22 Agosto 2009
Ao relembrar a história da Igreja no Rio Grande do Sul e no Brasil, nos últimos 100 anos, o historiador Artur Cesar Isaia destaca que “a Arquidiocese de Porto Alegre esteve muito ligada, em vários momentos, à vida política estadual e nacional. Basta analisarmos a história política recente para que salte aos olhos a sua presença. Por exemplo, é impossível estudarmos a revolução de 1930, a ascensão da ditadura getulista, a democracia populista e o regime militar, sem que se dê a devida atenção à Arquidiocese de Porto Alegre”. Na entrevista que segue, concedida, por e-mail, para a IHU On-Line, o professor também aborda a importância histórica de Dom João Becker que, segundo ele, “foi um bispo totalmente comprometido em estabelecer uma relação entre o magistério da Igreja e a atuação política”. E continua: “Podemos pensar que D. João Becker foi um grande colaborador para que se perpetuasse o predomínio político de um gaúcho a nível nacional (Getúlio Vargas), mas, ao mesmo tempo, um grande aliado de Vargas no seu projeto de ‘domesticar’ a oligarquia gaúcha”.
Artur Cesar Isaia é graduado em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, mestre em História pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul e doutor em História Social pela Universidade de São Paulo. Desenvolveu estágio de pós-doutoramento na École de Hautes Études en Sciences Sociales, em Paris. Atualmente, é professor da Universidade Federal de Santa Catarina. É autor de, entre outros, Catolicismo e Autoritarismo no Rio Grande do Sul (Porto Alegre: EDIPUCRS, 1998); e dos Cadernos IHU Ideias número 64, de 2006, intitulado Getúlio e a Gira: a Umbanda em tempos de Estado Novo. A edição está disponivel nesta página para download.
Confira a entrevista.
IHU On-Line - Qual a importância de lembrar os 100 anos da Arquidiocese de Porto Alegre, bem como o centenário das Arquidioceses de Pelotas e Santa Maria?
Artur Cesar Isaia - Penso que a comemoração pode representar, sobretudo, um momento de reflexão, de aprofundamento da visão crítica sobre o trabalho desenvolvido por essas Arquidioceses no terreno social, principalmente. Neste esforço reflexivo, a pesquisa histórica poderia colaborar muito, uma vez que, nestes 100 anos, a fisionomia do Rio Grande do Sul e das cidades de Porto Alegre, Pelotas e Santa Maria se transformou radicalmente. A questão social tornou-se mais aguda e a pobreza bem mais visível. Por outro lado, a Igreja teve que enfrentar problemas muito sérios no campo cultural. Nessas cidades, nesses 100 anos, a Igreja deixou de ter a comodidade antes desfrutada como produtora de bens culturais e teve que se inserir em uma sociedade cada vez mais pluralista. Penso que este desafio continua sendo muito atual e continua a exigir um trabalho incessante, não só dos bispos, mas também dos padres, religiosos e leigos.
IHU On-Line - Qual a importância da Arquidiocese de Porto Alegre para a história da Igreja no Rio Grande do Sul e no Brasil?
Artur Cesar Isaia - Nesses 100 anos a Arquidiocese de Porto Alegre esteve muito ligada, em vários momentos, à vida política estadual e nacional. Basta analisarmos a história política recente para que salte aos olhos a sua presença. Por exemplo, é impossível estudarmos a revolução de 1930, a ascensão da ditadura getulista, a democracia populista e o regime militar, sem que se dê a devida atenção à Arquidiocese de Porto Alegre. A elevação do então arcebispo Dom Vicente Scherer ao cardinalato, em 1969, tornou ainda mais patente a importância da Arquidiocese de Porto Alegre no contexto nacional.
IHU On-Line - Quais o senhor destacaria como os grandes momentos e os grandes nomes que marcaram a história da Igreja no Rio Grande do Sul, nos últimos 100 anos?
Artur Cesar Isaia - São muitos os nomes importantes revelados pela história da Arquidiocese de Porto Alegre nestes últimos 100 anos. É muito difícil nominar, sem esquecer. Vou citar apenas dois nomes, sabendo que estou deixando de fora inúmeros outros (sacerdotes, leigos e religiosos), extremamente relevantes: Dom João Becker e Dom Vicente Scherer. Sem dúvida, foram arcebispos com uma projeção enorme na vida nacional. Tanto no que concerne aos aspectos internos, institucionais da Igreja no Rio Grande do Sul, quanto no relacionamento da Igreja com a sociedade e com as esferas de poder. São dois nomes inseridos em conjunturas históricas muito diferentes. Ambos polêmicos, dotados de personalidades fortes, de opiniões firmes no campo doutrinário, postos à prova em circunstâncias muito próprias. D. João Becker, sendo um dos grandes articuladores da aliança política, daquela “concordata não escrita”, que marcou a aliança entre Vargas e o catolicismo e no qual se sobressaiu a liderança do arcebispo do Rio de Janeiro, D. Sebastião Leme. D. Vicente Scherer, por seu turno, um homem, da mesma maneira, extremamente fiel à ortodoxia, mas que teve que conviver com uma sociedade que aprofundava o processo de laicização, que tornava cada vez mais relativa a voz da Igreja. Representou, ao mesmo tempo, uma continuidade e uma ruptura. Uma continuidade com seu predecessor, se pensarmos o seu comprometimento com os valores que julgava inegociáveis do magistério eclesial; com aquilo que julgava que nem as circunstâncias históricas, nem as características pessoais dos pastores podiam alterar. Uma ruptura, se pensarmos que a maneira de expor esse magistério é completamente outra. A época em que D. Vicente ocupou a cátedra arquiepiscopal exigia uma negociação crescente com outros atores políticos e com outros produtores de bens culturais. Se D. João Becker restringia em boa parte sua interlocução com as elites políticas, D. Vicente Scherer teve que dilatar essas interlocuções, fazendo-se, inclusive, presente nos meios de comunicação, de uma maneira impensada por D. João Becker, que expressava seu posicionamento, sobretudo através da palavra escrita, das suas famosas Cartas Pastorais. Nesse sentido, a presença semanal de Dom Vicente Scherer no rádio e no jornal (refiro-me ao programa “A voz do Pastor”) mostrava a sua intenção em ocupar espaços em uma sociedade na qual a presença da Igreja precisava concorrer com outras presenças.
IHU On-Line - Qual a importância de Dom João Becker para a história política brasileira? Como era sua postura em relação a Getúlio Vargas, por exemplo?
Artur Cesar Isaia - Dom João Becker representou um momento muito especial na busca da afirmação do catolicismo frente às esferas de poder nacional e estadual. Ele tinha um projeto muito claro de dilatar a importância da Igreja Católica frente ao poder político. Ele punha em ação o que era a concepção vigente em relação à atuação da Igreja: fortalecer internamente a instituição eclesial, formar um clero e um laicato comprometidos com o que entendia como recristianização da sociedade e, a partir deste fortalecimento, influir junto às elites políticas. O projeto da Igreja passava, necessariamente, pela interlocução com as elites e com estado. Foi baseado nesses pressupostos que D. João Becker decidiu manter um total alinhamento político com Getúlio Vargas. Este alinhamento era visto pelo arcebispo, portanto, dentro do seu projeto maior de fortalecimento do poder da Igreja. Entre as opções políticas existentes naquele momento, pareceu a D. João Becker que o alinhamento com Vargas representava a oportunidade maior para concretizar-se o projeto de recristianização. Vargas aparecia para o arcebispo como o aliado mais viável da Igreja e como a opção política mais acorde com os interesses católicos. Por isso, decide apoiá-lo integralmente e endossa todo o processo de centralização política que culmina com a instauração do Estado Novo em 1937.
IHU On-Line - Em que sentido Dom João Becker contribuiu para a constituição do discurso religioso católico brasileiro?
Artur Cesar Isaia - D. João Becker foi um bispo totalmente comprometido em estabelecer uma relação entre o magistério da Igreja e a atuação política. Pode-se dizer que D. João Becker, a partir de sua produção intelectual (refiro-me especialmente às numerosas Cartas Pastorais que escreveu), tentou sempre estabelecer os nexos entre a “ratio” teológica e as posições políticas que assumiu. Suas Cartas Pastorais formam um “corpus” documental extremamente importante e inigualável em se tratando do episcopado brasileiro do período. Nelas, o arcebispo aborda uma diversidade enorme de assuntos, que iam da política partidária à saúde pública, evidenciando a preocupação em explicitar o magistério católico frente a uma sociedade cada vez mais complexa.
IHU On-Line - Qual o legado de Dom João Becker para a constituição do projeto político do Rio Grande do Sul?
Artur Cesar Isaia - Se pensarmos que a proposta de Getúlio Vargas visava a dois objetivos claros: a centralização política e o necessário enquadramento das oligarquias estaduais, vamos ver que D. João Becker vai jogar um papel decisivo no projeto varguista nos anos 1930. Por um lado, vai defender por completo a criação de um partido político que representava esses interesses (o Partido Republicano Rio-Grandense) e, por outro, vai voltar-se de costas para as siglas políticas que tradicionalmente representavam os interesses da oligarquia gaúcha tradicional (o PRR e o PL). Esse posicionamento do arcebispo é muito importante se pensarmos que tanto no PRR quanto no PL militava boa parte da elite católica rio-grandense da época e isso poderia causar, como causou, momentos bastante incômodos no relacionamento do arcebispo com setores desta elite. Podemos pensar que D. João Becker foi um grande colaborador para que se perpetuasse o predomínio político de um gaúcho a nível nacional (Getúlio Vargas), mas, ao mesmo tempo, um grande aliado de Vargas no seu projeto de “domesticar” a oligarquia gaúcha.
IHU On-Line - De modo geral, quais as principais transformações históricas ocorridas no campo religioso brasileiro nos últimos cem anos?
Artur Cesar Isaia - Nestes últimos cem anos, tanto o campo religioso rio-grandense quanto o nacional foram marcados por um acentuado aumento de sua complexidade. A obviedade de uma sociedade católica cedeu lugar a uma crescente disputa, justamente àquilo que está presente na ideia de campo defendida por Bourdieu, ou seja, uma economia de forças religiosas marcadamente tencional. Considero que uma das características mais marcantes na modificação da fisionomia religiosa nestes cem anos foi o avanço do chamado “neopentecostalismo”, capaz de fazer frente tanto ao catolicismo quanto ao protestantismo histórico, ao espiritismo e às religiões afro-brasileiras.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
100 anos depois: a mudança radical da Igreja gaúcha. Entrevista especial com Artur Cesar Isaia - Instituto Humanitas Unisinos - IHU