11 Janeiro 2010
“Não havia uma ameaça comunista nos termos colocados hoje pelos militares. Eles se vêem como salvadores da pátria, imaginando que se não fosse sua interferência, cairíamos numa ditadura comunista. Isso é totalmente falso”, explica o advogado José Carlos Moreira da Silva Filho, na entrevista exclusiva que concedeu por e-mail à IHU On-Line. Discutindo uma ideia do também advogado Jacques Alfonsin, o professor da Unisinos diz que beira a imoralidade a tentativa de igualar o terrorismo empreendido pela ditadura militar brasileira, com a reação dos grupos de esquerda para combatê-lo. “Não havia nenhum grupo armado, pronto, preparado para tomar o poder e construir uma ditadura comunista aqui. O único grupo armado pronto a tomar o poder de forma ditatorial eram os militares, e eles não hesitaram em fazê-lo”. Ele continua, explicando que os militares implantaram um estado ilegítimo, acabando com o estado de direito, e para isso contaram com o apoio de vários setores da sociedade. “Aqueles que atuaram na resistência armada lutavam para restabelecer o estado de direito e acabar com a ditadura”, frisou. A respeito do III Plano Nacional de Direitos Humanos (PNDH), Moreira Filho enfatiza o direito dos cidadãos à memória e à verdade, pontuando que é direito da sociedade brasileira saber o que houve. “Isso é fundamental para se ter uma narrativa verdadeira, adequada e que esteja focada nas nossas perdas, lutos. Só rememorando esses fatos poderemos colocá-los no lugar social que ele merece e poderemos evitar a repetição da violência, que se coloca quase de uma forma espontânea, automática”. Com relação à Lei de Anistia, pondera que sua importância histórica é grande, porém insuficiente: “Ela ainda está acontecendo, é um processo em curso, pois envolve diversos outros elementos que estão inseridos dentro do conceito de justiça de transição”. Uma coisa, entretanto, deve ficar clara, admitida com todas as letras: torturar é errado, e a sociedade precisa acompanhar os julgamentos daqueles que praticaram esses crimes contra a humanidade. “Se não houver um julgamento e uma reprovação pública desses atos, qual é a mensagem que estamos passando? De que não é errado torturar, de que não importam os meios com os quais se obtenha a verdade, mas sim os fins”.
José Carlos Moreira da Silva Filho é doutor em Direito das Relações Sociais pela Universidade Federal do Paraná – UFPR, mestre em Teoria e Filosofia do Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC e bacharel em Direito pela Universidade de Brasília – UnB. Leciona no Programa de Pós-graduação em Direito e da Graduação em Direito da Unisinos e é conselheiro da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça.
Confira a entrevista.
IHU On-Line - Em que medida o Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH-3) promove o direito dos cidadãos à memória e à verdade?
José Carlos Moreira da Silva Filho - Essa é uma grande inovação dos Planos Nacionais de Direitos Humanos, sobretudo no que se refere a políticas públicas no Brasil, que estejam voltadas aos direitos humanos. Tem sido um grande problema do país não prestar atenção à memória e à verdade e perceber o quanto isso está ligado e conectado a todas as outras questões vinculadas aos direitos humanos, especialmente à violência, que continua muito intensa. Então, entendo que o PNDH já tem um mérito, de saída, por ter previsto um foco específico sobre essa questão. Dentro desse foco específico, há inúmeros temas que foram ali propostos, das quais eu destacaria dois, exatamente aqueles que estão causando maior rebuliço em alguns setores do Estado:
1) A criação da Comissão Nacional de Verdade;
2) A proibição de colocar em logradouros, monumentos ou obras públicos nomes de pessoas que estavam à frente da ditadura militar no Brasil, ou que colaboraram com ela de alguma forma. Além disso, se propõe que se mude o nome de estradas, obras, rodovias e monumentos que já possuem esses nomes.
São propostas bem ousadas, tendo em vista o contexto do Brasil, que ainda está muito aquém da adequada conscientização da importância dessas ações e questões. O outro passo em relação a isso é dar concretização a tais iniciativas. No entanto, já fiquei, num primeiro momento, esperançoso, porque se decidiu fazer a Comissão Nacional de Verdade por iniciativa de lei, e não por decreto presidencial. Se isso acontecesse, a Comissão teria muito poucos poderes e possibilidade de efetiva ação. É claro que um projeto de lei a ser discutido no Congresso irá sofrer vários riscos, inclusive de ser barrado e ter várias forças contrárias que irão impedir que seja devidamente discutido, debatido e aprovado. Particularmente, acho que a melhor opção seria uma Medida Provisória (MP), que tem força de lei e que exige um rito mais urgente na votação por parte do Congresso Nacional. Por outro lado, é preciso um período de debates e discussão sobre isso.
Como disse, só o fato de ter aparecido num programa do Estado brasileiro não só essa questão, mas aquela que se refere aos nomes de ditadores e torturadores em monumentos, ruas, avenidas e pontes públicos é algo importante. Isso sempre me incomodou, mesmo antes de estar na Comissão de Anistia. Indo para a praia, incomoda-me o fato de estar dirigindo pela Rodovia Castello Branco. Eu nunca havia visto um jornal falar sobre isso. Agora essa situação mudou. Voltando do recesso de final de ano, passei por Bagé e surpreendi-me ao me deparar com um ginásio chamado Presidente Médici. Curiosamente, sem saber dessa polêmica que havia sido deflagrada, comentei o fato com minha esposa, espantado como é que ninguém se dava conta disso, ninguém se manifestava. Quando cheguei em Porto Alegre, vi a notícia estampada nas páginas dos jornais.
IHU On-Line - Por que motivos a Lei de Anistia precisa ser reinterpretada?
José Carlos Moreira da Silva Filho - Falar em revisão da Lei de Anistia causa muito mais impacto na mídia do que aquilo que efetivamente está se propondo, que é interpretá-la de maneira correta. A Lei não fala em anistia a torturadores, a agentes do governo que cometeram crimes comuns ou contra a humanidade, como é o caso da tortura nesse contexto. Na verdade, a Lei de Anistia não abriga esses casos. Não se trata, portanto, de revê-la. É preciso lembrar, também, que aqueles que resistiram ao governo autoritário optando pela luta armada, nem estavam sob o abrigo da Lei de Anistia de 1979. Muitos dizem que está se querendo revolver a Lei de Anistia, então agora deverão ser julgados e apreciados os casos dos militantes de esquerda mais radicais que pegaram em armas, ou que cometeram atos que esse grupo chama de atos de terrorismo, e não atos de resistência a um Estado ilegítimo. Ao dizer isso, esquecem que essas pessoas já foram perseguidas, julgadas, presas, mortas, desaparecidas, hostilizadas e que não foram anistiadas, porque a Anistia excluía explicitamente aqueles que se envolveram em crimes de sangue.
No entanto, a sociedade mal sabe o nome daqueles que agiram sob o abrigo de instituições do Estado. Esses sujeitos não sofreram nenhum tipo de investigação, e nada aconteceu com eles, reforçando uma sensação de impunidade das forças de segurança pública, que até hoje nos persegue.
"Quem colocou um estado ilegítimo não foram os movimentos de esquerda, mas o governo militar apoiado por outros setores da sociedade".
IHU On-Line - Que aspectos sociais estão em jogo com essa interpretação?
José Carlos Moreira da Silva Filho - O tema de interpretação da Lei de Anistia está, inclusive, na pauta do Supremo Tribunal Federal, que tem diante de si uma ação de descumprimento de preceito fundamental, proposta pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). Essa ação pede exatamente isso: que o Supremo diga, de forma bem clara, explícita, que a Lei de Anistia não pode ser estendida para abrigar esses casos, de pessoas que torturaram, atuando a favor do governo militar.
Antes de responder mais diretamente à sua pergunta, faço ainda um esclarecimento importante. Quando se fala em crimes políticos e crimes conexos, a interpretação que até aqui prevaleceu da Lei de Anistia tem defendido a tese de que a expressão crimes conexos estaria colocando implicitamente dentro dela o caso de pessoas que eram do governo e que reprimiram opositores políticos e cometeram crimes em relação a esses opositores. No entanto, essa é uma interpretação que, se passar sob qualquer crivo mais criterioso sob o ponto de vista técnico, jurídico, sem evocar questões políticas, não prospera. É evidente que essa interpretação que ora impera é fruto de uma imposição de forças que aconteceu na época da Anistia, que ainda era no governo militar. É como se os militares dissessem “vamos fazer a concessão de permitir que os exilados voltem, libertar os que estão presos, permitir o multipartidarismo, mas vocês sabem... não se metam conosco. Não nos coloquem em julgamento. Somos intocáveis”. Isso foi tão forte, causou um medo tão grande na sociedade brasileira, que até os juízes começaram a defender essa interpretação, que não tem consistência técnica.
Pelos critérios do direito penal, um crime conexo é aquele que precisou ser cometido em função de um crime que estava conexo a ele, o crime principal. O crime principal, nesse caso, é o crime político, que é o que Anistia tem em vista. O crime conexo, por exemplo, é daquele militante de esquerda que precisou usar um nome falso para que não fosse preso e torturado em função da sua opção política. Então há o crime político por participar de uma organização política, o que na época era considerado criminoso. Esse é o crime conexo. Quem torturou não era perseguido político, não havia nenhuma legislação política do Estado que o incluísse como criminoso. O que havia era legislação que dizia que a ação de torturar o preso era um crime, mas não político, e sim um crime comum. Vejo que o impacto de uma interpretação correta na sociedade brasileira da Lei de Anistia é extremamente importante e necessário.
Direito da sociedade
Já se disse que o Brasil é um país sem memória, e que sem memória, não temos condições de construir uma democracia forte, que respeite os direitos humanos, instituições democráticas de fato. Fica tudo no segredo, no pacto de silêncio e as pessoas preferem não tocar para frente, não mexer nas feridas. Isso vai causar incômodos. Ou melhor: está causando. Mas precisamos enfrentar essas coisas. Ficaria extremamente feliz se Lula, ao voltar de suas férias na Bahia, simplesmente aceitasse a disposição do cargo que foi colocada pelos três comandantes das forças armadas, colocando outros em seu lugar. Há setores no Exército, minoritários (é preciso que se diga), um pouco mais abertos a uma mudança de olhar sobre essa história. É um direito da sociedade brasileira saber o que houve, e isso é fundamental para se ter uma narrativa verdadeira, adequada e que esteja focada nas nossas perdas, lutos. Só rememorando esses fatos poderemos colocá-los no lugar social que ele merece e poderemos evitar a repetição da violência, que se coloca quase de uma forma espontânea, automática.
"O governo militar acabou com o estado democrático de direito".
IHU On-Line - Acredita que o PNDH é um instrumento contra a impunidade no Brasil? Por quê?
José Carlos Moreira da Silva Filho - Realmente acho que sim. Muitas pessoas, inclusive, muitos militantes de esquerda, como Alfredo Sirkis, do Partido Verde (PV), autor de livros como Os Carbonários, adotou um discurso de que não temos que mexer nessas coisas do passado. Segundo ele, ao invés disso, temos que nos preocupar com a impunidade de hoje, as torturas e execuções sumárias perpetradas em nossos dias, e não com aquelas da época da ditadura. Não sei a que atribuir essa miopia de Sirkis ao dizer isso.
No relatório da ONU do ano passado, o Brasil figura como campeão de execuções extra-judiciais e de torturas. Nesse quesito é o país mais violento da América Latina. É evidente que existe uma conexão explicita entre impunidade sobre os crimes cometidas na ditadura militar e os crimes que hoje acontecem. O espírito da corporação militar, das polícias militares é o mesmo. É um espírito de proteção interna, opaco ao olhar do resto da sociedade, com uma justiça própria, inclusive uma das imposições colocadas por setores ligados ao governo militar na Constituinte de 1987, assim como tantas outras questões que estão na Constituição e que colocam as Forças Armadas como uma espécie de tutor do Estado, do governo, que ficará monitorando possíveis desequilíbrios e coisas do gênero. Temos, ainda, muitos resquícios e essa ação de memória e verdade é o caminho imprescindível e certo para que possamos acabar com a impunidade em nosso país, especialmente com relação àqueles que cometem crimes contra a sociedade no momento em que ocupam algum cargo público ou desempenham função pública. Esses são os piores crimes, que vem vitimando a sociedade brasileira desde o momento em que ela surgiu.
IHU On-Line - Como compreende a ideia de que o terrorismo de Estado pode ser igualado à luta que se empreendeu contra ele?
José Carlos Moreira da Silva Filho - Essa é outra falácia na qual muitos defensores do regime militar incorrem. Outros, mais desavisados, aceitam esse argumento sem maiores exames ou reflexões. É quase que imoral igualar as duas coisas, especialmente no contexto brasileiro. Precisamos lembrar que, antes do governo militar, tínhamos no Brasil um governo democrático, eleito e constitucional, que estava muito longe de virar uma ditadura comunista. O que o governo João Goulart fazia era promover uma série de políticas públicas como essas que estão acontecendo hoje com o governo Lula. As políticas de Jango, no contexto da Guerra Fria, eram vistas como comunistas. Qualquer tipo de discurso em prol dos direitos dos trabalhadores, da reforma agrária ou de reformas de base para haver mais distribuição de renda, para limitar, de alguma forma, a ação dos empresários e mercado, era visto como uma “coisa do diabo”, que deveria ser combatida a todo custo, nem discutida, nem refletida.
Então, para começar, não havia uma ameaça comunista nos termos colocados hoje pelos militares. Eles se vêem como salvadores da pátria, imaginando que se não fosse sua interferência, cairíamos numa ditadura comunista. Isso é totalmente falso. É claro que existiam setores militantes de esquerda que queriam isso, mas era uma minoria. Viam a democracia como uma artimanha burguesa. Isso também não pode ser ignorado, como não podemos ignorar que não havia nenhum grupo armado, pronto, preparado para tomar o poder e construir uma ditadura comunista aqui.
"No relatório da ONU do ano passado, o Brasil figura como campeão de execuções extra-judiciais e de torturas. Nesse quesito é o país mais violento da América Latina".
O único grupo armado pronto a tomar o poder de forma ditatorial eram os militares, e eles não hesitaram em fazê-lo. Tentaram fazer antes, mas não conseguiram, graças à Campanha da Legalidade capitaneada por Leonel Brizola. Depois, não houve jeito. Era um período muito tenso, em que havia uma visão dicotomizada do mundo. Tudo isso precisa ser levado em conta. Agora, dizer que o Exército estava numa espécie de cruzada contra os comunistas é um erro grave. Quem colocou um estado ilegítimo não foram os movimentos de esquerda, mas o governo militar apoiado por outros setores da sociedade. Eles é que fizeram o que não deveriam fazer: impuseram uma ditadura, violaram direitos fundamentais, depuseram um presidente legitimamente eleito, como aconteceu com Zelaya, em Honduras, há pouco tempo. Tudo isso foi feito e agora querem justificar sua atitude.
Estigmatização
Os movimentos de esquerda, a partir do momento em que o país estava mergulhado em uma ditadura, começaram a se articular com o objetivo principal de fazer frente a essa realidade, antes de mais nada. Toda organização mais intensa de grupos armados da esquerda pode ser observada após a assinatura do AI-5, quando todos caminhos de manifestação política estavam vetados por aquele ato arbitrário e abominável que faz parte da história de nosso país. É preciso que se conheça e se saiba que a morte, desaparecimento e tortura não foram apenas promovidas contra os militantes que atuavam na resistência armada. Foi promovida também contra aqueles que nunca pegaram em armas. Atuando na Comissão de Anistia, já me debrucei sobre vários processos de pessoas que sequer pertenciam a organizações ou militâncias. Eram pessoas que, suspeitas de conhecer alguém que militava, ou que ajudaram alguém que tinha ideias consideradas subversivas, já apanhavam, eram torturadas, presas, perdiam seus empregos e não conseguiam trabalhar nunca mais. Os militares tinham essa tática. Eles não investigavam a fundo. Pressupunham que as pessoas eram culpadas se houvesse alguma acusação. Até provar o contrário, as pessoas ficavam estigmatizadas para sempre. Suas vidas eram destruídas.
Desigualdade de poderio
Há uma desigualdade, também, no que se refere ao poderio das duas facções. Os grupos de resistência armada à ditadura eram compostos por poucos jovens idealistas, sem treinamento militar - alguns poucos conseguiam tê-lo, no mais, eram mal armados e mal aparelhados. Esses grupos foram rapidamente desbaratados pela atuação intensa, massiva, profissional e cruel do Exército, ou como dizia o ex-ditador João Batista Figueiredo, era “para prender e arrebentar”. A ação visava não deixar nenhum rastro no caminho. Assim, é uma falácia dizer que dá para colocar em pé de igualdade os dois grupos, em vários sentidos. O governo militar acabou com o estado democrático de direito. Aqueles que atuaram na resistência armada lutavam para restabelecer o estado de direito e acabar com a ditadura.
IHU On-Line – Recuperando uma ideia discutida pelo advogado Jacques Alfonsin, o que é realmente irrevogável: a lei de Anistia ou os direitos e garantias individuais referidos na Constituição Federal?
José Carlos Moreira da Silva Filho - Os direitos fundamentais seriam válidos e deveriam ser respeitados mesmo que não estivessem previstos na Constituição explicitamente. Na Lei de Anistia isso nem se coloca nesses termos. Como disse no início da conversa, não se trata de revogar a Lei de Anistia, que teve um papel histórico muito importante. É preciso dizer que ela não foi uma concessão, apenas, como os militares quiseram fazer parecer. Só aconteceu a Lei da Anistia em 1979 porque houve muita luta, greve de fome dos presos políticos, sobretudo daqueles que pegaram em armas. Movimentos de artistas, intelectuais e da sociedade foram fundamentais. As pessoas estavam cansadas do medo, da censura, do arbítrio, da repressão, e queriam votar para presidente, além de libertar aqueles jovens presos. Essa foi uma das bandeiras nacionais mais intensas que tivemos. É uma história muito bonita, e pouco conhecida, mesmo que já tenha completando 30 anos em 2009.
"Boa parte da exceção em que as sociedades democráticas vivem hoje se deve, também, à falta de atenção a esse ponto, que agora o PNDH no Brasil procura, finalmente, trazer à luz".
Justiça de transição
A Anistia teve um papel histórico importante, mais ainda assim foi insuficiente. Ela ainda está acontecendo, é um processo em curso, pois envolve diversos outros elementos que estão inseridos dentro do conceito de justiça de transição. Inclusive, o tema de justiça de transição será enfrentado no XI Simpósio Internacional IHU: O (des)governo biopolítico da vida humana, em setembro. Na parte que me coube, buscarei tratar esse tema como marcante, porque entendo que boa parte da exceção em que as sociedades democráticas vivem hoje se deve, também, à falta de atenção a esse ponto, que agora o PNDH no Brasil procura, finalmente, trazer à luz. Todos os outros países da América Latina já fizeram isso, menos o nosso.
A justiça de transição é um tema que envolve o direito à memória e à verdade, a importância da memória para a construção de uma sociedade democrática e justa, respeitadora dos direitos humanos. É claro que, quando se fala em verdade aqui, é que os fatos e as narrativas sejam apresentados, e não que alguém queira ter o monopólio da verdade. É preciso que os militares forneçam suas narrativas, assim como que os perseguidos políticos forneçam as suas, porque todas elas compõe o quadro que forma a nossa auto-compreensão como Brasil.
Um segundo aspecto do conceito de justiça de transição é a reparação. A Anistia de 1979 ignorou essa questão. A Lei de Anistia de 2002, que regulamentou um artigo da Constituição Federal, prevê essa questão das reparações.
O tema da justiça seria um terceiro foco da justiça de transição, que é exatamente esse debate sobre o julgamento, a investigação e o indiciamento daqueles que cometeram crimes contra a humanidade. Esse é um ponto muito delicado porque, para mim, ao menos, a possibilidade de julgar esses criminosos não está no meu interesse por sua punição. Penso que o mais importante é que haja um processo de julgamento dessas pessoas, penalmente, no qual se diga com todas as letras que cometeram crimes contra a humanidade. Tais crimes têm uma característica bastante específica, que veio sendo construída desde o final da II Guerra Mundial. A importância desses julgamentos se dá no fato de que eles podem projetar no plano simbólico do espaço público o reconhecimento daquilo que aconteceu. É preciso que haja a conscientização da sociedade de que torturar é errado. Se não houver um julgamento e uma reprovação pública desses atos, qual é a mensagem que estamos passando? De que não é errado torturar, que não importam os meios com os quais se obtenha a verdade, mas sim os fins.
Por fim, o quarto e último aspecto da justiça de transição é o fortalecimento das instituições democráticas. Sem um investimento na educação, na segurança pública com cidadania (como o Tarso Genro está fazendo com o PRONASCI), na democratização do Poder Judiciário, na fiscalização dos órgãos públicos e no exercício da participação política, por exemplo, os riscos de incorrermos nos mesmos erros ficam bem maiores.
Tapete sobre a sujeira
De todo modo, a justiça é fundamental, e aqui volto a invocar o artigo de Alfonsin, que critica um outro artigo, este de opinião bastante equivocada, escrito pelo ex-ministro do Supremo, Paulo Brossard, publicado na Zero Hora de 4 de janeiro de 2010. Nesse texto, ele dizia que não se pode procurar a justiça porque a paz era um bem maior. Por isso, concordo com Alfonsin quando ele diz que a paz que se busca sem a justiça é um engodo, uma falsa paz. É como se fosse uma espécie de tapete sobre a sujeira. E essa sujeira irá aparecer um dia. Irá voltar.
IHU On-Line - Como interpreta a reação do setor do agronegócio ao PNDH? Em que medida essa reação corrobora a estigmatização dos movimentos sociais, como no caso do MST, por exemplo?
José Carlos Moreira da Silva Filho - Não me surpreende esse tipo de opinião e reação. Mas vejamos o quanto isso está conectado com o período da ditadura. O MST de hoje são as ligas camponesas de ontem. Os latifundiários e os defensores do agronegócio de hoje são aqueles proprietários de terra que apoiaram o regime militar porque queriam barrar, a todo custo, os projetos de reforma agrária que estavam prestes a ser conduzidos pelo governo João Goulart. É preciso entender que a opção pela monocultura, pela agricultura mecanizada e o uso de uma série de herbicidas e produtos químicos, bem como as relações de trabalho extremamente insatisfatórias e que não se preocupam com as pessoas que estão fixadas no campo é a mesma receita que se usava no contexto militar. Trata-se da mesma receita econômica: precisamos exportar, produzir cada vez mais, custe o que custar.
"O MST de hoje são as ligas camponesas de ontem. Os latifundiários e os defensores do agronegócio de hoje são aqueles proprietários de terra que apoiaram o regime militar porque queriam barrar, a todo custo, os projetos de reforma agrária que estavam prestes a ser conduzidos pelo governo João Goulart".
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"É imoral igualar o terrorismo do Estado brasileiro à luta que se empreendeu contra ele". Entrevista especial com José Carlos Moreira da Silva Filho - Instituto Humanitas Unisinos - IHU