22 Fevereiro 2009
Há dois anos uma tragédia assolou o Rio dos Sinos, vitimando não somente toneladas e mais toneladas de peixes, como também a qualidade da água da qual depende parte da região metropolitana de Porto Alegre e o Vale do Rio dos Sinos, como também o mais importante pólo econômico do Rio Grande do Sul. E o que mudou? A Romaria da Terra de 2009, cujo tema é “Água, sangue da terra”, pretende fazer com que possamos relembrar esse episódio e discutir tanto nossos diretos como nossos deveres na defesa da vida do rio. A IHU On-Line conversou com o professor e bioquímico Jackson Müller, com o presidente do Instituto Martim Pescador Henrique Prieto e com uma das organizadoras da 32º Romaria da Terra, Terezinha Sallet Ruzzarin, sobre o Rio dos Sinos, suas condições atuais, as perspectivas para a garantia da qualidade das suas águas e vidas que ali habitam e também sobre a programação do evento que lembra a importância dos rios. As três entrevistas foram realizadas por telefone.
Jackson Müller é mestre em Bioquímica, pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, e atualmente professor da Unisinos. Atuou como secretário do Meio Ambiente de Novo Hamburgo e como diretor técnico da Fepam, de 2005 a 2006.
Terezinha Sallet Ruzzarin faz parte da coordenação estadual da Comissão Pastoral da Terra e atua na organização desta Romaria da Terra.
Henrique Prieto, por sua vez, é presidente do Instituto Martim Pescador. Nas últimas eleições municipais, foi eleito vereador pela cidade de São Leopoldo.
Confira as entrevistas.
IHU On-Line – Dois anos depois daquela grande tragédia que vitimou tantos peixes no Rio dos Sinos, qual é a realidade dele hoje?
Jackson Müller – Nós temos acompanhado de perto a situação do rio ao longo desses dois últimos anos, fazendo tanto visitas a campo quanto um trabalho de acompanhamento e monitoramento desenvolvidos pelos órgãos de controle. O que temos visto é que o rio apresentou uma reação positiva. Verificamos uma frequência bastante expressiva de peixes que sobem o rio na época da desova. Esse é o lado positivo daquilo que viemos acompanhando. O lado negativo é que ainda continuam colocando redes no período da piracema. Ou seja, se, por um lado, nós temos um processo de recuperação e regeneração da biodiversidade do rio, por outro, temos um componente cultural ainda muito presente, ou seja, a realização de pesca predatória quando deveríamos estar protegendo as espécies. Outro fator que nos preocupa é que essa questão da disponibilidade da água em função dos usos múltiplos da bacia do Rio dos Sinos ainda é preocupante. Nesse período do verão, já tivemos pelo menos três episódios com risco de desabastecimento, principalmente para o município de São Leopoldo. Essa situação ainda não foi enfrentada pelos governos no sentido de coibir o uso exagerado de água na posição das nascentes ou na posição superior do rio, pois a capacidade de recuperação do rio nesse período que vai de outubro até abril é crítica.
IHU On-Line – Quais são os locais com situação mais complicada?
Jackson Müller – Nós temos uma situação bem distinta nos três trechos do rio. Podemos dividir a bacia em trecho superior – que vai do município de Caraá até Santo Antonio da Patrulha –, em trecho médio – que vai de Taquara até Campo Bom –, e em trecho inferior – que vai de Campo Bom até Canoas. Percebemos que, na ponta de cada trecho, há atividades distintas que geram impactos diferentes à bacia. Vou dar alguns exemplos: na porção alta, temos o uso de agrotóxicos, situações envolvendo o desmatamento, corte da mata ciliar que protege as beiras dos rios e arroios. Esse impacto é diferente do impacto que encontramos de Taquara para baixo. Aqui na região entre Campo Bom, Sapiranga, Novo Hamburgo, São Leopoldo, Canoas, temos um efeito gerado por esgotos não tratados que é muito mais preponderante em função do fato de que concentramos nessa região um contingente populacional bastante expressivo. Essa diversidade de situações faz com que o rio sofra diversos tipos de agressão ao longo do seu curso. Outro efeito que percebemos em relação ao rio é o descaso por parte da população em relação ao lixo. Quando você percorre o Rio dos Sinos de barco, verá que é impressionante o que se consegue ver de lixo pendurado em árvores, de ilhotas de lixos. Parece que existe um distanciamento por parte da sociedade. Eu tenho dito que, depois do cano e da torneira, essa relação entre o rio e a sociedade de consumo ficou muito mais distante. A mortandade de 2006 ainda não foi assimilada como um marco decisório para a mudança de comportamento da sociedade em relação ao Rio dos Sinos. Uma parcela significativa dessa sociedade ainda está de costas para o Rio dos Sinos.
IHU On-Line – Uma nova tragédia como aquela pode voltar a acontecer?
Jackson Müller – Nunca se está livre de um fenômeno como aquele. Mas é preciso dizer que o foco principal que gerou a mortandade hoje está sob intervenção judicial. Essa atividade não gera mais o impacto que foi constatado em 2006. Estamos falando da Utresa (1). Não se afasta por completo a possibilidade de uma nova tragédia, mas uma condição similar àquela fica mais distante na medida em que houve um endurecimento dessas fontes de poluição que contribuíram para esse fenômeno.
IHU On-Line – Podemos ainda ter esperanças em relação ao Rio dos Sinos?
Jackson Müller – Precisamos sempre ter esperanças nesse sentido. O Rio dos Sinos é muito bonito. É o rio da vida de todos os moradores dos 32 municípios que compõem a nossa bacia hidrográfica. Ele precisa do nosso carinho, do nosso compromisso cidadão, para que possamos também exigir das autoridades competentes as medidas necessárias para reverter esse quadro que o Rio dos Sinos vive. O Rio dos Sinos é lindo, pujante e teimoso, pois continua insistindo em nos oferecer um recurso muito precioso que é a água. Muitas vezes, a sociedade descomprometida, descuidada, não presta atenção nisso e só devolve para o rio o resto do seu consumo, o esgoto não tratado, o lixo. Mas eu acho que podemos superar isso, com a participação da sociedade, gerando um debate continuado e fazendo com que as estruturas se voltem para o rio, e assim superaremos as dificuldades que já vivemos.
IHU On-Line – E como o senhor vê, hoje, a atuação da Fepam?
Jackson Müller – Parece que esse órgão vem sofrendo de um processo crônico de perda de capacidade para enfrentar os grandes desafios que nós temos aqui. Alardeia-se a todo o momento a abertura de concurso para suprir as vagas abertas ao longo do tempo que foram sendo geradas pelo abandono dos profissionais que atuavam nessa área e foram procurar outros campos de atuação. O salário é baixo e desmotivador, as dificuldades pelas quais o órgão passa são muitas, desde questões estruturais, envolvendo viatura, barco, sobrevoos. Temos um universo de atividades efetivas ou potencialmente poluidoras muito grande. É preciso se intensificar a relação responsável com a Federação das Indústrias, com os sindicatos, com o comércio. O órgão ambiental passou uma dificuldade tão grande, esperando, inclusive, uma normativa mais rigorosa, para que se possa reduzir o impacto. Fica claro que a questão ambiental ainda não foi assimilada como uma estrutura fundamental para o desenvolvimento do estado. Muito pouco se faz para sairmos desse cenário anacrônico que vivemos há vários anos na questão ambiental do Rio Grande do Sul. Ainda temos uma imaturidade administrativa, político-partidária, que gera uma descontinuidade extremamente prejudicial para o sucesso da recuperação, proteção e da promoção do meio ambiente.
Percebo que o órgão de proteção estadual vive uma crise de falta de valorização da importância que a proteção ambiental tem para o desenvolvimento econômico. Essa é uma situação generalizada no estado e no país, onde a estrutura ambiental só entra para fornecer licenciamento, quando as partes de gestão, recuperação e investimento na qualidade ambiental são muito pequenas. Os números apresentados são simplesmente deprimentes. Veja só o que aconteceu agora com a Metade Sul do estado: em dois dias, choveu 247 litros por metro quadrado na metade sul do estado, atingindo os municípios de Pelotas e São Lourenço do Sul. E o que fizemos para evitar que esses fenômenos viessem nos assolar com essa intensidade e com a gravidade que atingiram aquela região e outras também, como Santa Catarina, que viveu aquela tragédia que ceifou centenas de vidas? Esses efeitos que estão aparecendo hoje na sociedade dizem respeito às sucessivas despreocupações, falta de compromisso com políticas públicas ambientais continuadas. Não temos dinheiro suficiente para que a cada quatro anos tenhamos que começar tudo de novo. É preciso uma ação integrada em prol da melhoria ambiental.
IHU On-Line – Por que relembrar o desastre no Rio dos Sinos dois anos depois?
Terezinha Sallet Ruzzarin – Se lembrarmos da história dessa questão do Rio dos Sinos, perceberemos que até hoje ninguém foi criminalizado nem responsabilizado. Isso é importante lembrar, pois existiram culpados. Existiram culpados? Existiram. O que foi feito com eles? Nada. O que a sociedade deve fazer ou pensar diante disso?
IHU On-Line – Como a Romaria da Terra pretende chamar a atenção dos cristãos e também de toda a população para a realidade do Rio dos Sinos?
Terezinha Sallet Ruzzarin – Na realidade, não é apenas o Rio dos Sinos que se encontra nesse problema. Quase todas as águas do Rio Grande do Sul, salvo raras exceções, estão vivendo esse problema do descaso, da população, do lançamento dos resíduos industriais. Aliás, as indústrias veem os rios como uma forma de acúmulo de capital, pois elas simplesmente jogam seus resíduos ali sem tratamento algum, ou seja, sem custo. Para os poderes públicos, qual é o comprometimento deles em servir água para a população? Eles sabem se a água é ou não de boa qualidade? Precisamos questionar essas ações. A Romaria da Terra, sendo um espaço de denúncia, faz isso e, com isso, temos a intenção de comprometer o cristão para que ele faça uso daqueles instrumentos que têm para cobrar. Se a água é um recurso público significa que ela é de todos nós, mas por que não temos a vez e a voz para reclamar da qualidade dessas águas? A discussão é feita somente por dois ou três cabeças pensantes, os “iluminados” que decidem entre si e nós somos praticamente obrigados a acatar. Onde está o nosso poder, enquanto cidadãos, de denunciar, o nosso direito de exigir? Por isso, a CPT e a Romaria da Terra estão levantando essa questão. Precisamos entender nossos direitos e nossos deveres. Um deles é reclamar sobre este tema.
IHU On-Line – A senhora pode nos contar um pouco mais sobre a programação para a Romaria da Terra?
Terezinha Sallet Ruzzarin – No dia 24, na próxima terça, em torno das 7h30min, começaremos a receber os romeiros e as romeiras para dar as boas-vindas. A concentração será na Igreja Sagrada Família, em Sapucaia. É ali que Dom Dadeus Grings abrirá oficialmente a Romaria da Terra, junto com as autoridades locais do município. Depois, em torno das 9h, começaremos a caminhada. São cerca de dois quilômetros até o Parque Pesqueiro, no bairro Carioca, exatamente na margem do Rio dos Sinos, onde o crime aconteceu. Chegando lá, irá acontecer a celebração ecumênica, a doação de alimentos e o almoço e, às 13h, iniciam os festejos com caráter cultural. Cerca de 15h, então, se anuncia onde vai acontecer a próxima Romaria e às 16h se dá a bênção de envio e encerramos a Romaria.
IHU On-Line – Como a Romaria da Terra ajuda a salvar o Rio dos Sinos?
Henrique Prieto – Através da conscientização. Milhares de pessoas participarão dessa manifestação social e ecológica. Nós tivemos uma audiência com os coordenadores e vamos participar com uma exposição sobre o crime ecológico que ocorreu há dois anos e com o barco Martim Pescador. Além disso, um dos nossos biólogos fará uma exposição sobre a situação do Rio dos Sinos e falará também sobre as responsabilidades da sociedade, assim como a recuperação do rio e como isso contribui para a melhora da qualidade de vida de cada cidadão que depende dele.
IHU On-Line – Como o senhor analisa a situação atual do Rio?
Henrique Prieto – Desde a tragédia, praticamente, não mudou nada no rio. Houve providências e medidas que, de certa forma, estão amenizando a situação do rio. Em termos de melhoria da água não aconteceu grande coisa. O maior mérito dessa tragédia foi a conscientização que ela provocou, nas últimas eleições municipais ficou claro que alguma coisa precisa ser feita logo. O consórcio, que hoje reúne 22 municípios, ajudou na execução das medidas que visam recuperar a bacia do Rio dos Sinos, começando com a recuperação dos arroios. Esse consórcio foi liderado pelo prefeito Ary Vanazzi, de São Leopoldo, e teve aceitação de quase todo o Vale. Outro aspecto importante também diz respeito ao Arroio Portão, o grande causador da tragédia. Houve uma intensificação da fiscalização nos municípios de Portão e Estância Velha, onde as principais empresas poluidoras se situam. O Ministério Público também mostrou bom trabalho na fiscalização e no julgamento dos responsáveis pela tragédia, apesar de que de concreto ainda não temos nada, ou seja, nenhuma decisão definitiva no sentido de responsabilizar os causadores da tragédia.
IHU On-Line – Uma nova tragédia como aquela pode voltar a acontecer?
Henrique Prieto – Pode sim, mas é difícil porque ela já foi terrível. Em termos hidrográficos, o rio não mudou, mas certamente o causador da tragédia não seria o mesmo, porque a Utresa melhorou bastante a sua qualidade de tratamento e sua preocupação com o meio ambiente. Se houver seca acentuada e depois uma grande precipitação absurda, certamente teremos uma nova mortandade de peixes ainda esse ano. Infelizmente, precisamos admitir que isso faz parte do sistema hidrográfico do Rio dos Sinos.
IHU On-Line – Mas ainda há esperanças para o Rio dos Sinos?
Henrique Prieto – Nós vamos conseguir salvar o Rio dos Sinos. Qem sabe nossos netos verão uma outra realidade. No ano passado, quando fui à Holanda, onde tive a oportunidade de ver o que fizeram com o rio Tamisa, que antes era insustentável e hoje tem diversas espécies de peixes. Se houver vontade política, recursos e conscientização, poderemos recuperar, sem dúvida alguma, o Rio dos Sinos.
Nota:
1.- Utresa: empresa que presta serviço terceirizado de tratamento de efluentes das indústrias de couro localizadas na região do Vale dos Sinos. (Nota da IHU On-Line)
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Em defesa das águas. O Rio dos Sinos hoje, dois anos depois da tragédia. Entrevistas especiais com Jackson Müller, Henrique Prieto e Terezinha Sallet Ruzzarin - Instituto Humanitas Unisinos - IHU