17 Agosto 2008
“Toda informação relacionada à interrupção da gravidez é muito difícil de ser conseguida aqui no Brasil. Nós não temos ainda informações que possam realmente nos dizer qual é a realidade das mulheres que abortam hoje no país, inclusive em casos de anencefalia. Muitas podem estar, neste momento, tentando um aborto clandestino por terem dificuldade a um acesso público, de segurança, gratuito e de qualidade”, afirma Paula Viana. Em entrevista concedida por telefone à IHU On-Line, Viana analisou a questão da escolha pelo aborto em caso de anencefalia. Este assunto será tema principal de três audiências que serão promovidas no final deste mês pelo Supremo Tribunal Federal, onde serão ouvidos representantes da Igreja, da área da medicina e da sociedade organizada.
Paula Viana é enfermeira e coordenadora do Grupo Curumim.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Qual é a sua opinião sobre o direito de abortar em caso de feto anencéfalo?
Paula Viana – O mais importante, diante dessa delicada realidade, é que seja criada uma regulamentação nos serviços de saúde vinculados à universalidade e eqüidade do Sistema Único de Saúde [1], capaz de garantir às mulheres o direito de escolher entre prosseguir com a gravidez ou interrompê-la a qualquer momento. Essa decisão deve ser de cada mulher e deve se considerar que a conclusão tomada é feita num momento de bastante aflição, de muitos medos, uma vez se trata de uma situação que põe em risco toda a sua saúde (emocional e física). Por isso, nós acreditamos que o direito de dar segurança às mulheres deve ser garantido no Brasil.
Dados sobre interrupções de gestações
Toda informação relacionada à interrupção da gravidez [2] é muito difícil de ser conseguida aqui no país. Não temos ainda informações que possam realmente nos dizer qual é a realidade das mulheres que abortam hoje no país, inclusive em casos de anencefalia. Muitas podem estar, neste momento, tentando um aborto clandestino por terem dificuldade a um acesso público, de segurança, gratuito e de qualidade. Existem estimativas em relação aos abortos, mas especificamente em casos de anencefalia, não. E só temos acesso aos dados que o DATASUS fornece em relação às gestações interrompidas por decisão médica. Por conta disto, o estigma e a ilegalidade do aborto no Brasil é a subinformação. Então, hoje nós não temos a informação de quantos abortos por anencefalia são feitos realmente.
IHU On-Line – O caso da menina Marcela, diagnosticada com anencefalia, que viveu um ano e oito meses, pode influenciar de que forma a audiência pública que o Supremo Tribunal Federal pretende fazer neste mês?
Paula Viana – Eu quero crer que não, porque realmente a vida em caso de anencefalia não é possível. E também não foi possível neste caso. A meu ver, a mãe precisa tanto o direito de não interromper a gestação e, assim, receber – ela e o bebê – toda a assistência necessária, quanto o direito de não prolongar esse sofrimento. É muito raro acontecer o que ocorreu com a menina Marcela. Em geral, as mulheres orientadas, informadas e completamente conscientes tendem a querer não prolongar esse sofrimento.
Atendimento psicológico
O atendimento psicológico precisa ser muito próximo. É preciso ter um seguimento, principalmente pela atenção básica que possui, dentro de seus princípios, essa proximidade maior com a usuária. Quando falei em regulamentação nos serviços de saúde, incluo este contexto. A mulher deve ter esse atendimento de forma contínua, um atendimento em que não precise se deslocar muito para recebê-lo. Ela precisa de avaliação médica sistemática, porque más formações incompatíveis também geram risco à sua saúde. E, se ela já tem um problema preexistente, o acompanhamento precisa ser mais aprofundado. Tudo isso estaria contemplado dentro de uma regulamentação, e o Supremo deve considerar que com isso vamos diminuir o sofrimento, a morte, as seqüelas que uma situação como essa possa acarretar. Eu pude acompanhar três mulheres que passaram por esse tipo de gestação. Todas elas se sentiram totalmente acolhidas e seguras da decisão, mesmo com muito sofrimento e dor para chegar à conclusão de que queriam interromper a gravidez porque seu feto era anencefálico.
IHU On-Line – E como você analisa o debate que está sendo promovido pelo STF?
Paula Viana – As audiências foram marcadas para o final de agosto. Ocorrerão três audiências antes de o STF tomar uma decisão. O Supremo está contemplando as diversas visões de representantes de diferentes lugares da ciência, da medicina, da sociedade. Acredito que o STF irá, sim, conduzir esse processo de uma forma que possamos realmente garantir o direito humano da mulher que escolhe interromper a gravidez, caso seu feto possua uma má formação incompatível com a vida. Nós estamos confiantes. Estamos vivendo um processo democrático muito interessante no Brasil. Acho que esse será um passo importante para a democracia.
IHU On-Line – De alguma forma, o resultado da audiência pública sobre as células-tronco pode influenciar no resultado desta nova audiência?
Paula Viana – Sim, pode. Eu não sou uma especialista nesse assunto, mas existe hoje um processo democrático acontecendo. Essas três audiências demonstram isso. Há uma construção também de uma nova percepção da realidade atual. Temos um código penal que está defasado, além de leis que não representam o que a sociedade contemporânea quer. O Supremo possui o papel importante de avistar onde a sociedade não está sendo contemplada. Por isso, eu acredito que haja uma construção importante em andamento. A decisão sobre as células-tronco foi um passo substancial para esse entendimento.
IHU On-Line – Esse debate que o STF promoverá será mais técnico e ouvirá cientistas, religiosos e a comunidade em geral, não convidando pais de anencéfalos em especial. Como você avalia que esse debate se dará?
Paula Viana – Acredito que o papel da imprensa, da universidade e dos órgãos de classe é o de colocar esse debate para sociedade. É importante saber o que se passa nesse processo de decisão dentro da família, em relação às mulheres. A audiência quer ser o espelho do que a sociedade vem pensando hoje. Já temos alguns produtos de comunicação – vídeos, documentários etc. – que demonstram a opinião da sociedade e o quanto é importante escutar as pessoas que podem passar por isso. Acredito, também, que essa audiência será mais um momento interessante para o debate. Além disso, nós, da sociedade organizada, da imprensa e da academia, também temos esse papel de abrir essa discussão e mostrar mais a realidade acerca de alguns assuntos vistos como intocáveis.
IHU On-Line – No Brasil, o aborto é um assunto bastante delicado. No entanto, cada vez mais juízes têm se sensibilizado às demandas das mulheres que desejam interromper sua gravidez em caso de anencefalia. Como a senhora analisa este contexto?
Paula Viana – Vivemos um contexto um pouco difícil. Há juízes que entendem essa situação e respeitam a decisão da mulher, ao mesmo tempo em que há um legislativo com muita influência de igrejas e esse debate, dentro deste espaço, não está caminhando para o lado técnico, científico e vivencial, ou seja, o que é a realidade do aborto hoje no Brasil. Temos um dado que diz que são feitos cerca de um milhão e cem mil abortos inseguros ao ano no Brasil, revelando que o aborto faz parte do cotidiano das mulheres em idade reprodutiva. Elas vivem o tempo toda essa situação de decisão reprodutiva. De quatro anos para cá, o debate acerca deste assunto aumentou dentro da sociedade e é possível vê-lo avançar, mas com muita dificuldade.
Notas:
[1] Confira a Revista IHU On-Line de 02-06-2008, intitulada SUS: 20 anos de curas e batalhas.
[2] Confira a Revista IHU On-Line de 14-05-2007, intitulada O aborto em debate.
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Aborto: "Uma realidade para toda mulher em idade reprodutiva’. Entrevista especial com Paula Viana - Instituto Humanitas Unisinos - IHU