13 Julho 2008
Os noticiários brasileiros estão repletos de relatos sobre a violência. No entanto, a polícia é vilã nessas notícias apenas quando a vítima é alguém de classe média. É a partir daí que o papel da polícia é revisto e julgado. Todos os dias, repressões violentas são feitas por ela nas favelas e periferias dos grandes centros urbanos brasileiros, o que é aplaudido pela sociedade que está fora desse espaço. “Quando uma polícia violenta é aplaudida, ou seja, quando ela entra nas favelas atirando e fazendo mega-operações e recebe aplausos, para mim claramente o que está em questão é um problema de classes na sociedade, são os meios de comunicação e os setores médios da sociedade achando que os problemas da violência se resolvem quando os cães ferozes se colocam contra os pobres”, analisa a professora Silvia Ramos.
Em entrevista concedida por telefone à IHU On-Line, Ramos reflete sobre a atuação da polícia brasileira, sobretudo a polícia fluminense. Ela acredita que uma reforma no setor de segurança pública é necessário, pois esta questão não ficou bem resolvida na Constituição de 1988. “Na Constituinte de 1988, esse tema foi praticamente intocado e deixamos como era durante a ditadura”, disse.
Silvia Ramos é graduada em Psicologia e mestre em Psicologia Clínica, pela PUC-Rio, e doutora em Saúde Pública, pela Fundação Oswaldo Cruz. Atualmente, é pesquisadora do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESEC). Também é autora de Elemento suspeito: abordagem policial e discriminação na cidade do Rio de Janeiro (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005) e Mídia e violência: novas tendências na cobertura de criminalidade e segurança no Brasil (Rio de Janeiro: Iuperj, 2007), entre outros livros.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – A polícia brasileira pode ser confundida com uma milícia? O que justifica isso?
Silvia Ramos – Não. As milícias são polícias paralelas. Os policiais, ex-policiais e membros e ex-membros das Forças de Segurança em geral têm tradicionalmente participação em grupos paralelos, como grupos de extermínio, de justiceiros, capangas, e também as milícias. De fato, todos esses fenômenos dão conta de basicamente duas situações: por um lado, há a inexistência de controles internos dentro das polícias; por outro, existe a ausência do poder do Estado. Isso porque tais fenômenos acontecem ali onde o Estado não está presente com policiamento efetivo e normal. Essas são as relações que se poderia fazer entre o surgimento das milícias e os fenômenos de uso da força por parte das polícias.
IHU On-Line – Nos últimos dias, algumas notícias envolvendo o campo da defesa chocaram o país. Podemos falar em crise das instituições de defesa civil?
Silvia Ramos – Eu acho que sim. De certa forma, embora o caso do Rio de Janeiro seja um caso grave, não se pode dizer que o que acontece nesse estado ocorre em outros estados do Brasil. Ao contrário, em alguns, como São Paulo e Minas Gerais, a polícia tem sido capaz de diminuir a violência, aumentar o controle, fazer alto treinamento e melhorar a qualificação dos policiais. Os fenômenos que vimos no Rio de Janeiro expressam aspectos relacionados às crises relacionadas às Forças de Segurança em geral. Nelas, incluiríamos as polícias civil e militar, as Forças Armadas, as guardas municipais, além da Polícia Federal. Então, eu diria que, de fato, o Brasil vive uma crise relacionada às Forças de Segurança porque eu acho nunca pensamos muito nesse assunto. No Brasil, foram realizadas reformas na saúde, na educação, em setores de políticas públicas. No entanto, a segurança pública foi o setor mais abandonado. Na Constituinte de 1988, esse tema foi praticamente intocado e deixamos como era durante a ditadura. De um modo geral, quando pensamos em modelo de polícia que queremos para nossas sociedades, formadas por grandes centros urbanos complexos, eu diria que o caso do Rio de Janeiro é uma metáfora exagerada. Teremos de enfrentar, mais cedo ou mais tarde, aspectos referentes à democratização radical e à reforma profunda das polícias brasileiras.
IHU On-Line – A violência cresce cada vez mais principalmente nas zonas mais pobres das grandes cidades. A violência é a marca efetiva da ausência de um espírito de vida?
Silvia Ramos – Essa pergunta é muito difícil de responder. Tudo indica que o que chamamos de violência urbana normal, referente à criminalidade, que são os crimes contra o patrimônio e a vida de várias modalidades, chegando aos crimes mais graves (os homicídios, crimes que mais chocam), tem dinâmicas muito complexas e diversas. Não é possível, por isso, pensar numa causa única. Mas de fato é possível afirmar, no caso brasileiro, que nos grandes centros urbanos, principalmente em suas zonas periféricas, ou seja, nas favelas e zonas empobrecidas brasileiras, se concentram as principais tragédias relacionadas à violência. As taxas de homicídio no Brasil são eloqüentes em relação à sua concentração por faixa etária. As vítimas de homicídios são principalmente jovens, e 90% são rapazes, a maioria com baixa renda e baixa escolaridade. Há uma característica da vitimização e dos autores com características parecidas. A meu ver, o Brasil foi lento para responder às questões da violência urbana porque esta, por muitos anos, atingia os setores menos visíveis, mais pobres e geograficamente mais isolados. Na medida em que a violência começou a atingir também as classes médias e as áreas mais ricas das grandes cidades, ela se tornou mais presente na agenda do Brasil. Podemos dizer que onde há muitas desigualdades e, sobretudo, muitos jovens que têm um acesso midiático a todos os bens, benefícios e oportunidades que a vida e o mundo moderno oferecem sem ter um acesso real a elas, parece existir, sim, uma relação entre essas dinâmicas. Se, por um lado, não é possível explicar as causas da violência com um único motivo, por outro, é possível associar violência urbana e essas características que detalhei. Arendt [1] dizia que a violência dramatiza causas: é assim que podemos traduzir os problemas modernos e complexos do mundo contemporâneo.
IHU On-Line – Para que possamos compreender esses atos violentos por parte da polícia e até o apoio a esses atos por parte da sociedade civil, como a senhora analisa a valorização da vida?
Silvia Ramos – Nesse caso, quando uma polícia violenta é aplaudida, ou seja, quando ela entra nas favelas atirando e fazendo mega-operações e recebe aplausos, para mim claramente o que está em questão é um problema de classes na sociedade, são os meios de comunicação e os setores médios da sociedade achando que os problemas da violência se resolvem quando os cães ferozes se colocam contra os pobres. Parece que esse aplauso expressa a face mais perversa da sociedade brasileira. Quando a mesma polícia entra atirando na favela e mata três ou quatro bandidos e fere uma criança, isso quase não é mostrado. No entanto, se a criança é de classe média e estava numa rua da cidade não localizada na periferia, o fato provoca uma comoção. Claramente, há aí um problema de perspectiva de classe. A opinião pública, a mídia, a classe média e a polícia tratam as favelas e periferias do Brasil como se tratava antes as senzalas, ou seja, toda a arbitrariedade pode acontecer nelas. No entanto, quando acontece na minha porta, eu reclamo.
IHU On-Line – A sociedade civil tem se manifestado a favor da repressão para combater a violência. No entanto, atos de repreensão por parte da polícia têm se mostrados desastrosos. O que é preciso para combater a violência civil e policial?
Silvia Ramos – A ação da polícia do Rio de Janeiro – entrar atirando nas favelas para depois perguntar quem de fato ali é bandido – não pode culpabilizar simplesmente o policial. É muito fácil chamar este de débil mental, como fez o governador do Rio de Janeiro, afinal nós colocamos sempre a culpa no outro. O problema é que este governador tem estimulado uma determinada política de segurança que é a política do confronto. Está na hora de repensarmos a nossa política.
IHU On-Line – A polícia brasileira está preparada para defender a população?
Silvia Ramos – Seria injusto fazer uma observação única sobre toda a polícia. Eu tenho visto, em alguns lugares do Brasil, policiais que me surpreendem pela sua capacidade de se conectarem com comunidades, com associações de moradores de favelas e periferias etc. A experiência do projeto Juventude e Polícia, que o grupo AfroReggae [2] desenvolve com a polícia de Minas Gerais, é muito interessante. Há outras experiências muito interessantes também, ou seja, é injusto fazer uma avaliação única acerca das polícias brasileiras. O que acontece no Rio de Janeiro expressa, de uma forma muito radical, problemas que polícias de vários lugares do Brasil têm em grau menor ou maior.
Notas:
[1] Hannah Arendt foi uma teórica política alemã, muitas vezes descrita como filósofa, apesar de ter recusado essa designação. Emigrou para os Estados Unidos durante a ascensão do nazismo na Alemanha e tem como sua magnum opus o livro "Origens do Totalitarismo". O trabalho filosófico de Hannah Arendt abarca temas como a política, a autoridade, o totalitarismo, a educação, a condição laboral, a violência, e a condição de mulher. A revista IHU On-Line dedicou as edições 168 e 206 a Arendt.
[2] O Grupo Cultural AfroReggae é uma ONG que também atua como banda musical. Surgiu em 1993, inicialmente como um jornal informativo, o AfroReggae Notícias. O objetivo do AfroReggae era ter um tipo maior de intervenção com a população afro-brasileira, atuando principalmente na comunidade de origem de seus membros, Vigário Geral. O grupo vem crescendo e hoje já atua em quatro comunidades do Rio de Janeiro: Vigário Geral, Morro do Cantagalo, Parada de Lucas e Complexo do Alemão. Além disso, o grupo tem mais de 65 projetos e também desenvolve trabalhos em todo Brasil e fora dele.
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Polícia: entre aplausos, medo e descrédito. Entrevista especial com Silvia Ramos - Instituto Humanitas Unisinos - IHU