23 Julho 2010
Já dizia Thomas Merton: "Nenhum homem é uma ilha". Vivemos em comunidade, sejam elas locais ou nacionais. Mas, acima disso, somos filhos de uma mesma Mãe Terra, a Pachamama, como a chamam os índios andinos. Em outras palavras, pertencemos a uma comunidade mais ampla, que abrange todas as comunidades: a natureza.
Por isso, um desafio ético que a situação atual nos coloca é retomar os vínculos com a terra e a natureza. Nesse sentido, os índios andinos também oferecem uma outra perspectiva, formulada no conceito "sumak kawsay", que, aportuguesado, se aproxima de "bem viver". Mas, para a bióloga equatoriana Esperanza Martínez, "o bem viver é mais do que viver melhor, ou viver bem: o bem viver é viver em plenitude".
É possível fazer isso hoje, dentro de nossas condições sócio-culturais? "Como diria Bolivar Echeveria – afirma Martínez –, `viver no e com o capitalismo não significa viver para e pelo capitalismo`". Por isso, defende a estudiosa, precisamos reconhecer que, muito acima do dinheiro, nossa riqueza é a própria natureza: precisamos aprender "a viver na e com a natureza e para e por ela", afirma.
Esperanza Martínez é bióloga equatoriana e fundadora da ONG ambiental Acción Ecológica, com sede em Quito, no Equador. Ela também é especialista em auditoria ambiental e petróleo, tendo co-fundado a Oilwatch, uma rede internacional de organizações que defende os ecossistemas delicados e os direitos das populações indígenas contra o impacto da extração de petróleo. No ano 2000, Martínez recebeu o Prêmio Casa de la Cultura Ecuatoriana e, em 2002, o Prêmio Internacional Alexander Langer, concedido pela fundação italiana homônima, que, dentre outras coisas, homenageia pessoas que defendem os direitos dos grupos minoritários.
Como consultora da Assembleia Constituinte do Equador em 2008, Martínez trouxe para o debate as questões do meio ambiente e dos direitos humanos para o texto da nova Constituição. Em janeiro deste ano, Martínez foi uma das conferencistas do Simpósio Latino-Americano "Pachamama, pueblos, liberación y sumak kawsay", promovido pela Universidade Andina Simón Bolívar, do Equador, junto com outros pensadores como Frei Betto, o teólogo espanhol Juan José Tamayo e o padre e sociólogo belga François Houtart.
A entrevista que segue faz parte de uma iniciativa do IHU, por meio de seu Escritório da Fundação Ética Mundial no Brasil, que busca ampliar o debate sobre Ética Mundial, incluindo também outras perspectivas, especialmente dos povos originários latino-americanos – como o conceito ético do Sumak Kawsay – e africanos – o Ubuntu. Essa discussão se dará em duas edições da Revista IHU On-Line, a serem publicadas nos próximos meses.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Como o "bem viver" (sumak kawsay) nos ajuda a compreender e a viver uma nova relação com a terra e com a natureza?
Esperanza Martínez – A proposta do bem viver provém de um sujeito histórico, cujos vínculos com a terra e a natureza não estão quebrados, mesmo apesar de todo o sofrimento histórico, do despojo e da destruição da natureza: os índios. O bem viver, para eles, é mais do que viver melhor, ou viver bem: o bem viver é viver em plenitude. De fato, o termo utilizado não é "alli kawsay" (alli = bem; Kawsani = viver), mas sim "sumak Kawsay" (sumak = plenitude; kawsani = viver).
Só o fato de nos atrevermos a pensar que a meta é a plenitude e que a plenitude supõe relações de harmonia, não de hostilidade; condições de saúde, não de doença; relações de solidariedade, não de competição, nos leva a repensar a nós mesmos com a natureza e a superar a ideia cultivada na modernidade e santificada pela ciência ocidental (a religião) de que a natureza é algo hostil, que devemos dominar para sobreviver, e que aqueles que sobreviverão sempre serão os mais fortes.
Duas coisas são centrais no bem viver: o sentido de pertença à natureza e o sentido da comunidade.
IHU On-Line – A senhora diz que há "uma grande diferença em como a sociedade capitalista se aproxima da natureza e como os indígenas fazem isso". Em traços gerais, quais são essas diferenças?
Esperanza Martínez – Para os índios, a natureza é um sujeito, não um objeto. Os índios reconhecem que a natureza está viva e têm um sentido de pertença, reconhecem a si mesmos como filhos da Mãe Terra (a Pachamama). Têm uma maior compreensão sobre os ciclos da vida das diferentes espécies, e por isso aplicam diferentes práticas e restrições. Sua visão de longos prazos compreende o ciclo da vida.
Para a sociedade capitalista, a natureza é um objeto de propriedade que temos o direito de explorar e destruir para o nosso benefício exclusivo. Importam apenas os ganhos rápidos. Acredita-se que é a tecnologia que irá reparar qualquer problema. E, embora haja respostas de preocupação pelos impactos e as desordens ambientais, estes continuam sendo vistos como algo distante.
IHU On-Line – Na América Latina, vivemos em regiões com uma natureza muito rica e abundante. Como o bem viver compreende as noções de abundância e acumulação?
Esperanza Martínez – Na América Latina, encontra-se uma diversidade de ecossistemas muito amplos, muitos dos quais são conservados graças ao fato de serem territórios indígenas, outros foram degradados ou diretamente destruídos, principalmente pela exploração de minerais e petróleo, que são as riquezas naturais mais cobiçadas, porque são justamente as que geraram abundância e acumulação.
Sob o paradigma capitalista na América Latina, estamos sentados em um saco de ouro. Seria estupidez não explorá-la. No entanto, sob o paradigma do sumak kawsay, a riqueza é a própria natureza, a biodiversidade com as infinitas possibilidades de interagir com ela.
De todas as formas, foi filtrado, sim, em todos os níveis, inclusive em muitos setores indígenas, o sentido de riqueza e pobreza próprias do capitalismo, porque, quando se fala desses termos, a referência imediata é o dinheiro. O sumak kawsay permite ir além dessas noções – riqueza e pobreza –, porque o fato é que a geração da riqueza provoca pobreza para a maioria. Inclusive a noção de explorar a natureza para pagar a dívida social acaba por destruir as bases de subsistência da população local e, portanto, acaba por aumentar os sujeitos dessa mesma dívida social. É um círculo vicioso que se quebra quando são colocados no centro das decisões a sustentabilidade, a saúde, a solidariedade, isto é, o sumak kawsay.
IHU On-Line – A modernidade capitalista e a cultura ocidental trouxeram às nossas regiões grandes mudanças no campo e à agricultura praticada pelos povos originários. Como entender a relação com a terra a partir do bem viver?
Esperanza Martínez – A produção de alimentos é a atividade prioritária dos povos e dos países, e é verdade que a modernidade introduziu técnicas e produtos que desempenharam um papel na alimentação e na agricultura. Na maioria dos casos, as empobreceram, e principalmente perdeu-se o controle sobre o processo. As sementes híbridas, os agroquímicos, as monoculturas determinaram que se perca a soberania alimentar.
O mais grave é que são desprezadas e desconhecidas as tecnologias de culturas que fizeram avanços impressionantes nessas questões: o manejo da água, o cultivo em terraços, a associação e a rotação de cultivos, a domesticação das plantas são invenções geniais dos índios.
IHU On-Line – Em uma sociedade globalizada e mundializada, como o bem viver nos ajuda a repensar a noção de indivíduo e de comunidade?
Esperanza Martínez – O sumak kawsay é conjugado no plural. Para os povos indígenas, a plenitude é construída na comunidade, diferentemente do culto ao individualismo próprio do capitalismo. A consciência da responsabilidade individual é importante, mas não suficiente. Para que seja realmente transcendente, requerem-se mudanças coletivas. Mudanças que recuperem os saberes, superem as desigualdades, construam-se na diversidade e no respeito. Que reconheçam, por exemplo, que, na regeneração e na manutenção da vida, são as mulheres, as agricultoras e as índias que mantêm esses ciclos em condições de absoluta desigualdade.
Mas também é necessário reconhecer que, mesmo quando o capitalismo está globalizado, os povos indígenas não vivem dele, mas se mantiveram graças a suas práticas comunitárias e a relações não capitalistas de produção e consumo. Como diria Bolivar Echeveria, "viver em e com o capitalismo não significa viver para e pelo capitalismo".
IHU On-Line – A senhora diz que, para os povos indígenas, a Pachamama é um sujeito com direitos de existência. As políticas públicas podem defender esses direitos?
Esperanza Martínez – Com restrições, quando há ameaças de danos permanentes ou graves aos ecossistemas. Aplicando o princípio de precaução nas atividades que podem ter efeitos negativos ao ambiente. Priorizando atividades criativas frente às destrutivas. Respeitando o direito dos povos aos seus territórios. Aplicando processos de consulta vinculantes. Há muitas ferramentas legais que podem direcionar as políticas públicas. Todas as que eu mencionei estão em nossa constituição. Mas se essa nova noção de direitos não for respeitada, sempre podemos recorrer ao direito à desobediência, à resistência, à vigilância e a prestação de contas.
Não é que as políticas públicas possam defender esses direitos: devem defender esses direitos, senão é preciso mudá-las.
IHU On-Line – Na cosmovisão indígena, incluindo o bem viver, como se dá a relação com o sagrado e o transcendente?
Esperanza Martínez – Para os índios, a natureza está impregnada do sagrado. Os rituais, as restrições são o resultado do conhecimento e do respeito à natureza. Quando se bebe chicha, o primeiro gole é dado à terra. Os mitos, lendas e rituais que foram proscritos pelas religiões dominantes são agora reconhecidos como práticas de convivência pacífica e harmônica.
Sem dúvida, na cosmovisão indígena há muitos saberes que, sendo expressões do sagrado e do transcendente, revelam um profundo conhecimento científico da vida, de seus ciclos naturais, de suas reações de adaptação e de transformação. É um pensamento construído por gerações que aprenderam a viver na e com a natureza e para e por ela.
IHU On-Line – O bem viver, recentemente, entrou no debate político sobre as Constituições do Equador e da Bolívia. O que significa o resgate dessa ideia no atual momento político e histórico de América Latina?
Esperanza Martínez – Foi dito que, na América Latina, estamos saindo da longa noite neoliberal, que inclui a decomposição dos Estados e a privatização de tudo... Foi dito que parte dos ventos de mudança é recuperar o papel dos Estados e tirar o poder das transnacionais. Nesse contexto, os movimentos sociais de vários países deram passos importantes e conseguiram colocar novas agendas. Mas, claro, o poder, no sentido amplo do que implica, continua atuando e acomodando-se às novas circunstâncias.
O debate político ao redor do sumak kawsay implica, ou deveria implicar, o repensamento do modelo econômico. Não é suficiente controlar as transnacionais (porque elas podem mudar sua forma de atuar e utilizar as próprias empresas nacionais). É preciso passar de um modelo baseado na ideia de exploração da natureza para um de convivência, de sustentabilidade, de soberanias, de solidariedade.
O sumak kawsay convida a repensar o padrão tecnológico basado no petróleo, no monopólio da tecnologia, e recuperar, reconstruir ou inventar uma tecnologia que construa soberania.
Mas, do ponto de vista do debate político, acredito que é central o reconhecimento do sujeito histórico que construiu e defendeu essas posições: os povos indígenas. Isso deveria significar um giro de timão completo, porque, de uma prática de invisibilização, desprezo ou medo, se deveria passar para um verdadeiro diálogo intercultural.
No entanto, na prática, mesmo agora que temos esse presente do sumak kawsay e os direitos da natureza, os povos ou organizações, não só da América Latina, mas também do mundo inteiro, quando defendem essas visões, continuam sendo reprimidos e criminalizados. Ainda falta muito a ser feito.
(Reportagem de Moisés Sbardelotto)
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Sumak kawsay. Nem melhor, nem bem: viver em plenitude. Entrevista especial com Esperanza Martínez - Instituto Humanitas Unisinos - IHU