13 Setembro 2007
A sociedade contemporânea, segundo o professor da PUC-Rio, José Carlos Rodrigues, pode ser dividida em duas partes: a produtora de símbolos e cultura e a consumidora desses dois produtos. Daí surge um novo conceito de corpo para o ser humano: o corpo consumidor. “Não é mais o corpo que produz, mas cada vez mais um corpo que consome, sem cicatriz, sem calosidades, sem marcas do trabalho. E é um corpo do qual cada mínimo detalhe o torna um consumidor especializado. Esse corpo consumidor é, no tempo em que nós vivemos, o grande herói cultural”, afirmou José Carlos na entrevista a seguir, cedida com exclusividade à IHU On-Line, por telefone.
Recentemente, o professor lançou o livro Comunicação e significado: escritos indisciplinares (Rio de Janeiro: Mauad, 2006), em que propõe que o conhecimento, no mundo contemporâneo, deve ser indisciplinar, ou seja, fora do padrão atual onde as disciplinas são divididas dentro de um território próprio e individualizado. “Os pensadores mais importantes do nosso tempo são pessoas que, dificilmente, poderíamos encaixar de modo completo ou perfeito em alguma das especialidades disciplinares”, afirma.
José Carlos Rodrigues é graduado em sociologia e direito pela Universidade Federal Fluminense. É mestre em Antropologia Social, pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e doutor em Antropologia, pela Universidade de Paris, na França. Realizou o pós-doutorado na Universidade de Indiana, nos Estados Unidos. Atualmente, é professor na Santa Casa de Misericórdia do Rio de Janeiro e da PUC-Rio.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Como o conhecimento indisciplinar pode contribuir para a compreensão do mundo social e político, atualmente?
José Carlos – A questão central é que as disciplinas, divididas dentro do modo clássico que conhecemos, cada uma com seu território próprio, fazem parte, no mundo de hoje, do ponto de vista histórico, da formação da cultura ocidental. Os pensadores mais importantes do nosso tempo são pessoas que dificilmente poderíamos encaixar de modo completo ou perfeito em alguma das especialidades disciplinares. Por exemplo, o Foucault (1): ele é historiador, cientista político, psicanalista, ou é jurista? Porque ele estudou tudo isso além da filosofia e da sociologia, ou seja, ele é muito mais indisciplinar do que especialista. Também não é multidisciplinar nem transdisciplinar, porque o que ele faz não é apenas uma associação ou um conjunto de disciplinas preexistentes. Uma pessoa como Edgar Morin (2), por exemplo, que não é um pensador considerado muito importante, não é da comunicação, nem sociólogo, nem antropólogo, mas produz um conhecimento para além desses campos. Foucault e Morin, entre outros, não podem ser encaixados numa estrutura disciplinar. Então, a idéia do conhecimento indisciplinar tem a ver com uma certa recusa das fronteiras que foram estabelecidas entre as disciplinas e que, com freqüência, são muito mais corporativas do que aquilo que é demandado pelo mundo contemporâneo para ser entendido.
IHU On-Line – O conhecimento da comunicação deve se “comunicar” com que segmentos para se desenvolver no mundo contemporâneo?
José Carlos – A comunicação é um belo caso de indisciplinaridade, porque até hoje não se conseguiu estabelecer qual é o objeto de estudo da comunicação. Porque quando se diz que o objeto de estudo da comunicação é a própria comunicação, logo eu pergunto: mas o que é a comunicação? Então, alguns vão dizer que são os meios de comunicação de massa, outros vão incluir aí os fenômenos semióticos de um modo geral, enfim. O fato é que a constituição desse campo é exatamente uma tentativa de conjugar diferentes áreas de conhecimento: lingüística, estética, comunicação de massa, sociologia, antropologias etc. Ele tenta produzir um conhecimento que está além disso, que não é cada uma dessas especialidades nem uma mera associação entre essas especialidades. É o reconhecimento de que esse fenômeno, para ser compreendido, necessita que avancemos além da compartimentação existente entra as disciplinas científicas.
IHU On-Line - Por que pessoas vistas como esclarecidas adotam comportamentos que representam riscos para saúde e mesmo para sua própria vida?
José Carlos – Um problema que tem angustiado as pessoas da área de saúde, um problema comunicacional importante, é que, apesar de todas as campanhas para que as pessoas evitem comportamento de risco, como fumar, beber e consumir drogas, por exemplo, ou para que assumam comportamentos autoprotetores, como, por exemplo, usar cinto de segurança, capacete e camisinha, os resultados têm sido bastante decepcionantes. Então, a pergunta procede: por que as pessoas esclarecidas, que têm informação, ainda praticam comportamentos arriscados? O exemplo típico é: existem milhares e milhares de médicos que são fumantes. Nenhum deles, provavelmente, está desinformado do perigo que o fumo representa. Desse modo, o que explica esse comportamento? Antes de tudo, quero dizer que isso é um grande mistério, que a resposta não é nada fácil, mas que é possível especular um pouco sobre isso.
No livro, eu especulo um pouco a partir de algumas experiências que eu tive pesquisando pessoas que assumem comportamentos de risco. E essas pessoas são jovens que andavam pendurados do lado de fora dos trens no Rio de Janeiro, se divertiam porque faziam isso inclusive quando os veículos não estavam lotados. Também vi trabalhadores de uma companhia siderúrgica que evitam usar os equipamentos de segurança, apesar de toda a pressão do pessoal administrativo. Além disso, pesquisei populações de favelas. Nelas, apesar de crianças com barriga volumosa, com as pernas cheias de pereba, nariz escorrendo, e adultos com olhos injetados, hábitos que não eram agradáveis, que sugeriam para mim um dado patológico, quando eu perguntava mais incisivamente como estava a saúde delas, me diziam que estavam bem. Quando eu também perguntava o que a prefeitura podia fazer para melhorar as suas vidas, me diziam, apesar das valas abertas, das moscas voando, do lixo na rua, que era preciso construir um novo campo de futebol ou, ainda, que deveria se pôr luzes no campo de futebol, para que pudessem jogar a “pelada” à noite.
Esse fato me levava a especular por que as pessoas aceitam ou mesmo procuram situações que lhes oferecem risco para suas vidas e sua saúde? Um ponto da minha especulação, como antropólogo, é que ser humano, que tem consciência da morte e também é o único que se mata, desempenhando um papel ativo em relação à sua própria morte, de certa forma, talvez, em planos e estilos diferentes, precise correr um certo risco de vida para se sentir humano. O nome do capítulo é “Razões do risco e risco da razão” (3), porque o outro lado também é um pouco complicado, no sentido de que também é arriscado ter segurança, ou seja, a segurança comporta riscos inerentes a si mesma. Por exemplo, se uma pessoa casada diz ao seu cônjuge que a partir de hoje vão usar camisinha está colocando o seu casamento em risco, apesar da segurança. O enorme aparato de segurança que é preciso para nos proteger dos perigos das usinas nucleares já é arriscado. A pistola que está com o segurança na porta do banco também contém riscos. As pessoas esclarecidas assumem riscos porque talvez seja inerente ao ser humano experimentar a morte para sentir a vida. Os esportes radicais proporcionam isso também: são extremamente arriscados, mas, ao mesmo tempo, tem extremos aparatos de segurança. É um jogo da nossa cultura ritualizar a oposição entre risco e segurança.
IHU On-Line – Como o senhor analisa o comportamento humano na civilização industrial e de consumo?
José Carlos – Uma das marcas do mundo atual é que o processo de individualização tem se acelerado como nunca, ou seja, cada vez mais as pessoas estão sendo guiadas pelos seus interesses próprios, pela sua afetividade própria. Cada vez mais, elas estão “na sua”, desinteressadas pela diferença dos outros. Qualquer diferença é indiferente, porque o mundo acaba na fronteira do eu. Esse é um processo que marca muito intensamente as formas de comportamento dos indivíduos na sociedade industrial e de consumo. Por outro lado, essa sociedade também é considerada de massa, entendendo-se por esta a massificação, a homogeneização. Então, fica parecendo que há, à primeira vista, uma falsa ilusão de que existe aí uma contradição entre a multiplicação de diferenças que seria intrínseca à individualização e ao processo de massificação, que tenderia a homogeneizar as culturas, os grupos e os indivíduos. A contradição, no meu entendimento, é ilusória, porque não existe caminho mais curto para você ficar parecido com os outros do que ser individualista numa sociedade individualista, ou seja, numa sociedade onde o padrão cultural é o individualismo. A maneira mais curta de você se parecer com os outros é ser individualista também. Depois, nós fomos descobrindo, nas últimas décadas, por meio, sobretudo, das teorias da comunicação, que os meios de comunicação não eram assim tão massificantes como se imaginou nas décadas de 1920, 1930 e 1940. Nos últimos anos, os teóricos vêm percebendo que eles chegam aos seus receptores de maneira diferenciada. Então, o que acontece no mundo contemporâneo é um processo notável, é um jogo de simultânea massificação e individualização, ou seja, totalização e pasteurização paralelas. É como o anúncio que diz que a caneta Bic (4) foi feita especialmente para o receptor, sabendo que ela é extremamente massificada. No entanto, ela foi feita também para uma pessoa individualizada. Na verdade, não existe essa contradição entre massificação e individualização: existe, sim, uma certa complementaridade entre as duas coisas. O anúncio de um produto que testa a gravidez mostra uma moça numa farmácia comprando o produto e logo depois a mostra recebendo o resultado e dando um sorriso. Por esse sorriso, você não sabe se ela está satisfeita porque está grávida ou não está grávida. Nas duas situações, o anúncio serve. Assim, ao mesmo tempo, ele é homogeneizador, porque vende o peixe para a sociedade industrial, e individualizador, porque o produto serve para duas situações. Essa é uma característica importante do mundo atual.
IHU On-Line – Como a comunicação influencia nos processos de significação, para a sociedade contemporânea, nas relações de poder, individualização e miséria, por exemplo?
José Carlos – Esse é um ponto realmente importante. Uma característica do mundo contemporâneo é que existem sociedades com a capacidade extraordinariamente desenvolvida de produção de símbolos, de signos, de mensagens de comunicação, que têm milhares e milhares de redes de televisão e rádio, bibliotecas, universidades, redes escolares, redes de telecomunicação, enfim, sociedades que são desenvolvidas em termos de produção de símbolos. Por outro lado, existem sociedades com dificuldades de continuar viabilizando a sua própria cultura, os seus próprios símbolos. São sociedades que mal conseguem continuar veicular e produzir, por exemplo, as suas próprias músicas, que não conseguem mais repassar suas histórias dos avôs para os netos. O ser humano é, por excelência, o ser do símbolo. O que o faz desse jeito não é respirar, ver ou sentir, mas sim a dança, a música, o riso, o humor, a narrativa, a fala etc., ou seja, nossa dimensão cultural. Quando se coloca sociedades que têm dificuldades de produzir o seu próprio simbolismo ao lado de sociedades que têm essa inflação de produção simbólica, a sociedade deficitária vai importar o simbolismo das sociedades que produzem superavitariamente. Essas sociedades deficitárias vão se identificar cada vez menos consigo mesmas, e a dor disso será cada vez mais suportável, até, finalmente, desaparecerem. Então, temos uma enorme produção de lixo cultural, nessa sociedade superavitária, enquanto na outra existe uma enorme importação de lixo cultural. Essa é uma grande questão do universo comunicacional contemporâneo.
IHU On-Line – Para o senhor, quais são as representações do corpo feitas pela cultura midiática contemporânea?
José Carlos – Historicamente, no Ocidente, tivemos o corpo que os antropólogos e historiadores chamam de corpo promíscuo, que é aquele que se mistura com o mundo e com outros corpos. É um corpo comunitário, no qual tudo é exibido em público e em coletividade. Com o desenvolvimento do capitalismo, começa a surgir um corpo com outras características, que é um individual, separado dessa promiscuidade. É um corpo disciplinado, que não se mistura com o mundo, que se separa do mundo e de outros corpos. O corpo é treinado para determinadas funções, em geral ligadas ao trabalho e à produtividade. Surge, assim, um corpo que acompanha o desenvolvimento do capitalismo até a sociedade industrial: ele se baseia, sobretudo, nos múltiplos. Mas, na sociedade industrial, esse corpo começa a entrar em declínio, porque a lógica da sociedade industrial faz com que os músculos sejam substituídos por máquinas. Progressivamente, esse “corpo-ferramenta” vai cedendo espaço para o corpo consumidor, que vai desempenhar um trabalho que antes era feito pelos outros corpos. Não é mais o corpo que produz, mas cada vez mais um corpo que consome, sem cicatriz, sem calosidades nem marcas do trabalho. Trata-se de um corpo do qual cada mínimo detalhe o torna um consumidor especializado. Esse corpo consumidor é, no tempo em que nós vivemos, o grande herói cultural. Ele é o grande modelo de corpo. Os outros tipos de corpo não desapareceram completamente. Entretanto, embora a hegemonia seja cada vez maior do corpo consumidor, aqui e ali nós encontramos os outros corpos. Esse é mais ou menos o cenário contemporâneo, com a existência dos três tipos de corpos, mas com a predominância do corpo consumidor.
IHU On-Line – Como a sociedade pode ser caracterizada como um sistema de significação?
José Carlos – A idéia da sociedade como sistema de significação é de que as relações sociais são próprias de mensagens e de que cada mínimo detalhe pode carregar informação sobre as intenções e o lugar das pessoas nela. A idéia da sociedade como um sistema de significação quer dizer que tudo nela tem sentido. Mesmo aquele que uma sociedade exclui faz parte inclusiva dela. Mesmo os ideais de não ser, aquilo que uma sociedade não pretende ser, ou que a educação diz para as crianças evitarem ser, são maneiras de ser dessa sociedade. Aqueles que estão fora da sociedade, supostamente excluídos, os prisioneiros, por exemplo, de certa maneira são parte integrante fdela, porque significam o oposto do que ela deve ser. Encarar a sociedade como sistema de significação significa se perguntar, a cada gesto, o que isso quer dizer entre os participantes e para um observador que tenta entender aquela sociedade. Se eu vejo num automóvel um casal, o homem dirigindo e a mulher abraçada a ele, eu posso, quase com 100% de certeza, dizer que eles são casados um com o outro, porque a forma de relacionamento corporal também significa. Se uma mulher diz para um homem “casa comigo”, há uma chance muito grande de ser brincadeira. Se o homem diz para uma mulher “casa comigo”, a chance de ser brincadeira, em geral, é bem menor. Então, a idéia de encarar uma sociedade como um sistema de significação é tentar captar como que os detalhes são signos que expressam relações entre os seres humanos. Desse modo, esses signos são bem ostensivos, mas também podem ter aspectos menos ostensivos. Então, nós olhamos para os objetos e sabemos para que servem, mas, do ponto de vista de quem olha uma sociedade para tentar entender um sistema de significação, nos questionamos sobre o que cada objeto significa. O objeto deixa de ter apenas uma função, e a pergunta fundamental deixa de ser “para que isso serve?”, passando a ser “o que isso significa?”.
Notas:
(1) O filósofo francês Michel Foucault situa-se dentro de uma filosofia do conhecimento. Suas teorias sobre o saber, o poder e o sujeito romperam com as concepções modernas destes termos, motivo pelo qual é considerado por certos autores um pós-moderno. Seus primeiros trabalhos (História da Loucura, O nascimento da clínica, As palavras e as coisas, A arqueologia do saber) seguem uma linha estruturalista, o que não impede que seja considerado geralmente como um pós-estruturalista, devido a obras posteriores, como Vigiar e punir e A história da sexualidade.
(2) Edgar Morin é um filósofo francês de origem judaico-espanhola. É considerado um dos principais pensadores sobre complexidade. Entre suas obras, destacam-se Cultura de massas no século XX e Para sair do século XX.
(3) Capítulo do livro Comunicação e significado: escritos indisciplinares, no qual o autor debate uma das grandes inquietações de pais, educadores, psicólogos, profissionais de comunicação social: por que pessoas a princípios esclarecidas adotam comportamentos que representam riscos para a saúde e mesmo para a sua própria vida?
(4) Bic é uma empresa francesa fundada em 1945. É conhecida por fabricar produtos descartáveis de baixo custo, incluindo isqueiros, canetas e aparelhos de barbear.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Comunicação, significações e indisciplinaridade. Entrevista especial com José Carlos Rodrigues - Instituto Humanitas Unisinos - IHU