12 Junho 2008
“Se o governo FHC defendia a necessidade de haver menos regras legais e mais regras negociadas, alegando que a negociação possibilita adequar as regras à situação de mercado e mudá-las mais agilmente, o governo Lula propõe a diferenciação das normas legais para determinados públicos-alvo e/ou segundo as condições locais/setoriais. Assim, o governo busca alcançar os mesmos objetivos, mas por outros meios, que provoquem menor reação.” Essa é a opinião da professora da Unicamp Andréia Galvão. Ela concedeu a entrevista a seguir por e-mail à IHU On-Line para falar do tema que aborda em seu mais recente livro Neoliberalismo e reforma trabalhista no Brasil (Rio de Janeiro: Revan, 2007).
Andréia fala sobre a reforma trabalhista executada durante os governos Collor e FHC e relaciona com a forma com que o governo Lula tratou esta questão. Para ela, “no início do primeiro mandato de Lula, esperava-se que o governo reverteria o processo de flexibilização de direitos. No entanto, o governo Lula tem mantido a flexibilização na esfera trabalhista, ainda que em ritmo menor do que o verificado sob FHC”.
Andréia Galvão é graduada em Ciências Sociais, pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), onde também realizou o mestrado em Ciência Política, e o doutorado em Ciências Sociais. Atualmente, é professora desta universidade. Além da obra a qual trata nesta entrevista, Andréia organizou os livros Marxismo e socialismo no século XXI (Campinas/São Paulo: IFCH/Xamã, 2005) e Marxismo, capitalismo, socialismo (Campinas: Cemarx/Xamã, 2008).
Confira a entrevista.
IHU On-Line – A reforma executada entre 1990 e 2002 alterou a legislação para flexibilizar os direitos dos trabalhadores, mas não promoveu mudanças na organização sindical. Você estudou a reforma trabalhista implementada entre os governos de Fernando Collor e Fernando Henrique Cardoso, mas gostaríamos de saber a sua opinião sobre como o governo Lula trabalhou essa questão da legislação trabalhista.
Andréia Galvão – No início do primeiro mandato de Lula, esperava-se que o governo reverteria o processo de flexibilização de direitos. No entanto, o governo Lula tem mantido a flexibilização na esfera trabalhista, ainda que em ritmo menor do que o verificado sob FHC. Trata-se de uma reforma pontual e silenciosa, porque não é discutida com a sociedade, a despeito da criação de fóruns tripartites supostamente dedicados a essa tarefa, como o Fórum Nacional do Trabalho e o Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social. O governo Lula iniciou as discussões no Fórum Nacional do Trabalho pela reforma sindical, alegando ser necessário primeiro fortalecer os sindicatos para, depois, negociar a reforma trabalhista. Mas, ao mesmo tempo, o governo implementou algumas medidas flexibilizantes, sem qualquer debate. Posso dar dois exemplos: a contratação de prestadores de serviços na condição de empresas constituídas por uma única pessoa (a chamada “pessoa jurídica”) legalizou uma forma de burlar os direitos trabalhistas, pois essa modalidade de contratação possibilita a dissimulação da existência de vínculo empregatício.
A lei do Super Simples, que cria condições para flexibilizar o pagamento de alguns direitos trabalhistas no caso de micro e pequenas empresas, caminha no mesmo sentido. Além disso, o governo tem defendido a diferenciação de direitos para determinados públicos-alvo: trabalhadores de micro e pequenas empresas, jovens, ou trabalhadores do setor informal, a pretexto de aumentar o nível de emprego e de estimular a formalização do mercado de trabalho. Lula tem dito que não quer tirar direito dos trabalhadores, apenas reconhece que esses trabalhadores já são diferentes. Então, a lógica do governo é que é melhor ter algum direito, mesmo que reduzido, do que não ter direito algum.
IHU On-Line – Qual foi o papel dos agentes sociais nessa reforma?
Andréia Galvão – Pode-se identificar uma intensa pressão patronal: organizações como a Fiesp e a CNI tiveram um papel de destaque no processo de implantação da reforma, subsidiando os diferentes governos com estudos que apontam a necessidade de “modernização” da CLT e apresentando reiteradamente suas reivindicações aos governos de turno. Essa pressão é claramente interessada e faz todo sentido do ponto de vista patronal, já que a redução dos direitos trabalhistas resulta em ganhos não apenas econômicos, mas também político-ideológicos, pois enfraquece a capacidade de resistência do trabalhador e de suas organizações sindicais, que têm dificuldades de se contrapor à lógica do capital. Mas uma parcela do movimento sindical, iludida com a promessa de que a flexibilização aumentaria o nível de emprego, também contribuiu para a reforma: o banco de horas foi fruto de uma iniciativa do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, filiado à CUT, e a ampliação do contrato por tempo determinado foi inspirada num acordo negociado pelo Sindicato dos Metalúrgicos de São Paulo, filiado à Força Sindical. É claro que também houve resistências a esse processo, inclusive por parte de setores da CUT durante o governo FHC, o que evitou uma flexibilização mais profunda, como a aprovação da prevalência do negociado sobre o legislado, mas essa resistência se enfraquece no governo Lula.
IHU On-Line – E qual é a sua opinião sobre este reforma?
Andréia Galvão – Foi claramente negativa, tanto do ponto de vista econômico (a perda de direitos) quanto político e ideológico. A criação de contratos atípicos, além de impor perdas de ordem material, divide os trabalhadores, cria cidadãos de segunda classe. Além disso, cria dificuldades para a ação sindical, sob dois aspectos: de um lado, porque o sindicato enfrenta obstáculos crescentes para representar esses trabalhadores precarizados; por outro lado, porque os trabalhadores que permanecem com contratos de duração indeterminada, com todos os direitos garantidos, tendem a ser atraídos pelo discurso patronal e a se afastar da organização sindical, pois se vêem permanentemente ameaçados de precarização.
IHU On-Line – Como a senhora percebe a atuação das centrais sindicais atualmente?
Andréia Galvão – As diferenças entre as duas maiores centrais brasileiras, CUT e Força Sindical, se reduziram. Isso pode ser verificado na adesão de ambas ao “sindicalismo cidadão”, que eu prefiro chamar de sindicalismo de prestação de serviços, um sindicalismo que se vale de recursos públicos para oferecer aos trabalhadores serviços que deixam de ser prestados pelo Estado. Além disso, com o governo Lula, a CUT torna-se uma central governista: muitos de seus integrantes ocupam cargos no governo e a proximidade entre PT e CUT dificulta a resistência por parte desta às medidas flexibilizadoras implementadas pelo governo. A Força Sindical, por sua vez, vive um período de crise de identidade, pois não sabe ser oposição, tanto é que, no segundo mandato, passa a fazer parte da base de apoio do governo, a ponto de um de seus principais dirigentes, Luiz Antonio de Medeiros, tornar-se Secretário de Relações de Trabalho do Ministério do Trabalho e Emprego. Ao mesmo tempo, essa central, que foi uma das maiores defensoras da flexibilização como forma de combate ao desemprego e de “modernização” das relações de trabalho, passa a criticar esse processo, talvez por conta dos resultados negativos que ele produziu ou da perda de espaço político que a central sofreu no primeiro mandato de Lula.
Por outro lado, as resistências às reformas têm alterado o cenário sindical brasileiro, levando a divisões e fusões de correntes sindicais: Conlutas e Intersindical foram criadas para se contrapor à corrente majoritária da CUT e para expressar seu descontentamento com as reformas promovidas e ensaiadas pelo governo Lula; a Nova Central Sindical de Trabalhadores, que reúne basicamente entidades ligadas ao sistema confederativo, foi constituída para defender a unicidade sindical; a Central dos Trabalhadores e Trabalhadoras do Brasil (CTB), oriunda fundamentalmente da Corrente Sindical Classista, atribui sua constituição à hegemonia da corrente majoritária da CUT, à falta de democracia interna da central e à falta de autonomia em relação ao governo. Mas não se pode deixar de notar que essa cisão se dá justamente no momento em que o governo debatia os critérios para o reconhecimento legal das centrais e o repasse de recursos do imposto sindical para as centrais reconhecidas. Essa questão de ordem pragmática também se encontra na criação da União Geral dos Trabalhadores (UGT), que resulta da fusão da CAT, CGT e SDS, de modo a cumprir os critérios de representatividade para ter acesso ao reconhecimento legal e à parcela da contribuição compulsória. Essa discussão está relacionada à reforma sindical que, a despeito de todo o debate realizado no Fórum Nacional do Trabalho, não avançou. As principais mudanças produzidas nesse âmbito foram justamente o reconhecimento e o financiamento das centrais sindicais. Com isso, a ânsia que alguns tinham em relação a mudanças mais profundas na forma de organização sindical foi aplacada.
IHU On-Line – E, pensando na situação atual do país, o neoliberalismo acabou?
Andréia Galvão – Não, mas a política neoliberal do governo Lula apresenta algumas diferenças em relação aos governos anteriores. No que se refere à questão trabalhista – e vou me ater a esse âmbito na minha resposta –, o governo não fala em desconstitucionalizar direitos, ou em estabelecer a prevalência do negociado sobre o legislado, que foram medidas propostas pelo governo FHC e que encontraram resistência sindical; fala em diferenciar direitos. Embora o discurso e as estratégias sejam distintas, a lógica é a mesma, pois são fundadas num diagnóstico comum: a rigidez e o caráter obsoleto da legislação contida na CLT. Não há um compromisso do governo em assegurar e, muito menos, em ampliar os direitos trabalhistas.
Se o governo FHC defendia a necessidade de haver menos regras legais e mais regras negociadas, alegando que a negociação possibilita adequar as regras à situação de mercado e mudá-las mais agilmente, o governo Lula propõe a diferenciação das normas legais para determinados públicos-alvo e/ou segundo as condições locais/setoriais. Assim, o governo busca alcançar os mesmos objetivos, mas por outros meios, que provoquem menor reação.
IHU On-Line – Como você analisa a relação do governo Lula com as centrais sindicais? Que diferenças há entre a relação que as centrais tinham com os governos Collor e FHC?
Andréia Galvão – Uma primeira distinção é que a CUT se torna uma central governista e a Força Sindical tem dificuldades para exercer o papel de oposição, como já apontei. Nos governos Collor e FHC, a Força era a interlocutora preferencial dos governos, enquanto cabia à CUT o papel de oposição. Apesar das divisões políticas existentes no interior dessa central – que opõem a corrente majoritária, mais propensa à negociação e à assimilação de elementos do ideário neoliberal, às correntes de esquerda, que defendem uma postura mais combativa –, a CUT assumiu, de modo geral, uma postura bastante crítica ao longo do governo de FHC, resistindo às medidas que buscavam flexibilizar direitos. Isso não se deve a uma posição de princípio, pois, como afirmei, alguns sindicatos no interior da CUT eram mais permeáveis à ideologia neoliberal, mas a uma questão política: naquele momento, a CUT pôde, em certa medida, manter sua capacidade de resistência devido à oposição ao governo de FHC.
A situação muda de figura num governo comandado por um partido do qual a central é aliada. Assim, no governo Lula, a capacidade de resistência da CUT se esvai. Uma segunda diferença diz respeito à relação entre CUT e Força Sindical, centrais historicamente rivais, que o governo Lula conseguiu a proeza de aproximar. Com exceção da Conlutas e da Intersindical, que embora sejam iniciativas importantes ainda têm pouca expressão política, o governo Lula praticamente não enfrenta críticas provenientes do meio sindical.
IHU On-Line – Que marcas o neoliberalismo deixou na reforma trabalhista?
Andréia Galvão – A marca da precariedade, da instabilidade, da incerteza. Os trabalhadores têm cada vez mais dificuldades para defender seus direitos, que são apresentados como privilégios – e isso é ainda mais forte no setor público –, bem como para resistir a teses como a da “empregabilidade”, do auto-emprendimento e do “trabalhador-empreendedor”, que individualizam o problema do desemprego e responsabilizam o trabalhador pelo sucesso ou fracasso de sua inserção profissional. O neoliberalismo estimula a concorrência e mina a solidariedade entre os trabalhadores, na medida em que atribui a culpa pela desigualdade social, pelo desemprego e pela informalidade aos trabalhadores protegidos pela legislação.
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Reforma trabalhista sob o impacto no neoliberalismo. Uma análise. Entrevista especial com Andréia Galvão - Instituto Humanitas Unisinos - IHU