03 Abril 2009
Isabela Camini há 18 anos acompanha o processo de educação de filhos de sem-terra que acompanham o MST. Ela ajudou a construir as escolas itinerantes e, por toda essa experiência, resolveu pesquisar, em sua tese, o processo de funcionamento, de educação, de formação das escolas itinerantes do MST. Assim, apresentou em março, na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, o trabalho Escola Itinerante dos Acampamentos do MST – Um contraponto à escola capitalista? Dias antes, o Ministério Público Estadual tinha emitido um decreto fechando todas as escolas itinerantes do estado, uma vez que, segundo o juiz que entrou com o pedido, estava processando uma influência ideológica nas crianças. No dia da sua apresentação, Isabela viu-se surpreendida pela manifestação organizada pelos sem-terrinhas, uma forma de agradecer que ela era uma pessoa que estava, junto com eles, na luta pela vigência da sua escola.
“A experiência foi fantástica porque me deu a oportunidade de reeducar o meu olhar sobre esta realidade e também para experimentar a importância de entranhar a pesquisa com a vida”, contou ela à reportagem da IHU On-Line, por e-mail, nesta entrevista sobre a pesquisa feita por Camini.
Isabela Camini é formada em Pedagogia, pela Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões. Tem especialização em Sociologia da Educação, pela Universidade do Oeste de Santa Catarina. Na UFRGS, realizou mestrado e doutorado em Educação. Atualmente, trabalha no Instituto Técnico de Capacitação e Pesquisa da Reforma Agrária.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Como foi fazer esta pesquisa em que a senhora tratou das escolas itinerantes do MST? Que motivações levaram a senhora a estudar as escolas desse movimento?
Isabela Camini – Eu venho acompanhando o processo de educação do MST já há 18 anos, estudando e ajudando a construir esse projeto. Também tenho me dedicado a acompanhar desde a criação das escolas itinerantes aqui no Rio Grande do Sul e também orientei a criação das escolas itinerantes no Paraná, Santa Catarina, Goiás e Piauí.
A experiência foi fantástica porque me deu a oportunidade de reeducar o meu olhar sobre esta realidade e também experimentar a importância de entranhar a pesquisa com a vida. Até porque pesquisei uma realidade que também ajudei a construir. Inexiste, hoje, outra experiência de escola como esta. A minha intenção era dar visibilidade para este tipo de escola muito diferente da escola usual e queria qualificar a nossa participação da luta pela escola dentro de um movimento social.
IHU On-Line – A apresentação do seu trabalho foi marcada por manifestações, uma vez que dias antes o Ministério Público do Rio Grande do Sul proibiu a continuidade dessas escolas. Como a senhora vê isso?
Isabela Camini – Eu não sabia da manifestação. Foi uma surpresa para mim. Recebi flores das crianças, que vieram me agradecer por ter defendido a sua escola em tese na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Os sem-terras sempre se manifestaram e se rebelaram quando estavam em desacordo com algo, como é o caso do fechamento das suas escolas. O MST luta para conquistar direitos e, ainda, para mantê-los e, depois, ainda precise para que não lhes roube a dignidade de continuar lutando.
IHU On-Line – Como a senhora vê o fechamento das escolas do MST?
Isabela Camini – Esse é um grande equívoco. Foi uma atitude autoritária para atingir o MST de frente e impedir a luta pela Reforma Agrária. É possível que hoje centenas de jovens e crianças poderiam estar vivendo embaixo das pontes, nas ruas e nas praças dos grandes centros urbanos caso não tivessem encontrado o MST. Nossa questão é: por que é visto como problema que os jovens se integrem no movimento e lutem pela terra, pela escola e pela dignidade?
IHU On-Line – Quais são os principais destaques desse formato de escola?
Isabela Camini – Primeiro é porque esta escola é itinerante. Ela vai aonde está o povo, se desloca e acompanha a luta. Esta é uma das grandes diferenças em relação às escolas tradicionais. A segunda questão é que ela não se fecha atrás dos muros como a maioria das escolas urbanas faz. É uma escola que está dentro de um acampamento, ou na beira da estrada ou na frente de um prédio público, mas ela não precisa ficar fechada dentro de quatro paredes para as crianças poderem estudar.
IHU On-Line – As escolas itinerantes têm 12 anos. Que aspectos ainda precisam ser melhorados?
Isabela Camini – A minha tese traz a experiência da escola itinerante no Rio Grande do Sul e no Paraná. Eu diria que, no Rio Grande do Sul, quase tudo tem que melhorar no que diz respeito à responsabilidade do papel do Estado. A estrutura cívica da escola, os materiais escolares, a merenda, o pagamento dos educadores, a biblioteca, a formação dos educadores, desde o início, funcionou. Nos últimos seis anos, o estado abandonou esta política pública. No que diz respeito à pedagogia, o grande desafio é construirmos uma escola vinculada à vida dessas pessoas e não uma escola distanciada. Eu diria, como Paulo Freire, que se deve construir uma escola onde as crianças gostem de estar e não tenham medo de serem excluídas,
IHU On-Line – Qual é o perfil do professor das escolas itinerantes?
Isabela Camini – Os educadores que hoje atuam são todos vinculados ao MST. São jovens, homens e melhores, e a grande maioria cursou ou está cursando o Ensino Médio, curso superior e alguns têm pós-graduação. Eles são formados pela escola convencional, mas também estão nos cursos de pedagogia proporcionados pelo MST em parceria com universidades federais.
IHU On-Line – O componente ideológico das escolas itinerantes traz diferenças na forma como as crianças aprendem?
Isabela Camini – Na verdade, quando os trabalhadores dos movimentos sociais lutam por uma escola para atender a sua categoria, geralmente o que é trabalhado é considerado e julgado como ideológico. Eu, por exemplo, na minha tese, estudei a escola capitalista desde o século XV até hoje. A partir disso, fica claro que as concepções e práticas da escola pública estadual, durante toda esta época, são altamente ideológicas. Portanto, a escola itinerante tenta contrariar, questionar este formato de escola que prepara muito mais para obedecer do que para pensar, planejar, se autoorganizar e aprender, sobretudo, a construir uma sociedade onde não haja opressores e oprimidos. Eu diria que se nós somos condenados por trabalhar ideologicamente nas escolas, e eu não vejo assim, eu perguntaria por que as escolas capitalistas não são questionadas por seus conteúdos? Ela trabalha para reproduzir a sociedade capitalista, aquela que a burguesia quer que se perpetue.
IHU On-Line – A senhora percebeu diferenças na formação das crianças que frequentaram as escolas itinerantes em relação àquelas que estudaram nas escolas tradicionais?
Isabela Camini – A grande diferença é que a criança aprende, se educa para ser livre, para não ser oprimida. Portanto, automaticamente, ela vai alimentar o desejo dessa sociedade livre sem oprimir outras pessoas. No que diz respeito aos conteúdos, me surpreendia muito, porque quem me recebia nos acampamentos realmente eram as crianças, porque elas sempre me perguntavam o que mesmo eu queria nos acampamentos. Eu vi essas crianças fazerem questões, em relação ao conhecimento historicamente acumulado, que eu não vejo crianças de outras escolas fazerem. A grande diferença é que nossas crianças estão numa comunidade convivendo com o embate e o desafio da própria luta e esta escola que frequentam não é uma escola que se separa da sua vida. Por isso, sua formação é muito diferente.
IHU On-Line – É possível manter as escolas itinerantes sem verbas?
Isabela Camini – O direito à escola é uma obrigação do estado ou da nação. Portanto, o Ministério Público e a Secretaria de Educação, de forma autoritária, retiraram o direito das crianças de estudarem nos acampamentos. As escolas itinerantes continuam funcionando. A grande maioria das crianças não foram matriculadas nas escolas urbanas porque não aceitaram entrar num ônibus de qualidade duvidosa, viajar, às vezes, até 80 quilômetros do acampamento para buscar escola. Então, as escolas continuam tendo aula nos acampamentos. Não há condições de as escolas itinerantes continuarem funcionando nos acampamentos sem que o estado cumpra o seu papel, embora ele viesse negando o seu papel já há seis anos, quando não pagava os educadores, não mandava merenda escolar, não mandava lonas. Agora, quando retira o direito, evidentemente que a pretensão do MST é continuar lutando para que o MP e a Secretaria de Educação revejam o documento que tirou o direito das crianças estudarem no local onde estão.
IHU On-Line – A educação pública brasileira está em crise?
Isabela Camini – Sim. A educação brasileira não só está em crise como ela vem enfrentando uma crise há muito anos. A educação brasileira, penso eu, não é um projeto educativo, não há um projeto de educação público e estadual no Brasil. Há iniciativas em algumas regiões, mas se enfrenta problemas na formação dos educadores, que é feita pelas universidades. Há problemas porque a educação é vista como um trabalho muito missionário. Qualquer outra profissão hoje tem um reconhecimento muito maior do que os professores têm hoje no Brasil. É evidente que a educação está em crise por tudo isso. As pessoas estão fugindo da escola porque além de ser um espaço exigente, este espaço está adoecendo muito os professores.
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"A escola itinerante vai aonde está o povo, se desloca e acompanha a luta". Entrevista especial com Isabela Camini - Instituto Humanitas Unisinos - IHU