?
Wagner Lopes Sanchez – O cristianismo é um campo religioso muito heterogêneo, e, por isso, é muito difícil falar em posições unívocas. De qualquer forma, em linhas gerais, podemos identificar três grandes posições no interior desse campo. A primeira posição, que é conhecida como exclusivismo, afirma que o cristianismo é a única religião verdadeira e que, por isso, somente ele é o portador da salvação. As demais religiões não têm nenhum valor salvífico. A segunda posição é a inclusivista, que reconhece a importância das diversas religiões no plano da salvação, mas afirma que a possibilidade dessas religiões salvarem depende do cristianismo. Essa posição, na verdade, é uma tentativa de preservar a importância do cristianismo e, ao mesmo tempo, de reconhecer o valor das demais expressões religiosas. A terceira posição, denominada de pluralista, defende que todas as religiões são expressões humanas verdadeiras do desejo profundo de salvação e, em virtude disso, são legítimas.
As posições inclusivista e pluralista são aquelas que favorecem o diálogo inter-religioso, pois colocam as religiões numa atitude de diálogo e de compreensão com as demais. A crescente diversidade religiosa tanto dentro como fora do próprio cristianismo está fazendo com que igrejas e movimentos cristãos assumam uma atitude de humildade diante dos diversos interlocutores religiosos. Num campo religioso cada vez mais marcado pela diversidade religiosa e pelo florescimento religioso, muitos segmentos do cristianismo estão sendo levados a reverem os seus posicionamentos diante das outras religiões.
IHU On-Line – Em traços gerais, como o senhor analisa o campo religioso no Brasil hoje? Que tendências mais fortes vêm se manifestando?
Wagner Lopes Sanchez – Todo campo religioso é complexo e apresenta sinais de diversidade e também de contradição. O campo religioso brasileiro não é indiferente a isso. Entre as diversas tendências que podem ser identificadas, quero ressaltar quatro. Uma primeira tendência é o florescimento religioso bastante acentuado e que leva a um processo de reinvenção religiosa bastante original.
Outra tendência é a busca da religião como opção. Se, antes, a pessoa tinha uma religião que recebeu da família, agora as pessoas têm a possibilidade de escolher a sua religião ou, então, em alguns casos, de inventar a sua.
Uma terceira tendência é aquilo que podemos chamar de mixagem religiosa. Muitas das expressões religiosas que surgem a cada dia são o resultado da composição de diversos repertórios religiosos que são utilizados de forma bastante livre para compor outros.
A quarta tendência é a persistência das várias formas de fundamentalismos e, em decorrência, de posições intransigentes quanto a outras religiões e visões de mundo. A persistência de fundamentalismos leva à intolerância e a uma compreensão das outras religiões como inimigas a serem combatidas.
IHU On-Line – Em uma situação de crise como a atual, como podemos compreender a religião como tal e seu papel dentro desse contexto?
Wagner Lopes Sanchez – Há um aspecto antropológico presente na religião que é importante ressaltar: a religião é, antes de tudo, uma fonte de sentido e de significados para a vida humana. Ela permite às pessoas construírem “mapas” para se orientarem no mundo. A religião fornece para as pessoas valores e opções a serem seguidos no lusco-fusco da vida cotidiana. Essa é uma função antropológica da religião. Assim, tanto uma expressão religiosa tradicional como uma expressão religiosa recente atendem a essa função própria da religião.
Outra função da religião que é importante compreender é a socialização. A religião permite às pessoas criar novos laços de proximidade e compreender esses laços a partir do universo religioso. No interior das religiões, as pessoas criam redes de relacionamentos bastante palpáveis, que dão a elas segurança e conforto na contramão do anonimato.
IHU On-Line – O senhor aborda a relação entre a religião e o campo religioso e a sociedade a partir de duas categorias, flexibilidade e dialogicidade. O que significam?
Wagner Lopes Sanchez – Enquanto a flexibilidade é a capacidade de uma religião atender a demandas individuais, a dialogicidade é a capacidade de uma religião dialogar com os sujeitos coletivos – diversos grupos e instituições sociais –, incluindo as demais religiões. Uma religião tem flexibilidade enquanto consegue responder adequadamente às diversas expectativas existenciais das pessoas, e tem dialogicidade enquanto consegue dialogar com a sociedade e contribuir com a solução dos grandes problemas.
O pluralismo religioso traz para as religiões essas exigências na medida em que chama a atenção das religiões para a diversidade e a liberdade religiosa. Por outro lado, o diálogo inter-religioso, tão importante numa condição social de pluralismo religioso, depende dessas duas exigências. Uma religião que não tem flexibilidade nem dialogicidade tem muita dificuldade para se inserir em um ambiente de diálogo inter-religioso.
IHU On-Line – Como podemos compreender o fenômeno de um pluralismo religioso crescente diante de outro fenômeno também marcante, o da secularização?
Wagner Lopes Sanchez – A categoria secularização não explica adequadamente o campo religioso presente em sociedades como a brasileira. O florescimento religioso atual, nas várias vertentes e tradições, é um sinal de que a categoria secularização tem limites em sua aplicação e precisa ser matizada. O florescimento religioso bastante acentuado que podemos observar atualmente é reflexo do próprio pluralismo religioso e do recuo da secularização.
IHU On-Line – É possível que as religiões cheguem a um “consenso básico sobre valores obrigatórios, parâmetros inamovíveis e atitudes pessoais básicas”, conceito defendido por Hans Küng como “Ética Mundial”? Por quê?
Wagner Lopes Sanchez – É possível falarmos num consenso básico implícito pelo menos entre as grandes religiões. Acredito que, independente dos diversos diálogos que têm sido realizados, nas grandes religiões, podemos identificar critérios fundamentais convergentes para uma ética mundial. Os estudos de Hans Küng e os seus esforços práticos apontam para essa direção. O grande desafio está em envolver as milhares de expressões religiosas nativas e outras mais recentes.
A construção de consensos só é possível em longas caminhadas. Uma Ética Mundial a partir de um mínimo ético entre as religiões exigirá dos diversos parceiros paciência e capacidade de renúncia para defender o que é fundamental e abrir mão do que é secundário.
(Reportagem de Moisés Sbardelotto)
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Pluralismo religioso: entre a diversidade e a liberdade. Entrevista especial com Wagner Lopes Sanchez - Instituto Humanitas Unisinos - IHU