02 Fevereiro 2012
Para Santo Inácio de Loyola, “nada torna a religião mais desprezível aos olhos do mundo do que ver seus membros divididos em partidos e seitas entre si”. A frase citada pela historiadora da Igreja norte-americana Maureen A. Tilley dá conta das tensões existentes hoje entre a Igreja, os bispos, teólogos e teólogas, em comparação com a relação existente com cismáticos como a Fraternidade São Pio X.
“Será que os atos de bispos e teólogos e teólogas representam uma ameaça maior para a unidade, santidade e catolicidade da Igreja do que a Fraternidade Sacerdotal São Pio X?”, questiona, em entrevista por e-mail à IHU On-Line. Para ela, concepções diferentes da Igreja, da unidade e da santidade, sem falar da catolicidade, levam a formas diferentes de lidar com o mal interno ou externo à Igreja.
Por outro lado, afirma, a teologia contemporânea é marcada pela grande quantidade de leigos e leigas, diferentemente do que ocorria há um quarto de século. “Em muitas paróquias urbanas, os pastores se deparam com uma comunidade cujo nível de formação como grupo é superior a seu próprio”, relata Tilley. Entretanto, “a formação nos seminários nem sempre está preparando adequadamente os sacerdotes para lidar com leigos instruídos de uma maneira colaborativa”, diz. Além disso, no passado, os bispos eram os teólogos da Igreja. “Esse não é mais o caso. A maioria dos teólogos e teólogas é formada por leigos”, conclui.
Maureen A. Tilley é filósofa, mestre em teologia e doutora em história da Igreja primitiva pela Duke University, nos EUA. É professora associada ao Departamento de Religião da Florida State University, em Tallahassee, e professora visitante de Teologia da Fordham University, de Nova York. Dentre outros, é autora de The Bible in Christian North Africa: the Donatist world (Ed. Augsburg Fortress, 1997) e Donatist Martyr Stories: The Church in Conflict in Roman North África (Liverpool University Press, 1997).
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Sua conferência no 66º Encontro Anual da Sociedade Teológica Católica dos Estados Unidos abordou o tema “Santidade na Igreja pós-apostólica”. O que você quer dizer com “Igreja pós-apostólica”? E como a santidade desafia a Igreja atualmente?
Maureen A. Tilley – Com o termo “pós-apostólico” me refiro ao período da Igreja antiga, dos anos 100 a 600. Como a santidade desafia a Igreja atualmente? Ela o faz de duas formas principais.
1. De que maneira nós, como Igreja, vemos a vida santa? Há algum consenso a respeito das virtudes individuais tradicionalmente enumeradas (virtudes teológicas e cardeais – elas ainda são os critérios para a canonização). Mas precisa haver múltiplas formas de ver a santidade. É bom observar que não há um único padrão que sirva para todos os cristãos. Aqui eu buscaria modelos múltiplos de santidade, como os que foram tratados no livro de Lawrence Cunningham intitulado Uma breve história dos santos (Ed. José Olympio, 2011) [cujo subtítulo no original é “mártires, ascetas, peregrinos, guerreiros, místicos, teólogos, artistas, humanistas, militantes e outsiders”]. Algumas das virtudes dos membros de um grupo talvez se sobreponham às virtudes dos de outro grupo, enquanto que outras serão diferentes.
2. A santidade é tanto um atributo da Igreja e de seus membros, ou seja, dom de Deus, quanto um desafio, a responsabilidade de aceitar esse dom e corresponder a ele na vivência. Sentimos o desafio em múltiplos níveis: no nível pessoal, na comunidade e paróquia local, no nível regional, nacional e internacional, bem como nos elos entre todos esses níveis. Alguns desafios da santidade são primordialmente pessoais. Aqui se poderia perguntar: “Será que rezo como deveria? Amo meu cônjuge sinceramente? Disciplino meus filhos com amor e afeição? Sou honesto em meus negócios?” Outros desafios são institucionais: como uma conferência episcopal lida com desafios sociais relacionados ao uso apropriado de recursos comuns como a água, ou a questões como as partes do orçamento nacional gastos na guerra e em programas sociais, a questões como a imigração, etc.? Alguns são uma combinação desses dois: como um determinado bispo implementa reformas litúrgicas necessárias ou lida com sacerdotes acusados de conduta sexual imprópria?
IHU On-Line – Em comparação com a Igreja antiga (um dos seus interesses de pesquisa), como você analisa a Igreja atualmente em termos de colegialidade e participação dos leigos, especialmente das mulheres?
Maureen A. Tilley – Falemos primeiramente da colegialidade. Ela é tão variável de acordo com a região do mundo quanto o era na Igreja antiga, onde havia uma variedade de formas e estilos de governança (conselhos presbiterais, monoepiscopado, combinações). Hoje em dia, ela às vezes varia de acordo com cada paróquia.
No caso de meu próprio país, penso que a colegialidade episcopal sofreu muito ao longo dos últimos 40 anos. A United States Conference of Catholic Bishops – USCCB, que é a conferência episcopal atual, e sua predecessora, a National Conference of Catholic Bishops – NCCB, foram, no passado, modelos de colegialidade. Refiro-me aqui especialmente aos bispos nomeados sob o patrocínio do delegado apostólico Jean Jadot, que exerceu a função de 1973 a 1980.
Esses homens consultavam membros da Igreja e especialistas do governo e técnicos ao redigirem cartas pastorais. Isso não os tornava menos mestres, e sim mestres sábios que sabiam como liderar porque sabiam como os católicos viviam e pensavam e sabiam o que era possível, dadas as circunstâncias técnicas e políticas. Suas cartas sobre a guerra e a paz e sobre a economia eram modelos de ensino colaborativo eficaz. Infelizmente, alguns agentes poderosos da Igreja no além-mar viam esse método de ensino como um problema, primeiramente, porque parecia que os bispos estavam seguindo, e não liderando, simplesmente refletindo o menor denominador comum na Igreja e na sociedade.
O segundo problema, aos olhos de alguns, era que esse tipo de liderança poderia ter transformado as conferências episcopais em agentes poderosos. Não havia realmente lugar para as conferências episcopais no direito canônico. Isso era um problema tanto para o poder dos bispos individualmente quanto para o poder de Roma. Consequentemente, o papel das conferências episcopais enfrentou desafios significativos na década de 1990 e seu papel magisterial ficou bastante reduzido (por exemplo, depois de João Paulo II publicar Mulieris Dignitatem, os bispos simplesmente desistiram de redigir uma carta sobre as preocupações das mulheres).
Desafios aos leigos e leigas
No tocante aos leigos e às mulheres, mais uma vez as situações mudam de uma região do mundo para outra. Dentro de meu próprio país, e suspeito que também em outros, há vários desafios para a participação dos leigos. Seguem-se alguns desafios significativos.
1. Os leigos e leigas aqui nos Estados Unidos e em muitos outros países foram durante séculos, talvez desde a implementação das reformas gregorianas na Idade Média, menos instruídos do que os clérigos de suas paróquias, tanto em termos de formação secular quanto em termos teológicos. Isso não é mais assim, e deixou de sê-lo há mais de um quarto de século. Em muitas paróquias urbanas, os pastores se deparam com uma comunidade cujo nível de formação como grupo é superior a seu próprio. Em muitos casos, um número significativo de membros talvez tenha uma formação teológica mais sofisticada do que a de seus sacerdotes. Atualmente, muitos leigos e leigas têm mais acesso ao ensino religioso contínuo do que seus pastores têm tempo para obter. Entretanto, a formação nos seminários nem sempre está preparando adequadamente os sacerdotes para lidar com leigos instruídos de uma maneira colaborativa.
2. Nos Estados Unidos e em outros lugares, a adesão formal à religião não é garantida por nascimento ou batismo. Na maioria das sociedades pós-iluministas, a religião é uma opção pessoal feita por pessoas adultas. Mais uma vez, a formação nos seminários não pressupõe isso, mas inculca um modelo de participação na Igreja que presume o seguinte: “Uma vez católico, sempre católico”. Na prática, os católicos se tornaram como muitos protestantes, trocando de denominação sem sentir culpa. Sob essas circunstâncias, manter a colegialidade é uma tarefa muito mais difícil. Não sei se o movimento Nova Evangelização tem condições de levar isso em consideração.
3. Nos Estados Unidos e em outros lugares, assistimos ao quase desaparecimento de grupos sociais de relacionamento face a face, como sindicatos de trabalhadores, grupos de bolão, de dança de quadrilha, etc. Devido à prevalência dos automóveis e do ar condicionado, as pessoas que moram em áreas urbanas não caminham mais tanto por seus bairros, cumprimentando seus amigos e vizinhos, como faziam no passado. Os grupos religiosos, como os sodalícios e as irmandades, atrofiaram-se de modo semelhante na medida em que a religião se tornou uma atividade pessoal. Resta ver se as redes sociais, como o Facebook e o Twitter, promoverão o reavivamento virtual ou físico de grupos unidos por afinidade na sociedade em sentido mais amplo ou na Igreja.
4. Um fato significativo relacionado à colegialidade é a falta mesma de colegialidade entre os bispos como organismo e os teólogos e teólogas. No passado, os bispos eram os teólogos da Igreja, por formação e por falta de outros. Esse não é mais o caso. A maioria dos teólogos e teólogas é formada por leigos. Além disso, não são produtos de formação em seminários. Na maioria dos casos, os bispos concluem sua formação com o grau equivalente ao bacharelado em Teologia, e os teólogos profissionais têm o doutorado. O que aumenta essa desigualdade é a falta de um lugar para a convivência. Na época em que a maioria dos teólogos eram clérigos, eles tinham oportunidades de conviver com os bispos. Atualmente, muito poucos bispos têm a formação de teólogos profissionais e, com exceções raras e cada vez mais idosas, não são membros das mesmas organizações profissionais que os teólogos e teólogas leigos. Por conseguinte, a convivência que anteriormente promovia um certo nível de confiança e compreensão entre bispos e teólogos não existe mais.
5. Finalmente, no tocante aos leigos e leigas, o avanço da participação democrática na sociedade secular suscita problemas para uma Igreja que não é uma democracia. Se as pessoas são socializadas onde há participação comunitária, eleições, relatórios fiscais de prestação de contas etc. em suas comunidades, elas passam a esperar uma participação semelhante na Igreja, e, com raras exceções, ela não existe. Por exemplo, os relatórios financeiros anuais das dioceses publicados em jornais diocesanos não respondem às mais básicas perguntas dos católicos alfabetizados em finanças. A maioria dos católicos sente pouca obrigação de enviar seu dinheiro a uma instituição onde não há uma percepção de benefício para a pessoa ou o pequeno grupo.
No tocante à participação das mulheres, todos os problemas que enumerei se aplicam ao caso delas em grau ainda maior. Acrescenta-se a isso o fato de que é na Igreja que a maioria das mulheres jovens se deparam com o chamado “teto de vidro” [barreira invisível à ascensão, especialmente profissional]. Durante a década de 1980, quando a USCCB estava estudando a possibilidade de publicar uma carta pastoral sobre as preocupações das mulheres na Igreja, organizei quatro audiências para os bispos em duas dioceses: num decanato urbano e num rural e em duas instituições de ensino superior (uma católica e outra não católica).
Em cada caso, os bispos pediram que as mulheres respondessem às mesmas perguntas em pequenos grupos de discussão. As semelhanças entre essas audiências foram bastante notáveis. O grupo de mulheres mais velhas tinha a maior esperança para o futuro da Igreja e a participação das mulheres de formas significativas. As mulheres de meia-idade estavam um pouco irritadas. Eis um exemplo representativo: uma mulher que era contabilista profissional se queixou de que, em sua paróquia, um homem que não conseguia cuidar direito de seu próprio talão de cheques era membro da comissão de finanças da paróquia e ela estava relegada à comissão encarregada de fazer biscoitos. As mulheres mais jovens eram as mais cáusticas em sua percepção de que a Igreja não valorizava os talentos delas. Será que o recrutamento para os seminários sofrerá se algumas das mães da próxima geração não estão contentes com seu próprio lugar na Igreja?
IHU On-Line – Tendo em vista o contexto atual (pós-moderno, pós-metafísico etc.), qual sua análise das “gramáticas” usadas pela Igreja Católica para dialogar com o homem e a mulher contemporâneos? Como é possível fortalecer esse relacionamento?
Maureen A. Tilley – Parar de falar sobre “homem” e “mulher”. Falar sobre homens e mulheres. Reconhecer a diversidade de experiências que constituem as autopercepções das pessoas e suas percepções do universo. As construções platônicas do universo e da “natureza”, do “homem” e da “mulher” são estranhas à forma como a maioria das pessoas pensam. As conversas entram em colapso porque os teólogos com formação clerical falam dessa maneira em suas tentativas de conversar e em suas formulações do ensino da Igreja. No confronto entre nominalistas e realistas da Idade Média, os nominalistas ganharam há séculos. A filosofia dos seminários parece não ter se dado conta disso. Além disso, para a maioria dos católicos, “natureza” significa algo físico, observável, quantificável, e não uma forma subjacente de pensar sobre tudo o que existe.
IHU On-Line – Em 2012, ocorrem dois aniversários importantes para a teologia mundial. Primeiro, o 50º aniversário da convocação do Concílio Vaticano II. Qual a sua opinião sobre a recepção do Concílio pela teologia contemporânea? Que aspectos do Vaticano II precisam ser retomados ou revistos hoje?
Maureen A. Tilley – O grande divisor de águas que vejo é entre as pessoas que enfatizam a ruptura e novidade e as que enfatizam a continuidade. Ambos os lados precisam estudar a história da Igreja entre 1850 e 1950 para fazer melhor justiça a qualquer avaliação do Concílio. Muitas das “novidades” do Concílio estavam em andamento muito tempo antes dele. Algumas foram retardadas na esteira da repressão dos modernistas (por exemplo, a pesquisa bíblica), outras pelas calamidades que as duas guerras mundiais representaram para a pesquisa (por exemplo, reformas litúrgicas).
Além disso, historicamente a recepção dos concílios tem levado muito mais do que uma geração. Os concílios de Niceia e Calcedônia não foram recebidos solidamente por séculos, e até nunca o foram em alguns lugares do Oriente. As reformas práticas do Concílio de Trento foram recebidas de maneira desigual. Mesmo em dioceses de bispos reformistas, depois que os bispos morreram, seus sucessores às vezes não deram continuidade ao programa reformista dos participantes do concílio. O intervalo de tempo da recepção e interpretação do Vaticano II será menor do que o de concílios anteriores, simplesmente por causa da velocidade da comunicação no presente e da centralização muito maior da Igreja neste século, mas não será igual em toda parte.
IHU On-Line – A Santa Sé tomou algumas medidas, especialmente no âmbito litúrgico, consideradas como uma “reforma da reforma”, por exemplo, o retorno da missa tridentina a partir do documento Universiae Ecclesiae. Por outro lado, também há uma tentativa de recuperar a “unidade” da Igreja, por exemplo, com os sacerdotes e bispos da Fraternidade São Pio X. Como você analisa esse fenômeno atual na vida da Igreja? Que modelo de Igreja está sendo moldado?
Maureen A. Tilley – O último século presenciou algumas tentativas de recuperar a intimidade dos membros da Igreja com Cristo. Pio X incentivou a comunhão frequente. A encíclica de Pio XII sobre o Corpo Místico e a Lumen Gentium do Vaticano II reafirmaram a ligação existente entre Cristo e os membros de seu corpo, a Igreja. O Concílio associou a santidade da Igreja e de seus membros através da inabitação do Espírito. Mas houve poucas tentativas de lidar diretamente com o problema do mal dentro da Igreja, ao menos de modo focado. Assim, não temos as ferramentas de que necessitamos para lidar com os efeitos religiosos – para não falar dos efeitos jurídicos – de males como os escândalos envolvendo celibatários professos que são sexualmente ativos, ou abusadores, funcionários ou administradores paroquiais fraudadores que trabalham sistematicamente para tornar difícil a descoberta do mal.
Gostaria aqui de examinar mais de perto como a Igreja Católica tem lidado com o mal da divisão ultimamente, a falta de unidade e a consequente falta de santidade. Santo Inácio de Loyola disse: “Nada torna a religião mais desprezível aos olhos do mundo do que ver seus membros divididos em partidos e seitas entre si.” Gostaria de usar padrões que vimos na Igreja antiga para lançar luz sobre os acontecimentos dos últimos anos. Cabe-nos ver se há qualquer coisa em nossa herança que nos ajude a lidar com a divisão e o mal no presente. O uso desses padrões revelará que há múltiplas concepções da Igreja, todas atuantes ao mesmo tempo, umas em algumas situações e outras em outras situações. Concepções diferentes da Igreja, da unidade e da santidade, para não falar da catolicidade, levam a formas diferentes de lidar com o mal.
Ao tratar da divisão na Igreja, deixarei de lado uma série de questões atuais. Vou omitir os diálogos ecumênicos e inter-religiosos, isto é, com as pessoas que, de algum modo, são consideradas pessoas fora do catolicismo. Eles são, em grande parte, cordiais e, com poucas exceções, não lidam com o mal. Deixo de lado o mal estrutural, pois isso não fazia parte do universo teológico da África romana. Meu foco está em relações mais nevrálgicas situadas nas margens e dentro da Igreja: a Fraternidade Sacerdotal São Pio X e a Associação Patriótica Católica Chinesa, e divisões posteriores entre bispos e teólogos. Há, obviamente, um sentido em que as divisões são más e que esse mal está, de algum modo, ligado aos atos de pessoas específicas.
Busca de unidade
O desejo de unidade para os dois primeiros casos, a Fraternidade Sacerdotal São Pio X e a Associação Patriótica Católica Chinesa, é muito semelhante àquele do segundo período de perseguição de Cipriano. A Igreja pode tomar conta de si mesma e ela precisa se preocupar em cuidar do bem-estar das almas individuais. A Igreja está em busca de unidade coletiva, institucional, porém mais ainda do cuidado pela salvação das almas individuais. As disputas entre bispos e teólogos são muito diferentes.
No caso da Fraternidade Sacerdotal São Pio X, houve algum diálogo motivado, por parte do Vaticano, por uma esperança de reconciliar seus líderes. Roma trata os bispos da Fraternidade como os bispos pecadores de Cipriano, isto é, sem communicatio in sacris, que é a punição usual para os cismáticos e hereges. Mas a Fraternidade sustenta que não é cismática, e muito menos herética, e que opera, de fato, sob uma constituição aprovada pela Sagrada Congregação para os Religiosos. Membros da Fraternidade continuam a divulgar publicamente sua adesão a uma constituição aprovada pelo Vaticano, embora seus líderes tenham sido excomungados em 1998 por ordenar bispos sem a permissão de Roma. Ao condenar as ordenações de bispos não aprovadas pelo Vaticano, João Paulo II obscureceu as fronteiras entre cisma e heresia afirmando que a raiz do ato cismático de ordenação deles era sua apropriação errônea da ideia da Tradição, uma negação do caráter vivo da Tradição moldado pela ação do Espírito Santo atuante na Igreja para efetuar a unidade.
Entretanto, parece ter havido um desejo constante de manter abertas as linhas do diálogo após as excomunhões. Foram tomadas amplas providências com vistas às sensibilidades litúrgicas das pessoas ligadas aos usos litúrgicos da Fraternidade, incluindo a decisão controvertida de permitir a celebração de formas mais antigas dos ritos da Semana Santa, o que talvez tenha sido feito com o desejo de atrair adeptos leigos da Fraternidade de volta para Roma. Isto poderia parecer uma preocupação com a unidade institucional, mas uma atenção mais detida à retórica do Vaticano apresenta uma preocupação diferente: pessoal, e não institucional.
Essa revogação da excomunhão de quatro bispos em 2009 foi apresentada como um “gesto discreto de misericórdia”, de acordo com o papa, como sua “preocupação paterna com o sofrimento espiritual” dos indivíduos que foram excomungados. Bento XVI revogou a excomunhão sem quaisquer atos públicos de arrependimento por parte dos quatro homens na esperança de que isso aliviasse a angústia espiritual deles. Parece que, em relação à Fraternidade Sacerdotal São Pio X, Bento XVI tem preocupações semelhantes às de Cipriano nos últimos estágios de sua trajetória: a Igreja pode cuidar de si mesma, de modo que não se precisa exigir unidade plena – ou, talvez, neste caso, nem mesmo arrependimento – para trazer membros em erro de volta para o aprisco. Neste caso, a unidade é divorciada da santidade e catolicidade.
O caso da China constitui um paralelo muito próximo da controvérsia donatista da Antiguidade. Um grupo – a Associação Patriótica Católica Chinesa – está filiado ao governo, recebendo dele reconhecimento e verbas para pagar os salários de seus clérigos. A nomeação de seus bispos recebe aprovação do governo. O mesmo acontecia com católicos na Antiguidade: suas comunidades no norte da África recebiam aprovação e verbas do governo.
O outro conjunto de comunidades, a Igreja clandestina, sustenta estar filiada ao universo católico mais amplo, estar filiada aos católicos de Roma e evitar o controle por parte do governo. Sofre perseguição, como os donatistas. Ambas as Igrejas podem reivindicar a sucessão apostólica. Seus sacerdotes atuam nas mesmas cidades, como faziam os católicos e os donatistas. Embora o Vaticano tenha condenado a interferência do governo chinês em assuntos dos católicos, não considerou que a Associação Patriótica Católica – APC representasse uma igreja cismática, apesar de algumas pressões para que fizesse isto. Repetidamente, João Paulo II e Bento XVI tomaram a iniciativa de ir ao encontro dos católicos na China, tanto dos membros da APC quanto da igreja clandestina, para incentivar a comunicação e até a amizade entre membros da igreja clandestina e da APC.
Houve tentativas de reconciliar sacerdotes ordenados por bispos da APC sem reordenação visando à unidade e ao oferecimento de assistência pastoral a todos os católicos chineses, algo semelhante à inclusão de clérigos donatistas entre os católicos na África de Agostinho.
Nesse caso, também, a iniciativa institucional não exige que a igreja clandestina ou a APC admita que algum indivíduo ou grupo de indivíduos tenha cometido quaisquer atos errados ou maus. A Igreja é grande o suficiente, forte o suficiente e santa o suficiente como instituição, a ponto de não perguntar qual dos dois grupos que representa a verdadeira Santa Madre e quais membros pecaram, se é que alguns pecaram. Isto lembra o Cipriano tardio e a igreja de Agostinho.
Teólogos e teólogas
Passemos agora à situação dos bispos e teólogos e teólogas. Para as pessoas que não estão do lado de fora ou mesmo nas margens, para os católicos ativos, a reação do Vaticano ao mal da falta de unidade que elas percebem se assemelha mais à de Cipriano no início de sua trajetória e à dos donatistas antigos. A unidade exige santidade pessoal, que, por sua vez, é reconhecida não na participação no Espírito, como no passado, mas na adesão à ortopráxis, elevada ao status de ortodoxia. Mais do que nos casos da Fraternidade São Pio X e da APC, vemos uma estratégia de defesa contra pessoas com ideias diferentes. Observe o tratamento dado a vários bispos católicos cuja unidade e santidade pessoal foi contestada por várias transgressões, em grande parte por questões de prática litúrgica, por questionarem o celibato obrigatório ou por causa da readmissão de católicos divorciadas e novamente casados à comunhão.
1. Em 1985, indicou-se um coadjutor para Raymond Hunthausen, de Seattle. Esse coadjutor assumiu todos os deveres de Hunthausen, tirando-o efetivamente de sua liderança diocesana.
2. Em 1995, Jacques Gaillot foi rebaixado de bispo de Évreux, na França, para bispo titular de Parthenia, um lugar sem cristãos na Argélia.
3. Muitos bispos foram depostos de suas sés nos últimos anos na África subsaariana.
4. Em 2011, William Morris, de Toowoomba, na Austrália, foi forçado a pedir demissão.
5. Muitos teólogos tiveram sua obra considerada inaceitável por parte da Congregação para a Doutrina da Fé, mais recentemente Sobrino, Haight e Dupuis, entre outros. Há também teólogos e teólogas cujo ensino ou cujas publicações foram restringidas por instâncias doutrinais de conferências episcopais.
As reações a esses homens e mulheres foram diferentes. Agora bispos em erro se encontram fora dos círculos do poder, e teólogos e teólogas veem suas obras condenadas sem audiência. A reação a bispos e teólogos/teólogas católicos foi diferente da reação aos membros da Fraternidade Sacerdotal São Pio X e da APC. Não houve a preocupação com os indivíduos que caracterizou a segunda fase de Cipriano. A estratégia de defesa foi semelhante ao Cipriano da primeira fase ou aos antigos donatistas, que excluíam os clérigos apóstatas e temiam o contágio do mal deles.
Será que a Igreja tem menos condições de lidar com bispos, teólogos e teólogas do que com cismáticos? Será que os atos de bispos, teólogos e teólogas representam uma ameaça maior para a unidade, santidade e catolicidade da Igreja do que a Fraternidade Sacerdotal São Pio X ou a APC? De acordo com o Papa Bento XVI, a resposta é “sim”. Segundo ele, “hoje vemos isso de um modo realmente terrificante: que a maior perseguição da Igreja não vem de inimigos externos, mas nasce do pecado na Igreja”.
O que significa tudo isso? Correlacionar as reações ao mal na Igreja com os acontecimentos contemporâneos revela a atuação de duas ideias diferentes da Igreja como una, santa e católica. Uma parece estar confiante de que a Igreja tem o que é necessário para cuidar de pecadores em erro e trazê-los de volta para o aprisco. A outra tem medo de que o mundo mau, fora da Igreja e especialmente dentro dela, tenha condições de seduzir e desviar as ovelhas.
IHU On-Line – Um problema “histórico” da teologia é sua relação com a autoridade doutrinal do Vaticano. Recentemente, tivemos o caso da irmã Elisabeth Johnson, da congregação de São José, e de Dom William Morris, bispo de Toowoomba. Como a Igreja pode lidar melhor com a “diferença” e os “diferentes” na busca de uma verdadeira unidade?
Maureen A. Tilley – Em primeiro lugar, em relação ao caso da irmã Elisabeth Johnson, os membros da hierarquia precisam fazer duas coisas.
1. Precisam reconhecer a socialização paralela e nem sempre convergente dos bispos, de seus assessores e dos teólogos e teólogas universitários e promover mais oportunidades de contato social entre essas pessoas. Os bispos deveriam continuar sua formação teológica sendo membros ativos de organizações de teólogos e teólogas profissionais.
2. Os bispos que fizerem isso perceberão que o projeto da teologia universitária não é catequético. Ele é exploratório e, muitas vezes, tentativo. É mutuamente autocorretivo.
No caso do bispo Morris e de outros bispos privados de suas sés:
1. O Vaticano precisa conversar com os bispos como cooperadores numa causa comum, e não apenas dar ouvidos a uns poucos membros descontentes de suas dioceses. Os bispos precisam ser tratados como bispos, e não como acólitos glorificados, isto é, unicamente agentes dos dicastérios romanos.
2. Onde problemas pastorais genuínos estiverem além da competência dos bispos locais, estes deveriam ter confiança nos dicastérios romanos no sentido de que agentes de Roma podem assisti-los – e não substituí-los – a lidar com situações locais.
3. Finalmente, a Igreja precisa admitir variações locais legítimas na prática.
As questões nevrálgicas parecem ser o celibato clerical e os papéis das mulheres, e ambas carecem de mais discussão entre bispos, teólogos e teólogas, em separado e em conjunto, bem como materiais catequéticos melhores, mais adequados para situações culturais divergentes. O Catecismo da Igreja Católica deveria ser um subsídio para autores e autoras criativos de materiais catequéticos, e não a única resposta textual e final.
(Por Moisés Sbardelotto | Tradução de Luís Marcos Sander)
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Cismáticos ou teólogos: tensões de uma Igreja em busca de unidade. Entrevista especial com Maureen A. Tilley - Instituto Humanitas Unisinos - IHU