31 Agosto 2009
Criada em 1977, numa funerária, a Igreja Universal do Reino de Deus cresceu e se desenvolveu com rapidez. De lá para cá foi construindo grandes templos e comprando canais de comunicação importantes. Hoje, sua ligação com a Rede Record é o alvo dos debates. Sua gestão é excelente, de molde quase empresarial, salientou o sociólogo Ricardo Mariano, em entrevista, por telefone, à IHU On-Line. O professor fez uma análise do crescimento da igreja pentecostal, explicou alguns rituais e falou sobre o conflito jurídico que ela enfrenta. “Todo o culto visa estabelecer uma relação de barganha entre os homens de Deus, na qual a Igreja Universal é a intermediária dessa transação. A Igreja sempre está oferecendo bênçãos e graças divinas aos fiéis que, para recebê-las, têm que comprovar sua fé mediante o seu engajamento na obra de evangelização”, destacou.
Ricardo Mariano é graduado em Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo, onde também realizou o mestrado e doutorado em Sociologia. Hoje, é professor na PUCRS. Entre suas obras citamos Neopentecostais: Sociologia do novo pentecostalismo no Brasil (São Paulo: Edições Loyola, 2005).
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Em sua opinião, como a Igreja Universal do Reino de Deus cresceu tanto nos últimos anos?
Ricardo Mariano – Por várias razões. A primeira delas é uma excelente gestão institucional, de molde quase empresarial. Outra razão é o emprego sistemático de oferta e prestação de serviços mágico-religiosos visando atrair as massas para a Igreja, através dos usos dos meios de comunicação. Para evangelizar, isso têm sido fundamental para o sucesso da Igreja Universal. Outra razão é que os pastores da Igreja Universal são pagos para trabalhar full time. Essa é uma vantagem competitiva da Igreja Universal em relação a outras denominações evangélicas, inclusive pentecostais, cujos pastores pastoreiam efetivamente a Igreja em alguns dias e horários específicos da semana durante ou cultos, ou seja, boa parte deles trabalha em profissões secundárias. Os da Universal não, eles são full time em relação às atividades do culto, de pregação, de evangelização, e também se envolvem na própria atividade de radio e tele-evangelismo, visitação a doentes e coisas do gênero. E o extremo pragmatismo também da liderança da Igreja Universal do Reino de Deus.
Todo o culto visa estabelecer uma relação de barganha entre os homens e Deus, na qual a Igreja Universal é a intermediária dessa transação. A Igreja sempre está oferecendo bênçãos e graças divinas aos fiéis que, para recebê-las, têm que comprovar sua fé mediante o seu engajamento na obra de evangelização. Isso geralmente se dá pela via do financiamento da evangelização nos meios de comunicação de massa, ou seja, o fiel da Igreja Universal só comprova efetivamente mediante a doação de dízimos e de ofertas, com amor, desprendimento e generosidade. Esse é um mecanismo fundamental para a Igreja Universal ser tão bem sucedida na arrecadação de recursos monetários que lhe permitem investir na aquisição de grandes terrenos, templos, de envio de missionários para o exterior, e também, sobretudo, a aquisição de novas emissoras de rádio e de TV pelo Brasil e outros países cuja legislação permite.
IHU On-Line – Quais são as peculiaridades a Igreja Universal do Reino de Deus que explicam esse crescimento?
Ricardo Mariano – Seria a junção de tudo que eu mencionei: a organização de tipo empresarial, o extremo pragmatismo, a oferta sistemática de serviços mágico-religiosos para a atração das massas, o uso intenso e extenso dos meios de comunicação para evangelizar a sua capacidade de atestar aquilo que os pastores pregam, por meio de uma verdadeira máquina de produção de testemunhos, que Deus retribui com bênçãos o pagamento de dízimos e a doação de ofertas generosas para a Igreja. Por exemplo, os cultos de libertação e de exorcismo espetaculares e dramáticos levados a cabo semanalmente pela Igreja Universal em todos os seus templos pelo planeta funcionam como atestado da existência dos poderes divino e demoníaco, que estão numa verdadeira guerra cósmica, Deus tentando salvar a humanidade e o diabo tentando levar para o caminho da perdição e causar todos os malefícios possíveis e imagináveis.
Então, o ritual de exorcismo no qual os pastores e bispos convocam os encostos e os demônios que estão se manifestando naquelas pessoas em transe demoníacos e perguntam a eles durante os cultos com que males aqueles demônios estão infligindo as suas vítimas. Então, eles humilham os “demônios”, arrastando os fieis pelos cabelos diante do púlpito, os faz ajoelhar. Depois, convocam o próprio Cristo para libertar o fiel e demonstrar, portanto, seu poder superior sobre os demônios. São vários mecanismos de demonstração daquilo que é pregado pela Igreja Universal do Reino de Deus que procura, assim como as demais religiões pentecostais, resgatar o cristianismo primitivo, baseado na ideia de que aquilo que está na Bíblia referente ao Ministério de Reino de Cristo continua ocorrendo nos dias de hoje. É isso que eles procuram fazer. E essas são algumas das principais razões pelas quais a Igreja Universal cresce tanto. Tudo o que ela faz, faz com grande eficácia. Ela arrecada mais do que os outros, investe em empresas de rádio, TV, gravadoras e editoras que gravitam em torno da Igreja e cuja finalidade também é o crescimento da Igreja.
IHU On-Line – O que significa a Fogueira de Israel?
Ricardo Mariano – É uma campanha que a Igreja Universal faz sistematicamente, onde queima os pedidos de benção dos fieis. Então, eles levam esses pedidos para Israel e os queimam e oferecem as ofertas a Deus. Com isso, pleiteiam para os fieis as bênçãos que eles pediram. Ou seja, a Igreja funciona como uma intermediária. A partir dessa campanha que a igreja encampa, é como se Deus ficasse incumbido de obedecer a essas demandas desde que os fieis tenham sido zelosos cumpridores de parte da sua relação contratual com Deus. Deus é obrigado a conceder às bênçãos e os fieis são obrigados a fazer a sua parte, ou seja, obedecer a Deus, pagar dízimos e doar ofertas com amor, generosidade e desprendimento.
IHU On-Line – O que é a sessão do descarrego e porque o dinheiro faz parte da liturgia?
Ricardo Mariano – O dinheiro é o sangue da Igreja, segundo Edir Macedo. Ou seja, sem dinheiro nada é possível de ser feito, não se pode evangelizar, comprar templos, pagar os salários dos pastores. A questão é que os mecanismos, estratégias e práticas de arrecadação da Igreja Universal são muito polêmicos, inclusive nos próprios meios evangélicos. Além disso, todo culto da Igreja Universal parece ter como principal finalidade a arrecadação. Todo culto tem uma estrutura única, o pastor geralmente prega fazendo referência a um personagem bíblico que estabeleceu uma relação de troca com Deus. O descarrego é o famoso ritual de libertação. São exorcismos coletivos realizados no culto geralmente de sexta-feira em que se faz a libertação de demônios. Essa é uma das principais obras da Igreja e dos cristãos, segundo Edir Macedo. Os fieis, por sua vez, entram nessa relação de troca com Deus, intermediada pela Igreja, visando bênçãos ou retribuição divina. Essa é a lógica desses cultos e da pregação da Igreja.
IHU On-Line – Como o senhor vê esse debate que se criou em torno da relação da Universal com a Record e outras grandes empresas brasileiras?
Ricardo Mariano – Isso não vem de agora. A Igreja Universal já protagonizou vários escândalos. Nos anos 1980, esteve nas manchetes dos jornais por conta da sua discriminação aos cultos afro-brasileiros, o que perdurou nas décadas seguintes. No finalzinho de 1989, quando começa a negociar a compra da Rede Record, emerge o escândalo relativo a essa compra. A questão era: como uma igreja nascida em 1977, numa funerária, de repente, havia juntado 45 milhões de dólares para comprar uma tradicional rede de TV no país. Já naquele momento começa a criar uma forte tensão entre emissoras de TV seculares e a Record, que estava sendo comprada pela Igreja Universal. Além da disputa de mercado e de audiência, um dos motivos básicos desse conflito é o fato de que as demais emissoras de TV, para realizar seus investimentos e suas expansões, precisaram recorrer aos bancos pagando juros altos.
Enquanto isso, as igrejas que investem na mídia eletrônica, seja comprando emissoras de rádio ou TV, o fazem com recursos arrecadados dos fieis. O problema é que esses recursos só podem ser canalizados, do ponto de vista legal, para atividades religiosas ou assistenciais, por isso as igrejas têm imunidade tributária. Ou seja, o investimento desses recursos em empresas lucrativas é terminantemente proibida pela legislação brasileira. Então, já nos anos 1990, a Igreja Universal recebeu uma multa multimilionária da Receita Federal, de mais de 90 milhões de reais, e isso está se repetindo agora. O Ministério Público de São Paulo levou adiante uma nova denúncia a respeito desse fato. Está chamando, inclusive, nove integrantes da cúpula da Igreja Universal de quadrilha criminosa, mas o que está lastrando a denúncia é a alegação de que essas empresas com fins lucrativos estão sendo compradas por desvio de recursos de dízimos e ofertas da Igreja. O problema é que isso se torna uma concorrência injusta. Eis o grande drama. A Globo, no caso, não está só reclamando disso, também tem feito entrada na própria disputa religiosa ao favorecer claramente a Igreja Católica, isso ficou visível na visIta do Papa Bento XVI em maio de 2006. A cobertura que a Globo fez só reforçava o catolicismo o tempo todo. Em nenhum momento houve uma perspectiva jornalística.
IHU On-Line – Como o senhor acha que a Igreja e as empresas saíram desse processo que corre na justiça, em relação a forma com que os dízimos possam estar sendo utilizados?
Ricardo Mariano – Acho que é imprevisível o que pode acontecer. Faz dez anos que a Receita Federal multou a Igreja Universal, e isso está parado na Justiça desde então. A Igreja Universal dispõe de bons advogados, paga-os a preço de ouro, dispõe de poder político, é aliada do governo Lula também. Ela tem poder religioso, tem poder midiático, tem poder político-partidário. Tudo isso não se pode deixar de lado quando se pensa no que vai ocorrer com a Igreja.
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"O dinheiro é o sangue da Igreja’. Entrevista especial com Ricardo Mariano - Instituto Humanitas Unisinos - IHU