09 Abril 2011
Nem sempre o desenvolvimento da técnica acompanha a evolução das ideias. Da mesma forma, às vezes, os pensadores do presente não conseguem entender com os próprios referenciais o tempo vivido hoje. No caso de Marshall McLuhan, o mundo do pensamento encontrou a vanguarda, o que fez com que o pesquisador canadense se ocupasse, entre as décadas de 1950 e 1960, com a crítica da cultura do meio, do meio enquanto mensagem, ou seja, da mensagem do meio.
Na entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line, o filósofo Celso Candido de Azambuja analisa a relação de técnica e novas tecnologias com as referências do autor. Para ele, meios e homens estão em simbiose constante e vivem de mútuas e múltiplas interdeterminações.
“A técnica não é apenas um instrumento neutro o qual manipulamos e que, do conforto de nossos posicionamentos éticos e instrumentos conceituais, podemos dirigir para o bem ou para o mal”, afirma.
Considerando os grandes pensadores como “pintores do desvelamento do ser”, o entrevistado acredita que o conhecimento necessário hoje para a tomada de decisões é cada vez mais complexo, o que implica métodos transdisciplinares.
Doutor em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e mestre em Filosofia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Celso Candido é professor adjunto da Unisinos e coordenador do curso de Filosofia da instituição.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Com o tempo, a técnica evolui, mas o pensamento de McLuhan continua atual. Como você analisa a natureza e o conceito de técnica hoje?
Celso Candido - Não há dúvidas de que as técnicas evoluíram muito nas últimas décadas, especialmente, as de comunicação. Computadores, celulares, televisores, rádios – todos interconectados por redes globais de comunicação e informação – formam hoje a grande aldeia global. Mas o modo de evolução das ideias é distinto do modo de evolução das técnicas. Nem sempre os pensadores do presente conseguem entender com suas ideias seu tempo.
De um lado, não parece que grande parte da academia e dos intelectuais tenha compreendido este fenômeno comunicativo monumental, espantoso. E, sinceramente, nem parece que estejam muito interessados nisto.
Entretanto, de outro lado e diferentemente da famosa Escola de Frankfurt, a qual concentrou sua crítica à industria da “cultura de massas” e cujos efeitos se mostraram muito visíveis com os fenômenos de massas como o nazismo, as duas guerras mundiais, a padronização do estilo, o consumo de massa, entre outros, McLuhan se ocupou com a crítica da cultura do meio, do meio enquanto tal, do meio enquanto mensagem, ou seja, da mensagem do meio.
A partir dessa perspectiva, McLuhan tornou possível uma reflexão acerca do problema do meio, dos efeitos no âmbito das relações, das percepções e da subjetividade humanas. Entendeu que os meios técnicos não são simples máquinas. Que a técnica não é o outro do homem. Que os meios são extensões do homem. Que meios e homens estão, portanto, em simbiose e que vivem de mútuas e múltiplas interdeterminações. Assim, a análise dele centrou-se na tentativa de entender os efeitos dos meios na vida social e dos indivíduos.
Com a evolução e transformação dos meios – ou seja, das extensões do homem – a abordagem e o problema tornou-se fundamental e complexo, porque hoje estamos literalmente mergulhados nas tecnologias de comunicação. E evoluímos para uma situação de interconexão total e visceral. Mas o problema, o desafio lançado por McLuhan, permanece o mesmo: quais os efeitos dos atuais meios de comunicação cada vez mais molecularizados, sofisticados e colados nos corpos dos indivíduos.
As ideias do pensador, portanto, continuam atuais e são essenciais para compreender a tecnologia e meios de comunicação. Elas nos fornecem pistas fundamentais para entender que a técnica não é apenas um instrumento neutro o qual manipulamos e que do conforto de nossos posicionamentos éticos e instrumentos conceituais, podemos dirigir para o bem ou para o mal. McLuhan sorria desta ingenuidade, desta superficialidade, desta cegueira que pretendia entender a técnica como um simples instrumento “neutro”.
IHU On-Line – Como você avalia a ideia de que a tecnologia contemporânea tem como meta fundamental manipular e criar novas formas de vida?
Celso Candido - Há uma mutação essencial na evolução da tecnologia e que se refere não apenas à dos instrumentos, mas também à de sua concepção. Podemos indicar pelo menos três grandes e diferentes concepções de tecnologia situadas esquematicamente na Antiguidade, na Modernidade e na atualidade.
Inicialmente, a técnica é puro instrumento, órgão dos instintos, força, luta contra e domínio sobre as forças da natureza: trata-se principalmente de controlar. Em seguida, trata-se de usar as forças da natureza para benefício próprio. Neste contexto, a natureza permanece inviolada.
Na Modernidade, avançamos para uma relação na qual a natureza começa a ser violada. A sociedade industrial penetra na natureza para extrair das suas entranhas as forças necessárias para a produção de bens e a reprodução humana. O resultado, hoje, mais angustiante são os problemas ambientais que este poderoso processo de violação e extração geral na natureza fazem surgir.
Na atual sociedade do conhecimento, com o avanço da tecnociência, a situação é totalmente nova e inédita, espetacular. Trata-se de manipular a matéria para criar novas formas de vida, para transformar as formas de vida. É nesse sentido que se deveria entender a ideia de pós-humano: o da humanidade autoengendrada, autotransformada por suas próprias invenções; porque a manipulação das formas de vida é feita pela própria humanidade.
Aristóteles propunha uma distinção das formas através das quais nós nos relacionamos com a verdade. Além da sabedoria (sofia), da razão intuitiva (nous), da sabedoria prática (phronesis), existiam a ciência (episteme) e a técnica/arte (techne). A técnica era a arte de bem fazer alguma coisa: uma virtude intelectual técnica. A ciência é teorética-prática, suas verdades são eternas e demonstráveis, objetivas.
Assim, na Antiguidade, a techne operava em uma dimensão relativamente autônoma da episteme e das demais virtudes intelectuais. Seu poder se circunscrevia aos limites da cidade e da natureza. Trata-se de explorar as potencialidades da natureza dentro de seus próprios limites.
Na Modernidade expansionista, a natureza aparecerá como objeto a ser explorado e manipulado pela técnica a fim de satisfazer as necessidades e os interesses humanos. O conhecimento da natureza é neste contexto fundamental. Técnica e ciência se associam na mesma tarefa comum: manipular a natureza para melhor explorá-la. Heidegger afirmará que na Modernidade a técnica e a ciência eram inseparáveis e tinham se transformado em uma única forma de saber. Hoje, tudo depende da pesquisa e do desenvolvimento tecnocientífico. Nova forma de saber que hegemoniza cada vez mais velozmente os poderes diretivos da civilização atual.
A tecnociência, hoje, tem como fundamento não mais penetrar na natureza para lhe esgotar as forças até seu definhamento. Trata-se, antes de tudo, de um trabalho de recuperação e invenção de formas de vida. De melhoramento da qualidade de vida humana. Do aperfeiçoamento humano por meio da tecnociência. Trata-se de um trabalho de manipulação criadora. Se para Kant o século XVIII era o do esclarecimento, hoje, indiscutivelmente, vivemos no século da tecnociência.
IHU On-Line – Qual a importância das obras de McLuhan para o pensamento filosófico?
Celso Candido - Não podemos entender nossa atualidade sem o aporte intelectual e a arquitetura conceitual legados por autores como McLuhan. Os grandes pensadores resistem ao tempo. Normalmente visionários, estão sempre além de seu próprio tempo. Eles nos ensinam a olhar o mundo de novas formas, de perspectivas inéditas, com novos olhos; apontam a direção e problemas nunca antes pensados. Tornam visível o que antes nos era invisível. São pintores do desvelamento do ser.
Pensadores como McLuhan, conseguem, com seu trabalho crítico e criativo, nos orientar no pensamento no nosso tempo. O tempo é uma sucessão infindável e complexa de tempos os mais diversos possíveis. As ideias de McLhuan continuam sendo essenciais para entender nossa atualidade marcadamente tecnológica e comunicativa.
Parece-me que a originalidade de sua contribuição ainda não foi esgotada e os teóricos e pesquisadores da filosofia da comunicação e da tecnologia terão ainda muito trabalho para decifrá-la.
IHU On-Line – McLuhan acreditava que algumas mudanças culturais ocorriam devido às mudanças resultantes da tecnologia. Como você relaciona o pensamento dele com a sociedade que valoriza cada vez mais os resultados e o dinheiro?
Celso Candido - O debate ideológico em torno do problema da tecnologia me parece às vezes um pouco simplificador. Em primeiro lugar porque tecnologia é poder. Sendo poder ela não tem uma direção unívoca. Ao mesmo tempo, a noção de tecnologia não pode ser reduzida à sua capacidade de produzir resultados e dinheiro. Não podemos considerar isto como um mal em si. Tudo depende de que resultados e de que dinheiro nós estamos falando. Será que a tecnociência já não está em condições de acabar com a fome no mundo? Não seria este um ótimo resultado?
Não devemos reduzir a complexidade do problema. A tecnologia é condição essencial para a vida humana. Não haveria vida humana sem a técnica, sem estas extensões que tornaram possível aos seres humanos sobreviver às intempéries e aos inimigos naturais.
A tecnologia é poder humano, sim. Quando ela está concentrada, quando se transforma em capital, ela se torna instrumento de poder de uns sobre os outros, de poucos sobre muitos; tal como, por exemplo, as relações de produção em um sistema capitalista clássico. Mas na sociedade do conhecimento, da informação e da comunicação as forças produtivas e tecnológicas estão em contínuo e intensificado processo de desterritorialização e molecularização social. O capital tecnológico e científico encontra-se cada vez mais compartilhado, distribuído e acessível. O que antes era poder de uns poucos, hoje se transformou, está se transformando ainda, em poder de muitos. O computador é um exemplo.
Não podemos fechar os olhos para as mudanças em curso no âmbito das relações de produção e de poder. As forças produtivas estão hoje cada vez mais desterritorializadas, desmaterializadas, tornando mais difícil e complexo seu controle por pequenos ou poucos grupos. O capital tradicional está infiltrado por todos os lados por novas formas e complexas forças produtivas.
Ao mesmo tempo em que a tecnologia moderna de tipo explorador já não é mais tolerada com facilidade, a automação industrial e agrícola liberta o homem de um tipo de trabalho essencialmente reprodutivo e alienante. Cresce atualmente a demanda por serviços, criatividade, inteligência, estratégias. Ao mesmo tempo em que cresce a demanda por qualidade de vida.
Os potenciais culturais, políticos, econômicos e subjetivos da revolução tecnológica das comunicações em pleno curso são extraordinários. Precisamos urgentemente nos alfabetizar nesta nova linguagem emergente hipertextual e intercriativa. Caso contrário, estaremos falando já uma linguagem que ninguém mais entende nem está interessado em entender.
McLuhan, como educador, filósofo, teórico da comunicação e da tecnologia, estava preocupado com os potenciais culturais dos meios, em especial, da televisão, cujo potencial integrador e pedagógico foi por ele desde o princípio ressaltado. Por isso sua preocupação em torno do problema da mensagem dos meios, pois somente com esta compreensão fundamental poderíamos explorar seus verdadeiros potenciais educacionais e culturais.
IHU On-Line – Como a nova interdependência eletrônica recria o mundo à imagem de uma aldeia global?
Celso Candido - A aldeia global que vivemos é a da intercriatividade. Através dos meios eletrônicos de comunicação, tais como os celulares, os computadores, os televisores, a humanidade encontra-se em processo de unificação transcultural.
Diferentemente de uma aldeia global massificada, tal como aquela condicionada pela indústria da cultura de massas durante grande parte do século passado, a aldeia global eletrônica atual é intercriativa, pois convoca seus internautas a uma navegação criativa, autoprodutiva. Ela convoca à produção de uma subjetividade singular, à produção de inventivas narrativas de si e do mundo a respeito das quais os meios precedentes sequer um dia podiam sonhar. Basta olhar a experiência do Google, da Wikipédia, do YouTube, do Twitter, do Facebook para perceber o que estou querendo dizer. Nestes ambientes, nestas interfaces de comunicação, não é possível mais manter a postura de um espectador que ouve e assiste a sua história ser contada desde fora. Ao contrário, nestes ambientes comunicativos os indivíduos apropriam-se da narrativa de suas vidas, de seus sentimentos, valores, projetos.
Avalio que estamos entrando em uma era em que os modelos de governança de tipo republicanos serão os mais adequados não apenas técnica, mas também subjetivamente para dar conta dos nossos problemas cada vez mais complexos. Os meios tecnológicos em expansão atualmente tornaram possível – e eu diria mesmo necessária – a participação cada vez mais direta dos cidadãos nesta aldeia, através de uma forma de comunicação ativa, da informação processada em alta escala, do conhecimento compartilhado, das redes de integração social e política.
O conhecimento hoje necessário para a tomada de decisões é cada vez mais complexo, implicando necessariamente um método transdisciplinar. É preciso assim saber articular redes de saberes decisórias, propositivas, múltiplas, em escala mundial. Na medida em que a tecnologia e conhecimento se tornam compartilhados, também o poder é compartilhado.
IHU On-Line – Para McLuhan, o livro individualiza e o rádio unifica. Com a chegada de meios como Facebook e Twitter estamos valorizando o pensamento escrito, mas não a individualização. Como você avalia esse comportamento?
Celso Candido - O livro individualiza não somente porque reproduz um pensamento escrito. É porque convoca à introspecção, à imaginação e à reflexão. O livro tende ao isolamento e isto tão mais acentuadamente nas culturas quentes.
O pensamento escrito esteve circunscrito ao território do papel e do livro impresso durante muito tempo. De tal modo que acabamos por identificar o escrito impresso com o próprio pensamento escrito. Mas este já esteve inscrito em outros suportes, tais como em pedras, tábuas, metais. Platão chegou a elaborar uma séria crítica aos pensamentos escritos com letras. Denunciou tal atividade como inapropriada e como forma de falsificar a verdadeira sabedoria que só o embate dialético oral seria capaz de produzir.
Acontece que o pensamento escrito tem atualmente uma nova interface através da qual pode presentificar-se. Trata-se de um suporte em si mesmo dinâmico que, por sua natureza, dá novo dinamismo à palavra escrita.
Antes da internet, o tempo de processamento da palavra escrita era complemente diferente. A escrita digital é fluída, móvel. A palavra se movimenta na tela e viaja à velocidade da luz no espaço. É uma situação diferente. O pensamento escrito libertou-se das amarras do texto impresso. Ele movimenta-se livre nas telas e redes intercontinentais de comunicação.
Deste modo, o pensamento escrito tornou-se instrumento ágil de comunicação, ao mesmo tempo em que seu poder cresceu em toda parte. Hoje, se você não souber ler e escrever um e-mail, você estará completamente por fora. A escrita, na rede, é intercriativa, fragmentada, veloz. Ela convida ao diálogo. Se você não teclar, não irá se comunicar.
Esta nova plasticidade do texto está muito mais próxima da velocidade de renovação dos saberes e do modo como se pode aproximar da verdade em nossos dias. E não há dúvidas que já supera em muito o potencial civilizacional do livro e do pensamento escrito impresso.
IHU On-Line – Para McLuhan, a cultura do alfabeto predispõe o homem a dessacralizar seu modo de ser. Como fica a relação do ser nos dias atuais?
Celso Candido - As sociedades orais são naturalmente mais coesas, mais coletivas, mais afetivas – mais frias no sentido mcluhniano – comparadas com as sociedades da escrita alfabética. Nas culturas onde predomina a oralidade as crenças, os mitos, as lendas, jogam peso também maior na articulação dos sentidos e significações sociais. O alfabeto dota o homem de uma potência de esclarecimento que o projeta para além das suas crenças, mitos, verdades da sua comunidade.
A oralidade convoca à participação, é um meio frio, aproxima. A escrita isola. O alfabeto projeta o homem para além de seu próprio universo imaginário, unificando os homens culturalmente, ainda que não politicamente. Isto força o homem a sair de si mesmo, quer dizer, sair de seu próprio universo fechado de significações.
O mundo da escrita alfabética é cada vez mais humano no sentido de que o horizonte dos problemas humanos se coloca para ser respondido no âmbito da própria palavra humana. Os enigmas, os problemas, as questões passam a ser definidas no embate puramente humano.
Grande parte da cultura oral é marcada pelo recurso ao mito, aos cultos de adivinhação. Platão, como disse antes, fará a denúncia do empobrecimento do discurso através do recurso ao texto escrito com letras. Com os sofistas que escrevem seus discursos, portanto, a sabedoria teria chegado ao seu fim, lamenta Platão.
Entretanto, a força do meio literário, o obriga a fazer sua luta contra o movimento sofista através do recurso da palavra escrita. Os diálogos escritos foram sem dúvida uma tentativa de resgatar o que o texto escrito anunciava: a morte da dialética.
A escrita alfabética arrastou Platão e todos os que vieram depois. Reinou praticamente absoluta até o advento dos meios eletrônicos no século XX. Hoje, como já dissemos, encontra-se em pleno processo de reinvenção e ressignificação.
É neste contexto de reinvenção e ressignificação não apenas da escrita, mas também e talvez principalmente da linguagem hipertextual, que os indivíduos estão construindo suas narrativas autoprojetadas. Nessa autoconstrução generalizada de nossos dias, penso que o problema do sentido do ser pode ser colocado para além da massificação e da impessoalidade que predominaram na era dos mass media.
Se, como pretendia Parmênides, o ser que é possível ser é o ser que é pensado, o ser que é possível ser pensado hoje, na era eletrônica, é aquele que somente pode se compreender através de uma nova perspectiva: transdisciplinar, transcultural, transmidiática, polifônica. É o ser de uma enorme complexidade cujas potencialidades e modos de aparecer são de uma riqueza extraordinária. É nesta irreversível – e desejável – pluralidade de formas de vida, moral, religiosa, política e estética através da qual o ser do humano em nossa época se revela e se transforma que reencontraremos a pergunta pelo sentido de nossa existência.
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A técnica é um instrumento neutro? Uma pergunta no centenário de Marshall McLuhan. Entrevista especial com Celso Candido de Azambuja - Instituto Humanitas Unisinos - IHU