30 Outubro 2009
“Os negros brasileiros não conseguiram se colocar na cena pública”, aponta Leonor Franco de Araújo. E mais, segundo ela, a realidade é ainda mais dura, pois a sociedade brasileira invisibilizou os negros. “É como se, depois da abolição, todos tivessem desaparecido. No Brasil, os negros foram empurrados para os piores cantos, tiveram que assumir os piores trabalhos porque saíram da escravidão sem qualquer qualificação ou política pública. Se o negro brasileiro diz que é discriminado, é questionado: “Mas onde? A lei diz que todo mundo é igual”, revelou na entrevista que concedeu à IHU On-Line pessoalmente. Ela veio à Unisinos falar sobre a temática “Reflexões sobre a reeducação das relações étnico-raciais”, durante o Encontro de Formação de Professores. Na entrevista, ela defende o Plano Nacional para a implementação da lei 10.639 que estabelece o ensino da História da África e da Cultura afro-brasileira nos sistemas de ensino. Com isso, ela traz informações históricas importantes para refletirmos. “O brasileiro tem, na sua concepção, que o país é uma democracia racial, e que ninguém discrimina ninguém, e que é politicamente incorreto se colocar como uma pessoa racista. Essa dificuldade é um primeiro empecilho que temos nessa mudança de atitude”, disse.
Leonor Franco de Araújo é formada em História pela Universidade Federal do Espírito Santo, onde fez especialização em Educação e mestrado em História. Hoje, é professora nesta instituição, além de ser coordenadora geral da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade do MEC.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Como a senhora analisa a discussão atual da diversidade étnica e educação nas universidades?
Leonor Franco de Araújo – Eu costumo dizer que essa pauta tem avançado mais nas universidades particulares do que nas universidades estaduais e federais. Pois, as federais são tradicionalmente um reduto do conservadorismo e do status quo da elite brasileira. As particulares e confessionais têm avançado mais nessa discussão, até porque o Prouni abriu um espaço muito importante na entrada de um público que foi excluído das federais e estaduais. Nestas, a briga continua sendo por cotas. Isso é interessante porque o Prouni tem um recorte racial e econômico, e ninguém reclamou, mas quando falamos nisso nas federais e estaduais todo mundo reclama. Na verdade, se construiu, na mentalidade da sociedade brasileira, que o espaço do saber acadêmico com competência e qualidade é nas federais. Por isso, há tanta resistência em abrir o espaço das federais para inclusão daqueles que sempre foram excluídos. Assim, o ensino superior precisa contribuir para o debate das relações étnico-raciais porque essa é uma questão da sociedade brasileira como um todo. E a pretensão que temos é desconstruir e acabar com um dos venenos constitutivos da sociedade brasileira que é o racismo. O brasileiro tem muito problema nessa questão racial, porque aqui ninguém quer ouvir, falar e ver essa questão. A invisibilidade que se deu a essa questão e a naturalização que se fez dos processos de discriminação fazem com que essa seja uma pauta difícil de ser discutida e que o brasileiro se reconheça racista. Este é o grande problema.
O brasileiro tem, na sua concepção, que o país é uma democracia racial e que ninguém discrimina ninguém e que é politicamente incorreto se colocar como uma pessoa racista. Essa dificuldade é um primeiro empecilho que temos nessa mudança de atitude. Nós fizemos uma pesquisa no Rio de Janeiro e São Paulo para constatar algumas questões com relação à discriminação racial. Perguntamos aos professores, diretores e pedagogos se havia racismo na escola. E 96% das respostas eram afirmativas. Mas quando perguntávamos para cada um se se considerava racista, todos diziam que não. Então, se tem racismo na escola e nenhum deles era racista, a questão era: quem é racista? Todos eles, com isso, faziam uma série de relatos. Quando se cruzou os questionários, vimos que todos eram racistas, porque um acusava o outro. Essa é a dificuldade, é possível ver o racismo, algumas vezes se consegue até identificar o racismo, mas como ninguém se declara racista, as pessoas se eximem.
Além disso, o Brasil naturalizou muitos processos discriminatórios. Nós colocamos na nossa vida como se isso fosse normal. Todas as piadas racistas, por exemplo, são para desqualificar o outro. Isso se naturalizou de uma maneira tão rápida e eficiente na sociedade brasileira que não conseguimos perceber que essa é uma ação para a construção do outro. Então, tudo isso faz parte da discussão da questão da educação para as relações étnico-raciais. Queremos tirar as pessoas da inércia. O primeiro passo é se reconhecer racista, só assim elas podem mudar. Nossa educação tem um único referencial: europeu, ocidental, branco. Enquanto essa discussão ficou só no âmbito teórico, tudo era lindo, dizia-se que a discriminação racial no Brasil era um mito. Quando isso passou a se tornar política pública no sentido de resolver isso e incluir a população excluída, percebemos as disputas de poder. Muitos teóricos tentaram tornar a discussão num tema sócio-econômico, e não racial. Dizendo que as pessoas eram discriminadas por serem pobres e não negros. Com os dados que obtivemos nas pesquisas, vimos que as pessoas também são discriminadas por sua cor. E se a pessoa é preta, pobre, mulher e homossexual o problema fica ainda maior.
Além disso, no imaginário brasileiro, só se reconhece como negro aquele que é preto retinto. Eu, por exemplo, sou uma pessoa que me autoidentifico o tempo todo como negra, mas a maior parte da população brasileira não me vê como negra. A autoidentificação é uma criação brasileira, e estamos espalhando isso. Ano que vem, teremos censo em dez países da América Latina, e essa questão da autoidentificação será muito importante, porque nosso país é miscigenado. No entanto, nessa cultura, só prevaleceu uma visão de mundo, só um tipo de interpretação da realidade, que é europeia. Nós não conseguimos interpretar nossa realidade pela concepção africana ou indígena, por exemplo. O africano não discrimina gênero, casamentos não são convenções sociais. O racismo impede que tragamos à cena outras culturas que formaram o país, porque ele nos fez pensar que as outras culturas são inferiores à cultura europeia. Só contemplamos essa cultura no momento do folclore, como o carnaval e a capoeira.
IHU On-Line – Quais as peculiaridades da construção histórica dos negros no Brasil?
Leonor Franco de Araújo – Os negros brasileiros não conseguiram se colocar na cena pública. Nos Estados Unidos, quando vem à abolição da escravatura, os negros passam a fazer parte da legislação norte-americana. As leis visibilizavam o negro. E aí diziam que negro não pode casar com branco, não pode frequentar a mesma escola que o branco. Isso fez com que os negros estadunidenses tivessem que se colocar na cena pública e combater esta política que estava consolidada dentro dos objetos jurídicos. Então, ele luta contra uma lei, é uma luta pública. No Brasil, os negros foram invisibilizados, é como se, depois da abolição, todos tivessem desaparecidos. No Brasil, os negros foram empurrados para os piores cantos, tiveram que assumir os piores trabalhos porque saíram da escravidão sem qualquer qualificação ou política pública. Se o negro brasileiro diz que é discriminado, é questionado: “Mas onde? A lei diz que todo mundo é igual”.
Hoje, quando você coloca um anúncio no jornal, você não diz: “não contrato negro, mulher feia...”. Escreve-se: “Exige-se boa aparência” O que significa isso? Significa que o empregor tem o direito de escolher quem ele quiser para o emprego. Hoje, temos 98% de entrada na escola, praticamente universalizamos o acesso à educação. Só que a criança não encontra identidade na escola porque o corpo gestor e os professores não tiveram, na sua formação, a qualificação necessária para trabalhar com o diferente. A cultura europeia considera o diferente como desigual, e não como diferente. O negro de hoje, portanto, foi levado a crer que temos uma legislação que contempla a todos, que as pessoas se estabelecem por mérito, e não por oportunidade.
IHU On-Line – Qual a importância do ensino da História da África e da Cultura afro-brasileira nos sistemas de ensino?
Leonor Franco de Araújo – Esse trabalho deve ser levado a todos que trabalham nas escolas e a todos os cidadãos. Essa questão do racismo também faz mal para o branco. O plano vem mostrar à sociedade brasileira o que cabe a cada instituição fazer para implementar a lei. Temos ações para o âmbito federal, estadual e municipal. Muita gente acha que a responsabilidade é do professor, mas ele é o último elo desta corrente que tem que ser fortificada. Nesse sentido, os conselhos estaduais e municipais de educação têm um grande papel na implementação da lei 10.639. Essa temática precisa ser incluída no currículo e, para isso, toda a sociedade tem que lutar por isso. Há um ditado africano que exemplifica: É preciso toda uma aldeia para educar uma criança.
IHU On-Line – Qual o papel do MEC no sentido de acabar com as desigualdades raciais?
Leonor Franco de Araújo – O MEC tem um papel de indução também. Não somos donos nem da rede municipal nem da rede estadual. Nós temos uma rede federal formada pelas escolas técnicas, alguns institutos e escolas federais. Nem as universidades federais são parte da nossa gestão, porque elas têm autonomia. Mas temos o papel de influenciar os gestores da educação, até porque parte do recurso vem do MEC. O nosso papel no combate ao racismo e na inclusão dessas pessoas é induzir, esclarecer, ajudar na construção das políticas estaduais e municipais. Não temos o poder de gestar ou fiscalizar. Isso é papel do Ministério Público. O nosso é o de sensibilizar os gestores para termos uma sociedade mais democrática e pluralista.
IHU On-Line – Como a senhora analisa a educação em áreas remanescentes de quilombos?
Leonor Franco de Araújo – Nesse espaço, temos também trabalhado com a lei, mas ele é mais específico nesses casos das comunidades remanescentes de quilombos. Porque nós entendemos que os quilombolas têm peculiaridades que a maior parte da população afro-brasileira não tem. Nós temos uma questão que une todo mundo, que é a cor. Mas os quilombolas são uma população altamente vulnerável, eles têm problemas ligados à propriedade da terra, infra-estrutura básica. Enquanto trabalhamos com os afro-descendentes no meio urbano pensando na inclusão digital, na capacitação etc. Com os quilombolas, temos que pensar primeiro se eles têm água e luz. Sem isso, não é possível construir uma escola. Para os quilombolas, a política é completamente diferenciada porque há especificidades. São, inclusive, diferentes entre as próprias comunidades quilombolas.