05 Junho 2016
“Precisamos refletir e questionar as marcas sobre os processos de produção da indústria da moda, reivindicando que valores como sustentabilidade, colaboração, justiça, igualdade sejam considerados pelas companhias e também pelos consumidores, pois todos somos partes dos problemas e das soluções que envolvem a concepção e a circulação desses produtos”, alerta a especialista em moda ética-sustentável.
Crédito: Divulgação Fashion Revolution Brasil |
Tomar consciência sobre os processos envolvidos na indústria da moda, desde a plantação do algodão, passando pela tecelagem do tecido, confecção das roupas, até a chegada do produto ao consumidor final, é fundamental na formulação de medidas que promovam uma cadeia produtiva e de descarte responsável dos produtos, considerando o verdadeiro custo da moda. Essa é a preocupação da mobilização Fashion Revolution, que começou a se articular em 2013, após o desabamento do complexo de oficinas têxteis Rana Plaza, em Bangladesh, considerado um dos maiores desastres industriais do mundo, vitimando milhares de trabalhadores.
“Hoje esse movimento já está em 86 países e atua de diferentes formas com o principal objetivo de conscientizar os consumidores dos verdadeiros impactos ambientais e sociais da indústria da moda e toda a sua cadeia de produção e criação, além de celebrar aqueles que têm um envolvimento mais ético e consciente nesse campo”, explica Fernanda Simon, que também é coordenadora do Fashion Revolution no Brasil.
Em 2016 o movimento está promovendo a campanha “Quem fez as minhas roupas?” com o intuito de chamar a atenção para as condições de trabalho na indústria da confecção de moda, exigir transparência e ética no circuito de produção e circulação dos produtos e ainda retomar o elo entre costureiro e consumidor. “A importância de retomarmos essa ligação é sabermos valorizar as pessoas que produziram as roupas que compramos. O trabalho desses profissionais é muito importante, mas em geral essas pessoas não são valorizadas, acabam escondidas atrás da roupa pronta, e não pensamos em como se dá todo o processo de produção e em que condições e ambientes ele aconteceu”, aponta Fernanda.
Fernanda Simon é graduada em Moda pela Faculdade Santa Marcelina, de São Paulo. Morou durante sete anos em Londres, Inglaterra, onde se especializou na área de moda sustentável e trabalhou com pesquisas, vendas e consultoria, realizando diversos projetos com renomados nomes da moda sustentável. De volta ao Brasil, atualmente coordena o Fashion Revolution Brasil e é consultora e sócia-fundadora da agência UN Moda Sustentável.
A entrevista foi publicada na revista IHU On-Line, no. 486, 30-05-2016, cujo tema de capa é Moda. A segunda pelo do self em movimento.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – A moda pode ser um agente político? De que maneira?
Fernanda Simon – Com certeza a moda é um ato político, pois somos responsáveis por tudo que compramos. Aos adquirirmos algo, passamos a fazer parte do “carma” daquele produto. Se sabemos de onde vem esse produto, quando o compramos estamos compactuando não só com sua origem, mas também com seu destino após o uso.
Foto: reviewslowliving.com.br
Quando compramos um produto feito a partir de mão de obra escrava, ou produzido com matéria-prima que provocou impactos ambientais, estamos alimentando esse processo e contribuindo para que ele continue acontecendo. Da mesma forma temos que pensar no seu pós-uso. Será que esse produto pode ser reciclado, ou vai virar lixo? Para onde ele vai? São questões com as quais precisamos nos preocupar. E ao tomarmos consciência de todo esse processo é necessário que comecemos a refletir sobre que tipo de mundo queremos.
Vejo que esse é o principal objetivo da campanha deste ano do Fashion Revolution. Fazer com que o consumidor tenha consciência e questione a si próprio e as marcas sobre quem fez as suas roupas, exigindo a transparência da cadeia produtiva.
IHU On-Line – Quais são os verdadeiros custos e impactos da indústria da moda em seu ciclo desde a produção até o consumo?
Fernanda Simon – Há as questões dos impactos sociais e ambientais, que não são calculados no preço final dos produtos. Em relação ao custo ambiental, a indústria da moda é a que mais polui no mundo. Pesquisas indicam que cerca de 20% das águas contaminadas industrialmente são provenientes da indústria da moda. Fora isso, há ainda o problema das plantações de algodão, as quais muitas são transgênicas e prejudicam o solo e também os trabalhadores. Por exemplo, na Índia há estudos que comprovam que, nos últimos 16 anos, cerca de 250 mil camponeses já se suicidaram por problemas econômicos em decorrência do monopólio da semente do algodão, originando uma crise humanitária no país. Do mesmo modo, não podemos nos esquecer dos produtos tóxicos que ficam nas roupas e na pele desses trabalhadores e também vão para a natureza.
Em outra fase da produção, há o dilema dos resíduos que sobram dos processos de corte. Cerca de 15%, no mínimo, acaba indo para o lixo. Esse material poderia ser reaproveitado, mas na maior parte das vezes isso não acontece. No outro extremo da cadeia produtiva, as roupas que deixam de ser usadas pelos consumidores também acabam tendo como destino o lixo, sem reutilização. Então, há inúmeros fatores ambientais que não são considerados na hora da compra de uma roupa.
As questões sociais também geram um alto custo. Um dos exemplos é o acidente que aconteceu em Bangladesh, quando em abril de 2013 o complexo industrial Rana Plaza desabou, matando mais de mil pessoas e ferindo gravemente mais de duas mil. Os que não morreram tiveram ferimentos sérios, como a perda de braços ou pernas, e muitos ficaram totalmente incapacitados para o trabalho. Infelizmente, esse tipo de acidente acontece com frequência. Em abril de 2016, também na Índia, houve um incêndio em um prédio onde funcionava uma fábrica de roupas, por falta de segurança no ambiente de trabalho.
Essa realidade se reproduz no Brasil, onde há casos de situações de trabalho análogas à escravidão em diversas confecções, e em São Paulo isso é muito comum. Muitas vezes, estão envolvidas marcas famosas, que são autuadas com bastante frequência. E nós geralmente não pensamos em como e por quem foram produzidas as roupas que compramos, se foi em uma confecção legal; se os trabalhadores eram tratados com dignidade; quais foram os impactos causados pelo tecido, como, por exemplo, o jeans, que passa por diversos processos de lavagem, além de toda a água que já é utilizada para a produção dessa matéria-prima, em seu tingimento e beneficiamento.
O curioso é que os grandes milionários do mundo são os donos das marcas que na produção são autuadas por trabalho escravo. Com esse fato é possível ver que a distribuição da renda ainda é muito irregular.
"A indústria da moda é a que mais polui no mundo" |
IHU On-Line – De que modo você avalia o mercado das grandes marcas da indústria de confecção têxtil no mundo, que em muitos casos vende roupas com altos preços produzidas em condições insalubres de trabalho?
Fernanda Simon – Nas nossas palestras as pessoas sempre nos perguntam se essa situação só acontece no ramo da fast fashion, que é o das grandes redes varejistas de roupas. Mas não. Isso também acontece com roupas de designers, mais caras. Às vezes, essas roupas de altos preços são feitas na mesma confecção da fast fashion. Por outro lado, também existem grandes varejistas e designers que têm uma preocupação maior com essa questão, não podemos generalizar.
IHU On-Line - O que é moda sustentável? Esse conceito também inclui a dimensão social?
Fernanda Simon – Esse conceito também considera as questões sociais, até mesmo porque o desenvolvimento sustentável consiste no equilíbrio dos âmbitos econômico, social e ambiental. Definir moda sustentável é um pouco difícil porque é impossível esse setor ser totalmente sustentável. Na verdade, sustentável mesmo é manter as roupas que já existem, porque toda vez que se vai produzir um produto novo, algum impacto ele vai deixar.
O que defendemos é que a moda seja o mais sustentável possível, que gere menor impacto. Isso consiste em avaliar a matéria-prima, sua origem e como foi produzida, por que processos ela passou, da fibra à fiação, até chegar ao tecido. Também é relevante verificar como esse material foi costurado, como a roupa foi pensada, porque trabalhamos muito com design voltado à sustentabilidade. Então, a moda sustentável atenta para todo esse processo e se preocupa com a questão dos impactos ambientais e sociais, se empenhando em defender condições dignas para todas as pessoas envolvidas em todas as etapas da produção têxtil.
IHU On-Line – No Brasil, como está o desenvolvimento do campo da moda sustentável?
Fernanda Simon – O desenvolvimento desse conceito de moda sustentável ainda está começando no Brasil, mas já existem profissionais brasileiros que trabalham com essa concepção mais empregada, que já criaram marcas com essa base. Isso é muito importante porque atualmente existem outras companhias que cresceram muito, mas que nunca tiveram esse conceito de sustentabilidade na base delas, então agora acabam precisando voltar atrás e rever todo o seu processo de organização e produção para tentar seguir esse caminho.
Entretanto, como eu disse antes, existem marcas que já nascem e se desenvolvem dentro dessa proposta. Algumas organizações têm uma preocupação mais social, outras se ocupam mais com a questão ambiental, como a gestão dos resíduos, e também há as que têm um conceito mais slow, isto é, produzem em um ritmo menos acelerado produtos com maior durabilidade e em ateliês menores etc.
Considerando que o conceito de sustentabilidade é muito mais difundido e há mais tempo em outros países, acredito que no exterior essa ideia ainda é empregada melhor do que no Brasil. Todavia, nesses dois anos de Fashion Revolution atuando no país, tenho percebido um crescimento surpreendente da difusão da noção de produção sustentável na moda.
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"Os impactos sociais e ambientais não são calculados no preço final dos produtos" |
IHU On-Line – Em que consiste o Fashion Revolution? De onde partiu a iniciativa?
Fernanda Simon – O Fashion Revolution se iniciou em 2013, quando aconteceu o desastre em Bangladesh, que foi o desabamento do prédio Rana Plaza, conforme eu citei antes. Grandes marcas conhecidas por nós estavam produzindo nesse prédio quando aconteceu o desabamento, que é considerado um dos maiores desastres industriais do mundo. A partir desse acontecimento, alguns profissionais da Inglaterra, que já tinham a preocupação em trabalhar com uma moda mais voltada à sustentabilidade, mais ética e interessada no bem-estar dos trabalhadores, se reuniram e decidiram organizar um movimento para ressaltar a gravidade do desastre e não permitir que ele fosse esquecido.
Assim que esse grupo fundador do Fashion Revolution se fortaleceu em Londres, em outros países, pessoas que também tinham esse engajamento e preocupação aderiram à mobilização. Hoje esse movimento já está em 86 países e atua de diferentes formas com o principal objetivo de conscientizar os consumidores dos verdadeiros impactos ambientais e sociais da indústria da moda e toda a sua cadeia de produção e criação, além de celebrar aqueles que têm um envolvimento mais ético e consciente nesse campo.
Todos os anos nós promovemos uma campanha diferente que é intensificada em um dia específico, o qual chamamos de Fashion Revolution Day. Mas, neste ano, pela primeira vez tivemos o Fashion Revolution Week, que compreendeu uma semana inteira de celebração. O mote da campanha foi a pergunta “Quem fez as minhas roupas?”, em que nós incentivamos os consumidores a se questionarem e também a questionarem as marcas. Nossa ideia é voltar a conectar o elo quebrado entre o consumidor e o costureiro, pois muitas vezes nem as próprias marcas sabem quem produziu a roupa que elas vendem.
Estamos há pouco mais de dois anos no Brasil. Atuamos nas frentes de conscientização e educação, em que temos nosso maior enfoque, com a realização de palestras nas universidades onde há cursos de moda e outras atividades nesse sentido, pois acreditamos que os novos profissionais são os responsáveis pelo futuro da cadeia produtiva da indústria da moda.
Em abril nós tivemos a celebração da Fashion Revolution Week de 2016, quando foram promovidos mais de 40 eventos em 25 cidades diferentes, com a participação de 27 universidades nessas ações.
IHU On-Line – Qual é a importância de se recuperar o elo entre o consumidor e as pessoas que produzem as roupas?
Fernanda Simon – A importância de retomarmos essa ligação é sabermos valorizar as pessoas que produziram as roupas que compramos. O trabalho desses profissionais é muito importante, mas em geral essas pessoas não são valorizadas, acabam escondidas atrás da roupa pronta, e não pensamos em como se dá todo o processo de produção e em que condições e ambientes ele aconteceu. Por conta dessas questões e do ritmo da fast fashion, a profissão de costureiro acabou sendo desvalorizada pela despersonalização do produto, que são as roupas agora produzidas em grande escala, e pelas longas e exaustivas jornadas de trabalho implementadas para dar conta dessa demanda das grandes marcas de varejo.
Então, nosso objetivo é trazer para a discussão esse contexto e fazer com que esses profissionais sejam reconhecidos e valorizados por realizarem um trabalho que também é importante e muito bonito. A moda é muitas vezes um objeto de desejo e de luxo. Também é um produto muito relacionado à nossa personalidade, à história, enfim, diz muito sobre nós e sobre a cultura de onde vivemos. Assim, esperamos que esse luxo e valor sejam empregados ao longo de toda a cadeia produtiva.
"Nossa ideia é voltar a conectar o elo quebrado entre o consumidor e o costureiro" |
IHU On-Line – Como o Fashion Revolution chegou ao Brasil?
Fernanda Simon – Morei na Inglaterra por sete anos e trabalhei com uma das fundadoras do movimento. Eu também já trabalhava nessa frente da moda sustentável há alguns anos, na área de pesquisas, consultoria e vendas. Na Inglaterra eu comecei a articular o movimento Fashion Revolution Brasil, mesma época em que eu já estava pensando em retornar ao país, e nessa volta eu trouxe essa mobilização para cá. Antes da minha chegada ao Brasil, algumas pessoas já haviam manifestado interesse de se engajar e em seguida formamos uma equipe. Esse grupo atualmente tem colaboradores em diversas partes do país trabalhando nas ações do Fashion Revolution ao longo do ano.
IHU On-Line – Deseja acrescentar algo?
Fernanda Simon – Gostaria de convidar as pessoas a se engajarem nesse movimento e a refletirem sobre esse tema, questionando as marcas sobre os processos de produção da indústria da moda e reivindicando que valores como sustentabilidade, colaboração, justiça, igualdade sejam considerados pelas companhias e também pelos consumidores, pois todos somos parte dos problemas e das soluções que envolvem a concepção e a circulação desses produtos. Assim, todos nós podemos exigir mais transparência e ética nessa cadeia produtiva e fazer com que as coisas aconteçam de um modo diferente.
Por Leslie Chaves
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Responsabilidade para tecer tramas do pensar, agir e vestir com ética. Entrevista especial com Fernanda Simon - Instituto Humanitas Unisinos - IHU