31 Mai 2015
"Dizer: “Quem sou eu para julgar os gays?” é bom para quebrar o gelo, mas é preciso dar seguimento teórico, prático, canônico", afirma o jornalista inglês.
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A ideia de McDonagh fica mais clara quando analisa questões de gênero e aproximações da comunidade LGBT no pontificado. “Dizer: ‘Quem sou eu para julgar os gays?’ é bom para quebrar o gelo, mas é preciso dar seguimento teórico, prático, canônico”, pontua.
O jornalista destaca que é preciso revisitar e reformular antigos conceitos do catolicismo para então afirmar que a Igreja acolhe e aceita a todos de fato. “Este tema, gênero e orientação sexual, requer uma releitura crítica da Bíblia, assim como uma abertura maior ao trabalho das ciências naturais e sociais do último século”, aponta. Nesses casos se coloca a discussão para além da orientação bergogliana de teologia popular. “Nem uma teologia popular nem uma Teologia da Libertação fossilizada, estacionária, é adequada. Por mais que se esforce, parece preso em modos de pensar patriarcais e machistas — e aqui a piedade popular com relação a Nossa Senhora não ajuda”.
Na entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line, Francis McDonagh também analisa as posturas de Francisco diante de temas polêmicos como a reforma da Cúria Romana e escândalos de abusos sexuais envolvendo o clero. Para ele, embora haja muito que avançar, não se pode desconsiderar que o Papa está abrindo o caminho para uma Igreja mais plural. “Vai na linha de João XXIII ao convocar o Concílio Vaticano II, com a famosa imagem de abrir as janelas para deixar entrar ar fresco. Compartilha com o Papa do Vaticano II uma abertura ao diálogo com o mundo”, sintetiza.
Francis McDonagh é jornalista, correspondente para a América Latina da revista britânica The Tablet.
A entrevista foi publicada na revista IHU On-Line, no. 465, E sopra um vento de ar puro... Os dois anos de Papa Francisco em debate.
Confira a entrevista.
IHU On-Line - O que é e como entender a “teologia do Papa Francisco”? Que novas perspectivas pastorais e teológicas o pontificado de Francisco traz para a Igreja?
Foto: nadaerrado.com.br
Francis McDonagh - Um amigo que é pastor da Igreja da Escócia (presbiteriana) fez esta reflexão: “Será que Francisco é o primeiro Papa protestante? Seu desejo de reformar a burocracia do Vaticano faria com que Martinho Lutero estourasse em cantos de louvor. Sua visão de instalar uma jurisprudência eclesiástica transparente (e também em relação com os poderes públicos) segue o proceder de João Calvino na Igreja de Genebra. E seu estilo pastoral não está tão distante daquele descrito por John Wesley quando disse: ‘O mundo é minha paróquia’. Será que o Papa se aproxima aos poucos de uma prática pastoral protestante que delega o magistério ao povo de Deus?”.
Não vou entrar no debate sobre a relação da ‘teologia popular’ e a Teologia da Libertação. Gustavo Gutiérrez diz que a teologia popular é uma corrente da Teologia da Libertação, outros duvidam. Minha impressão é que, para Jorge Bergoglio, mais importante que seus estudos teológicos foi a crise pela qual passou como provincial dos jesuítas da Argentina. Ele próprio reconheceu que foi muito autoritário como provincial, também foi feito provincial muito novo. Mudou, se engajou com a pastoral das periferias. Aí, acho que se defrontou com as complexidades das vidas vividas na precariedade, onde as definições teológicas e as regras canônicas são postas à prova.
Será que é daí que vem a importância do conceito da misericórdia no atual discurso dele? No entanto, não sei se o conceito de misericórdia tem suficiente força, suficiente conteúdo, para enfrentar a tradição doutrinal do Vaticano. Um problema é a formação teológica e ideológica estreita da maioria dos bispos: por mais brilhantes intelectuais que sejam, foram formados numa visão pré-crítica da Bíblia e numa atitude defensiva contra as ciências naturais e sociais. A isso, em parte, se deve a derrota da pauta do Papa Francisco no Sínodo Extraordinário de 2014.
Ao mesmo tempo, o Papa está ampliando o processo de consultas, como consultou Leonardo Boff na preparação da encíclica sobre o meio ambiente e nomeou a Comissão ‘G8’ de cardeais para assessorá-lo. É significativo que essa comissão tenha apenas um único integrante italiano e vários ‘do fim do mundo’: Congo, Índia, Austrália. Este processo pode compensar as limitações de uma determinada perspectiva teológica.
IHU On-Line - Por que Bergoglio incentiva a piedade popular? Qual é a importância da teologia popular para a teologia católica?
Francis McDonagh - Outra vez uma perspectiva presbiteriana: a piedade popular é uma forma do catolicismo romano vivo na América Latina muito debatida, contestada e celebrada. Permite ao Papa atual lembrar à Igreja europeia, especialmente à cúpula romana, que a própria expressão europeia da fé pode ser simplesmente mais uma forma de piedade popular. Não é isso o que Juan Luis Segundo sugeriu ao então cardeal Ratzinger na sua famosa resposta à Instrução sobre a Teologia da Libertação? Mas, por outro lado, tem suas debilidades: como estabelecer uma piedade plural (talvez seja de utilidade aqui a obra de David Tracy), como ser crítica da religião de massa e as suas manifestações.
IHU On-Line - Como a Igreja da Inglaterra está avaliando o pontificado de Francisco?
Francis McDonagh - Esse novo jeito de ser Papa teve um impacto positivo na imensa maioria dos católicos. Abandonar o Palácio Apostólico para um albergue de peregrinos fez com que o Papa passasse a ser uma pessoa normal, ou pelo menos um bispo entre outros bispos e não um monarca. Na verdade, deve-se pensar Inglaterra como Reino Unido (Inglaterra, Irlanda, Escócia e País de Gales). Outra observação preliminar importante é que se trata de uma população pouco praticante do cristianismo tradicional e com uma cultura esmagadoramente secular. Ainda assim, o estilo simples de Papa Francisco tem repercutido na opinião pública. O diário conservador Daily Telegraph o chamou ‘o Papa do povo’, enquanto para o Observer (liberal) ele é ‘comprometido com o mundo’ e ‘um homem da mudança’. Qualquer fala deste Papa é notícia.
Dentro da Igreja católica há uma atmosfera nova. Paul Vallely, jornalista e biógrafo do Papa, diz: “em qualquer lugar aonde eu vá, vejo que Francisco revitalizou e rejuvenesceu os membros comuns da Igreja. São animados. Agora, a gente se orgulha de ser católico, porque seus amigos seculares agora olham a Igreja de uma maneira diferente. Estamos entusiasmados; encontro esse entusiasmo por todo lado. Os únicos com ressalvas são os guerreiros da cultura ou os membros conservadores da hierarquia, mas eles mesmos são ambivalentes, pois reconhecem os ganhos que a sua imensa popularidade traz para a Igreja. Ao mesmo tempo que desconfiam da sua espontaneidade, da sua despriorização das questões sexuais e da sua ênfase numa Igreja pobre para os pobres, não conseguiram desvencilhar-se de uma eclesiologia que os obriga a aplaudir o Papa”.
IHU On-Line - Quais são as reações na Inglaterra sobre a investigação das acusações de comportamentos sexuais inapropriados contra o cardeal escocês Keith O’Brien ?
Francis McDonagh - Aqui há que distinguir Inglaterra e Escócia. Em Londres o caso do cardeal O’Brien é visto mais em termos gerais: o escândalo de um cardeal da Igreja Católica que é objeto de acusações aparentemente bem fundadas de abuso sexual contra subordinados, para os quais tinha um dever de proteção.
Segundo meu amigo pastor, cuja paróquia faz fronteira com a paróquia da Catedral Católica de Edimburgo, os fiéis católicos estão entristecidos, pois O’Brien era um pastor querido. ‘O impacto do caso teria sido de empurrar a Igreja Católica da Escócia mais para dentro de si. Perdeu o desejo agressivo que tinha com O’Brien e seu antecessor, Winning, de ocupar o espaço público.’
O’Brien foi uma das lideranças católicas de Grã-Bretanha mais proeminentes, tido com liberal e uma voz forte contra os mísseis nucleares Trident, baseados na Escócia. Um aspecto interessante é que o presidente da comissão de apuração dos fatos estabelecida pela Igreja Católica da Escócia é um ex-moderador (Presidente) da Igreja da Escócia.
IHU On-Line - Como o Papa se posiciona em relação à comunidade LGBT e ao tema das relações homoafetivas?
Francis McDonagh - Mudou realmente qualquer coisa na Igreja Católica com relação às pessoas LGBT desde que Jorge Bergoglio foi eleito Papa? Será que ele quer seguir uma política de ‘Não pergunte, não conte’ — como antes nas forças armadas norte-americanas — para a Eucaristia? Dizer: “Quem sou eu para julgar os gays?” é bom para quebrar o gelo, mas é preciso dar seguimento teórico, prático, canônico. É como a observação do Papa Francisco sobre a teoria de gênero, de que representa uma ‘colonização ideológica’. Talvez demonstre as limitações da teologia pessoal do Papa, pois este tema, gênero e orientação sexual, requer uma releitura crítica da Bíblia, assim como uma abertura maior ao trabalho das ciências naturais e sociais do último século.
Para isso nem uma teologia popular nem uma teologia da libertação fossilizada, estacionária, é adequada. É notável que ele tenha dificuldade em lidar com a situação das mulheres na Igreja. Por mais que se esforce, parece preso em modos de pensar patriarcais e machistas — e aqui a piedade popular com relação a Nossa Senhora não ajuda.
IHU On-Line - Qual sua avaliação sobre os encontros que o Papa tem tido com representantes da comunidade LGBT? Qual o significado desses encontros?
Francis McDonagh - Esses encontros foram um bom marketing para a Igreja Católica, mas que tipo de teologia o Papa está construindo em diálogo com as pessoas LGBT? Não sei até que ponto a prática pastoral da Igreja está sendo informada pelos encontros com pessoas LGBT.
IHU On-Line - Como avalia os discursos do Papa sobre os efeitos da globalização no mundo e as implicações sociais e econômicas?
Francis McDonagh - Nisso o Papa continua na linha da doutrina social da Igreja aberta por seus antecessores. Estende a temas novos como o meio ambiente e mudanças climáticas, mas num tom mais urgente, mais impactante.
IHU On-Line - Para onde o pontificado de Francisco quer levar a Igreja Católica?
Francis McDonagh – Talvez vamos em direção a uma Igreja mais plural na teologia, na piedade, que poderia representar a volta a uma tradição mais antiga, antes da imposição do ‘pensamento único’ do Vaticano, na qual o Papa ‘preside na caridade’. Vai na linha de João XXIII ao convocar o Concílio Vaticano II, com a famosa imagem de abrir as janelas para deixar entrar ar fresco. Compartilha com o Papa do Vaticano II uma abertura ao diálogo com o mundo, no espírito da solene proclamação com a qual começa Gaudium et Spes: “As alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos homens de hoje, sobretudo dos pobres e de todos aqueles que sofrem, são também as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos discípulos de Cristo”.
Por João Vitor Santos e Patricia Fachin
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O Pontificado de Francisco e a comunidade LGBT: há de fato uma acolhida da Igreja? Entrevista especial com Francis McDonagh - Instituto Humanitas Unisinos - IHU