24 Abril 2007
O etanol e o biodiesel são os assuntos em voga quando se trata da economia brasileira atual. E a grande preocupação, em relação à produção de biodiesel, vem dos pequenos agricultores que enxergam, no cultivo das matérias-primas desta fonte alternativa de energia, uma forma de ganhar seu pão diário. Com isso, criou-se um programa que incentiva a produção de diesel a partir de óleos vegetais e que tem sido usado para promover a agricultura familiar. Porém, este programa pode seguir a linha que hoje a produção do etanol vem trilhando, ou seja, sua produção e rumos estão, cada vez mais, passando às mãos dos grandes empresários do agronegócio. No caso do biodiesel, os agroindustriais passam por uma crise na produção e exportação da soja e se organizam para que o Governo opte pela produção do biodiesel por meio do seu produto, a soja, a oleaginosa, que menos produz óleo. Esta mesma preocupação tem o professor Francisco Alves, da Ufscar. Por isso, a IHU On-Line entrevistou-o, por telefone. Já no início da conversa, Francisco avisa que há uma guerra no que envolve o biodiesel familiar e a agroindústria e ressalta “A crise está no interior do governo”.
Francisco Alves formou-se economista pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Em seu mestrado, realizado na mesma universidade, trabalhou questões como fatores do crescimento das cidades. Lidando sempre com temas como relações de trabalho, desenvolvimento sustentável, movimentos sociais e economia solidária, fez seu doutorado, na Unicamp, em ciências econômicas, com foco nas lutas dos trabalhadores assalariados rurais.
Atualmente, Francisco Alves é professor na Universidade Federal de São Carlos, em São Paulo.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Quais são os maiores entraves do biodiesel familiar e da agroindústria?
Francisco Alves – Há uma guerra entre o biodiesel pensado pelo Ministério do Desenvolvimento Rural e Reforma Agrária e o biodiesel pensado pelo Ministério da Agricultura. A crise está no interior do governo. O pensado pelo Ministério da Agricultura tem como fundamento fortalecer e arranjar uma alternativa à queda de preço da soja no mercado externo. O outro biodiesel é o que vê a possibilidade do pequeno produtor familiar produzir um produto que tenha mercado garantido. A Abag – Associação Brasileira de Agronegócio, da qual fazia parte o ex-ministro da agricultura, Roberto Rodrigues (1), está interessada em dar uma solução aos sojicultores. A soja vem caindo de preço no mercado externo já faz algum tempo e, portanto, está reduzindo a lucratividade dos sojicultores. Então, uma das possibilidades é, no lugar de se utilizar soja para a venda direta no mercado externo, utilizá-la para produção de biodiesel, que pode ser produzido a partir de qualquer óleo. Basta ter uma fonte de óleo qualquer misturada com álcool na proporção de um litro de óleo para um terço de álcool para se obter biodiesel. O problema é o seguinte: a soja é um dos produtos que têm a mais baixa relação de óleo, produzindo menos óleo do que outras culturas.
Ela produz um terço do que produz a mamona (2) e um quarto do que produz o dendê (3). O dendê e a mamona podem ser produzidos pelos pequenos agricultores. Então, se o Estado passa a assumir a compra pelos menos de parte do excedente de soja para produção de biodiesel, ele perde um mercado que renderia mais. É o mesmo efeito que o Pro-Álcool (4) teve na década de 1970 para a crise de preço do açúcar. Ele foi criado para resolver o problema da queda de preço internacional do açúcar no mercado externo. Então, o açúcar despencou no mercado externo, os usineiros bateram às portas do Estado para arranjar um jeito de resolver o seu problema financeiro. A alternativa foi o Pró-Álcool, ou seja, as usinas, além de produzir açúcar, vão produzir álcool para venda no mercado interno fazendo frente à subida de preço do petróleo. Ele foi vendido como uma alternativa brasileira à crise do petróleo, mas, na verdade, foi o resultado da crise dos preços do açúcar no mercado externo. Os preços do açúcar despencam; você cria o álcool e cria preço para o álcool, cria demandas para o álcool, porque ele vira energia, introduzindo-o na matriz energética, misturando-o à gasolina e, portanto, proporciona preço e demanda para carros que são movidos a álcool. Portanto, as usinas, no lugar de produzirem açúcar, produzem álcool e, para conseguirem isso, conseguem vultosos incentivos do Estado.
O biodiesel de soja é exatamente isso, ou seja, uma forma de resolver os graves problemas de caixa dos produtores de soja provocados pela crise de preço internacional da soja. De um lado, uma parte do Estado deseja que o biodiesel seja fundamentalmente da agricultura familiar no sentido de criar alternativa de produção e mercado para os produtores familiares. Trata-se de uma antiga reivindicação dos defensores da reforma agrária. Por outro lado, os sojicultores, o pessoal do agronegócio, defendem que o biodiesel seja fundamentalmente da soja para resolver o problema de preço dos sojicultores. A Miriam Leitão, dia desses, escreveu um artigo primoroso sobre isso, em que ela dizia que durante muito tempo os sojicultores ganharam uma grana fantástica, desmataram a Amazônia, produziram muita soja e eram principalmente gaúchos. Você encontra gaúchos hoje em qualquer lugar do Brasil, principalmente no Centro Oeste, onde foram levar suas tecnologias de produção. Durante muito tempo, eles ganharam muita grana e agora pararam por causa da crise internacional da soja. Bom, nesse momento eles chamam o Estado para salvá-los, e é nessa história que estamos envolvidos hoje.
IHU On-Line – Qual é a solução do governo?
Francisco Alves – O governo está tentando dar uma no cravo e outra na ferradura, ao afirmar que o biodiesel é um programa fundamentalmente da agricultura familiar. Ele admite que no Nordeste a produção de biodiesel virá fundamentalmente da agricultura familiar e no Sul virá da soja. Eu fico pensando o seguinte: quando você coloca a soja e seus produtores com toda capitalização que eles têm frente aos produtores familiares, quem vai levar vantagem nessa queda de braço? A história tem mostrado que quem sempre tem ganhado nessa queda de braço são os grandes proprietários, mais capitalizados. O Pro-Álcool, quando nasceu, foi pensado também em ser produzido a partir de microdestilarias, inclusive utilizando produtos da agricultura familiar no caso a mandioca. O que se produziu no Brasil de álcool vindo da mandioca? O que se produziu no Brasil de álcool vindo de microdestilarias? Coisa nenhuma. De novo a gente corre o risco de ter os pequenos produtores, os primeiros pensados nessa alternativa do biodiesel, sendo colocados de fora. Eu sou um defensor do biodiesel. Agora, eu acho que o governo tem que deixar claro quem ele pretende beneficiar com o biodiesel. Se ele tentar beneficiar os dois vai fazer a mesma besteira que fez no Pró-Álcool.
IHU On-Line – E como o senhor acha que o governo pode intervir a favor dos produtores de matérias-primas do biodiesel?
Francisco Alves – À medida que esse biocombustível for sendo comprado pela Petrobras , ele pode direcionar isto. Não com certeza, porque o pessoal da soja também quer os mesmo incentivos dados aos pequenos agricultores. Mas não oferece incentivo, não faz as unidades energéticas que o governo quer fazer, o que, no papel, é até interessante. Você pensa numa unidade produtora lá no Centro Oeste numa cidade de gaúchos produtores de soja. Parte dela vai produzir, além de soja, também cana. A cana será exportada, direcionada para produção de álcool, e parte da soja destinada para produção de biodiesel. Parte da produção de álcool produzido pela cana será associada à soja para produzir o biodiesel, ao mesmo tempo que parte do biodiesel, volta para as unidades agrícolas para moverem suas máquinas. E a eletricidade gerada a partir do bagaço de cana volta para as unidades agrícolas e o excedente de biodiesel e álcool é vendido para o mercado externo e interno. No papel é interessantíssimo.
IHU On-Line - Como os produtores de oleaginosas podem manter a competitividade com esses produtores de soja?
Francisco Alves – Esse é um tema muito difícil, porque depende fundamentalmente de uma relação de preço que varia de oleaginosa para oleaginosa e depende de uma relação de preço e produtividade agrícola. Eu acho que a matriz que temos montado no Brasil beneficia os grandes produtores, e, portanto, você expor os pequenos produtores, produzam eles o que for, a competir diretamente com os grandes produtores, vai fazer com que eles "dancem”, como historicamente “dançaram”. Até porque todas as grandes tecnologias foram geradas para o grande e não para o pequeno. O que se tem, do ponto de vista do biodiesel, é que a soja é a pior oleaginosa, perdendo para todas as outras, pela sua baixa capacidade de produção de óleo. Porém, é a oleaginosa que o Brasil produz mais e tem uma enorme capacidade de instalação para produzi-la, provocada pelas duas décadas de expansão da soja Brasil afora.
Isso torna a soja competitiva. Do ponto de vista da produção agrícola e da relação entre soja e óleo, o país perde para vários outros. Sem contar um outro produto que está despontando como como uma possibilidade fantástica, que é o pinhão manso. A Embrapa (5) vem investindo pesado no pinhão manso, na domesticação do pinhão porque ele tem uma produção fantástica de óleo e é um produto praticamente de unidade nacional. Existe o pinhão roxo no Brasil inteiro. É preciso vê-lo com uma grande perspectiva. Isso ainda está em estudo ainda, porque nunca se investiu, no Brasil, nisso, uma vez que aqui pesquisa agronômica é só para produto de ric, como a soja. Investiu-se pesado em novos cultivares, novas tecnologias, para a soja, permitindo sua expansão da região Sul para o Centro Oeste. Quem investiu nessa tecnologia foi o Estado.
IHU On-Line – O que o senhor acha do ciclo do etanol e seus avanços na região Sudeste do Brasil?
Francisco Alves – De um lado, ele é legal, porque o Brasil tem uma enorme tecnologia e capacidade produtiva na produção de álcool, conseguida pelos incentivos fiscais na década de 1970, então não podemos jogar isso fora, pois se tornou uma moeda de troca importante nesse momento. Porém, esse setor sucro-alcooleiro tem um enorme passivo social trabalhista e um enorme passivo ambiental. Portanto, se a sociedade não pressionar nesse momento pode ser que a nossa produção de álcool, que está sendo vendida como a solução para o aquecimento global, se torne num grande problema ambiental e social.
IHU On-Line – Por que um grande problema ambiental?
Francisco Alves – Porque ainda se produz álcool hoje no Brasil com uma devastação fantástica da natureza, queimando palha de cana e causando um problema enorme nas cidades. Portanto, torna-se insustentável a produção de álcool dessa forma no País. Eu acho que a gente devia aproveitar esse momento para exigir melhorias nas condições de produção de álcool. Vai depender de como a sociedade brasileira vai reagir à expansão desse produto. A gente vai querer que se expanda o álcool para atender a demanda internacional da mesma forma como que houve expansão de álcool nos 50 últimos anos? Com mão-de-obra barata, terra barata e um forte impacto ambiental? Ou a gente está querendo uma outra coisa. Eu acho que é hora de a gente colocar a expansão do álcool submetida ao controle social e, portanto, a expansão do álcool que se dê de forma sustentável socialmente, economicamente e ambientalmente. Ou seja, os três pilares do desenvolvimento sustentável.
Notas:
(1) Roberto Rodrigues - Foi ministro da Agricultura durante o governo Lula. Roberto Rodrigues é abertamente favorável à adoção dos transgênicos. Pediu demissão do cargo em junho de 2006. Na época, Rodrigues justificou sua saída devido a problemas de saúde de sua mulher, porém alguns deputados da bancada ruralista argumentaram que o ministro estava desgastado no governo e deveria sair para se preservar.
(2) Mamona – É a semente da mamoneira. Também conhecida no Nordeste brasileiro como carrapateira, uma euforbiácea. O seu principal produto derivado é o óleo de mamona, também chamado óleo de rícino. Possui diversos usos na medicina popular, como purgativo e mesmo em aplicações atuais e tecnológicas, pois o óleo mantém sua viscosidade em uma ampla faixa de temperaturas. É também utilizado como base para o biodiesel.
(3) Dendê – É um azeite popular na culinária brasileira e no candomblé. É produzido a partir do fruto da palmeira conhecida como Dendezeiro. Também é indispensável na cozinha afro-brasileira. O azeite-de-dendê pode também substituir o óleo diesel. Atualmente, é empregado na fabricação de sabão e vela, para proteção de folhas-de-flandres e chapas de aço, fabricação de graxas e lubrificantes e artigos vulcanizados.
(4) Pró-Álcool - Foi um programa de substituição dos derivados de petróleo. Desenvolvido para evitar o aumento da dependência externa de divisas quando dos choques de preço de petróleo. Com isso, de 1975 a 2000, foram produzidos cerca de 5,6 milhões de veículos a álcool hidratado.
(5) Embrapa - A Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária - Embrapa, vinculada ao Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, foi criada em 26 de abril de 1973. Sua missão é viabilizar soluções para o desenvolvimento sustentável do espaço rural, com foco no agronegócio, por meio da geração, adaptação e transferência de conhecimentos e tecnologias.
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Biodiesel familiar e agroindústria. Entrevista especial com Francisco Alves - Instituto Humanitas Unisinos - IHU