10 Março 2008
De 26 a 29 de fevereiro se realizou em Quito, o Encontro Latino-americano do Fórum Mundial das Alternativas (FMA). Mais de 40 participantes de 19 países, incluindo movimentos sociais, políticos e acadêmicos, refletiram sobre as experiências dos países latino-americanos e suas contribuições para a construção de uma sociedade pós-capitalista.
As mesas de debate abordaram quatros temas: a crise do capitalismo e a sua superação na América Latina, a integração latino-americana como forma de resposta, a dimensão sociopolítica e a dimensão cultural. Os resultados do encontro foram apresentados em um ato público que contou com a presença do presidente da Assembléia Nacional do Equador, Alberto Acosta. O encontro foi coordenado pelo sociólogo François Houtart.
Excepcionalmente, pela importância do documento, não publicamos uma entrevista, mas a íntegra do assim chamado Documento de Quito. A A tradução é dos colegas do Cepat.
Confira a íntegra do documento.
CONCLUSÕES DA REUNIÃO LATINO-AMERICANA DO FÓRUM MUNDIAL DAS ALTERNATIVAS
Quito, 26 a 29 de fevereiro de 2008.
Na América Latina, novas e múltiplas iniciativas procuram dar respostas às necessidades econômicas, sociais e culturais das populações profundamente afetadas por décadas de neoliberalismo. Estes esforços são uma aposta na superação da crise generalizada do modelo econômico capitalista mundial que foram o tema de vários encontros continentais como “Em Defesa da Humanidade”, os encontros sobre a globalização, as reuniões internacionais contra o neoliberalismo, os Fóruns Sociais das Américas, entre outros.
O desequilíbrio ecológico e o aquecimento global, conseqüência da exploração dos recursos naturais em particular dos recursos fósseis, afetam a todas as regiões do mundo e se fazem sentir mais intensamente nas regiões mais deprimidas, e dentro delas, nos setores empobrecidos.
Há uma crise financeira que se expressa na queda do dólar, na insolvência dos bancos, no incremento da dívida entre outras coisas, que fazem parte da crise de conjunto do sistema de produção e distribuição.
Há uma crise do Estado colocado a serviço do capital; há um questionamento e deslegitimação dos governos, de partidos políticos e da construção de espaços e processos democráticos; problemas sociais que desembocam na exacerbação da violência como método da solução dos conflitos cotidianos; desorientação cultural, produto da hegemonia de uma cultura de progresso sem limites e excludente, que provoca desesperança, visões fatalistas e a emergência de fundamentalismos religiosos. Pode-se afirmar que a tudo isso se soma o fato de que a maior parte dos meios de comunicação é dominada pelos interesses do capital e servem como instrumentos de deformação da consciência.
A guerra é o instrumento que o sistema capitalista não titubea em utilizar para se apropriar dos recursos naturais, em particular energéticos, como no Iraque e no Afeganistão, ou para resolver as contradições internas, não descartando o uso de armas nucleares. A região não está à margem dessa estratégia geopolítica que ainda repercute em uma crise militar.
Está claro que se trata de uma crise estrutural e não somente conjuntural, uma crise de modelo de desenvolvimento de tipo civilizacional que exige uma readequação de parâmetros ao qual a lógica do capitalismo não pode responder.
Exige-se construir na prática a teoria de um pós-capitalismo, ou seja, o socialismo sobre a base de princípios que incluam o uso sustentável dos recursos naturais e sua apropriação social, a predominância do valor de uso, ou seja, respostas às necessidades das pessoas sobre o valor de mercado, uma democracia generalizada em todas as relações sociais, políticas, econômicas, culturais, de gênero e a multiculturalidade, permitindo a todas as culturas, saberes, filosofias e religiões dar a sua contribuição particular a uma nova construção social.
Na América Latina as resistências ao modelo têm sido e são numerosas, se encontram em todos os setores populares: camponeses, operários, povos indígenas, afrodescendentes, mulheres e jovens. Observam-se novas experiências do tipo cultural: na literatura, na música, na arte e na religião com uma releitura da Teologia da Libertação. Grandes convergências das resistências têm se manifestado frente à ALCA e aos Tratados de Livre Comércio. Estas convergências manifestam-se nos diferentes Fóruns Sociais.
O fato novo é que na região se passou das resistências à busca de alternativas que expressem a construção de novas institucionalidades através dos processos de Assembléias Constituintes; o desenvolvimento de processos de integração como a Alternativa Bolivariana para a América Latina (ALBA), os trabalhos articulados das redes e os instrumentos de comunicação como a Telesur e o Satélite Simón Bolívar. Vários aspectos da experiência latino-americana ajudam a compreender como a lógica do capitalismo pode ser confrontada para entrar em um processo de transição ao socialismo. São processos diversos, com atores múltiplos que enfrentam oposição radical em função dos interesses de classe ou de grupos dominantes. Encontram, como todos os processos sociais de organização, de ordem cultural, éticas e ideológicas. São processos dialéticos que exigem determinação, realismo, estratégias concretas, mas sobretudo clareza de visão.
Com o objetivo de aprofundar esse debate se faz necessário incorporar dimensões econômicas, sociopolíticas e culturais do processo como um passo dentro da dinâmica de mudança.
I – DIMENSÃO ECONÔMICA
A – A crise do capitalismo e a sua superação na América Latina
1 – O capitalismo mundial está imerso em uma crise sistêmica grave
Com o neoliberalismo, o setor produtivo tende a crescer cada vez menos. O setor financeiro especulativo se tornou dominante e é o centro da crise econômica, financeira, política, social, militar e cultural. Estamos próximos ao limite da produção mundial de petróleo e a água e os recursos minerais se tornam recursos cada vez mais escassos. Por outro lado, apresenta-se uma disputa entre os biocombustíveis e os alimentos pelo uso da terra, o que encarece a produção dos últimos.
As maiores reservas de recursos naturais se encontram no Sul e são ferozmente disputadas pelos países dominantes que geram guerras que tendem a ampliarem-se para outras regiões do planeta. Por essa razão, para se proteger da crise, é preciso que os países latino-americanos reivindiquem a soberania dos seus recursos naturais, que possuem um peso determinante na economia mundial e para a sua própria sobrevivência.
Acompanha a atual crise econômica e financeira, uma crise ecológica e de recursos naturais. Estes não são suficientes para atender o atual estilo ocidental de vida; atualmente os 20% da população mundial, concentrada no Norte, consomem 80% dos recursos naturais.
Assiste-se a uma distribuição extremamente desigual da riqueza e da renda, alimentada por um fluxo permanente do Sul ao Norte. É necessário um processo de redistribuição da mesma em função dos países pobres e dos setores populares.
O século XXI é um período de esgotamento das reservas das matérias-primas, e esta realidade configura uma nova situação e um problema muito grave para a humanidade. Os preços ascendentes dos minerais conduzem a uma deformação da estrutura econômica dos países possuidores desses recursos. Por outro lado, a taxa de inflação dos produtos agrícolas é hoje o dobro da taxa de inflação geral.
Com a imposição do modelo neoliberal, a corrupção vinculada ao poder converteu-se em uma forma de apropriação de recursos que degrada a funcionalidade do setor público. Esta desestruturação do Estado implicou na decomposição generalizada em todos os níveis da sociedade. A corrupção é constitutiva da lógica econômica das transnacionais e das elites, ao mesmo tempo em que a sua ação nas economias periféricas, ao priorizar a acumulação de lucros, distorce as funções racionais da economia em prejuízo da provisão de bens, serviços e emprego para as suas respectivas sociedades e agrava a renovação dos recursos naturais.
2 – Quais podem ser os passos que se podem dar na América Latina para mitigar a crise?
Aos países latino-americanos não lhes convém mais possuir suas reservas internacionais em dólares. Entretanto, as moedas de todos os países estão presas ao dólar. Isto é uma fragilidades estratégica, já que hoje o dólar está perdendo o seu papel de reserva internacional. Atualmente, a grande maioria delas se encontra em bônus presos aos Estados Unidos recebendo rendimentos baixos, enquanto a dívida externa latino-americana é paga a taxas de lucro muito mais altas. É recomendável diversificar e mudar de moeda de referência.
A alta de preços dos alimentos básicos é uma tendência a longo prazo. A importação de alimentos, sobretudo transgênicos, é um fenômeno preocupante e cada vez mais generalizado. Diante de uma crise é fundamental garantir a soberania e a segurança alimentar.
A nacionalização e o controle soberano sobre os recursos naturais, resultaram em um processo muito difícil num passado recente. O aprofundamento da crise internacional pode oferecer uma melhor oportunidade para a nacionalização e a socialização dos mesmos. Diante de uma crise mais profunda, o controle sobre os preços dos recursos naturais pode ser favorecido através de um acordo de preços Sul-Sul, seguindo o exemplo da OPEP.
O aprofundamento da crise atual é uma oportunidade para se desconectar das políticas neoliberais e para (re)conectar-se com as necessidades e demandas populares e orientar a economia para um desenvolvimento auto-centrado e não baseado no fomento das exportações. Assim, é uma oportunidade de recuperar o controle sobre os fluxos financeiros, em particular sobre os capitais especulativos para reduzir a vulnerabilidade de nossas economias.
3 – O que é possível fazer?
Os países latino-americanos deveriam desenvolver uma maior reflexão sobre a necessidade de criar uma moeda única regional. Impulsionar a criação de um sistema multilateral de pagamentos que favoreça os intercâmbios com o objetivo de criar uma nova arquitetura financeira regional.
A integração latino-americana não pode ser tratada no abstrato, mas sim no concreto, e não deve ser postergada. A integração que propugnamos é a união dos povos, não dos mercados, construída a partir dos interesses populares, não apenas a partir dos aspectos econômicos, mas sobretudo a partir da totalidade da sociedade. Se não se muda o caráter do Estado, a integração será sempre em benefício do capital. O tema do Banco do Sul precisa ser colocado nestes termos: saber a quem vai se beneficiar e para que.
Os governos devem priorizar políticas que busquem salvaguardar as reservas naturais e utilizá-las para atender as necessidades da população. Ou seja, recuperar o campo para preservar a soberania e a segurança alimentar, assim como os recursos naturais.
Devemos construir uma sociedade que seja sustentável com a natureza, às necessidades humanas presentes e futuras, com uma ética solidária, definidas desde os setores populares, tendo como fim a construção de uma sociedade socialista baseada em valores da solidariedade, liberdade, democracia, justiça e equidade.
Diante da crise, inviabilidade e contradições do sistema existente se faz necessário uma ruptura imediata e profunda, assim como a construção de novas alternativas e o aprofundamento das que já estão em marcha, tais como a ALBA, o Banco do Sul, a Telesur etc.
B.- A Integração Latino-americana como forma de resposta
A Crise
A crise capitalista criou um espaço de oportunidades para os povos da América Latina e dependerá da acumulação das forças sociais políticas, a orientação que tomarão os processos de integração.
O período de crise parece ser muito mais forte do que se acreditava. É um período de crise de transformação qualitativa das estruturas do sistema dos últimos 30 anos. Instalou-se um sistema de competitividade em base de baixos salários, com deslocalização das transnacionais que permitiu a aparição da China como ator fundamental.
Nos EUA, é já uma crise de solvência dos bancos, os instrumentos de salvação fracassam e se avizinha uma recessão com forte impacto social com menos capacidade de repassarem a sua crise para os seus rivais competidores.
A novidade consiste na incerteza sobre o papel que poderá jogar a semi-periferia em uma compensação parcial da crise, num cenário de ascenso de países semi-periféricos associados com grandes empresas transnacionais. Esses países estão juntos na nova divisão internacional do trabalho; uns com produção de salários baixos e outros aproveitando o ciclo de ascenso das matérias primas.
É uma crise planetária pelas conseqüências devastadoras sobre o meio ambiente mas cujo impacto recai primeiro nos países do centro e não apenas na periferia. O grau de alcance da crise (de desaceleração ou de recessão profunda) e a forma em que desemboque vai ser determinante para o curso da integração, tanto no interior da América Latina e do Caribe, como em suas relações com o resto do mundo. A crise pode terminar consolidando a hegemonia capitalista em suas diversas versões fazendo uso da força militar, legitimada na política de segurança nacional, como aconteceu com o fim da crise dos petrodólares com uma contra-ofensiva transnacional, como a da dívida e os ajustes neoliberais; ou com o fortalecimento dos processos de mudança nos países da América Latina e o surgimento de formas alternativas de integração de união dos povos.
Os passos e os desafios
Toda crise busca a reacomodação das forças. A perda do domínio dos Estados Unidos e o estancamento das negociações na OMC, reacendem atores na luta pela hegemonia.
O correlato dessa crise de livre comércio é também o esgotamento das políticas neoliberais mais violentas dos anos 1990. Alguns governos, como os de Uribe, Calderón e Alan García, mantêm essa política e governos que não tem esse rosto direitista como o Chile, mantém uma política neoliberal de desigualdade social e privatizações. Esta linha dos 90 está em crise, entretanto em alguns países a pesar de ter havido mudanças políticas importantes se mantém traços fundamentais do modelo.
À perda de força dos Estados Unidos na imposição do seu modelo, se somam às experiências de luta de resistência dos povos à ofensiva dos ajustes neoliberais e em defesa dos seus territórios e recursos, numa época de escassez dos combustíveis fósseis junto à destruição ambiental.
Neste contexto, os projetos de integração econômica dos anos 60, ALALC e Pacto Andino, reconvertidos nos sub-regionais do MERCOSUL e CAN, surgindo acoplados à expansão instrumentada pelos ajustes neoliberais, começam a perder a sua força original.
A lógica de integração econômica hemisférica de inserção à economia mundial transnacional, hoje fragmentada, poderá ser reorientada e adequar-se para manter os mecanismos de dominação. A crise sistêmica pode permitir mudanças radicais e a emergência de outra lógica de integração comandada pela união dos povos.
O MERCOSUL, apesar das limitações estruturais, continua avançando. Deve se reconhecer que o marco institucional flexível do MERCOSUL admite a disputa entre diferentes concepções de integrações. Continua o debate sobre a entrada da Venezuela e o eventual ingresso da Bolívia.
Mas, para além disso, é evidente que o MERCOSUL se fortalece economicamente por excedentes comerciais, acumulação de reservas internacionais, dados evidentes do fortalecimento dos setores dominantes na América do Sul. Um ator fundamental desse processo são as transnacionais, que expressam uma nova modalidade de associação internacional de classes dominantes com interesses próprios e com nexos importantes na região. O correlato dessa fisionomia social, cuja perspectiva vai depender basicamente do Brasil, de se as elites do Brasil apostam ou não apostam em um projeto regional.
A crise em que entra a CAN, a partir da Denúncia do tratado pela Venezuela em abril de 2006 e das diferentes políticas entre o Perú e a Colombia de um lado e o Equador e a Bolívia, por outro, agravado pelos TLCs do Perú e da Colombia e a negociação com a União Européia, a mantém em um terreno inativo, buscando sobreviver a través da entrada do Chile e da proposta de que a UNASUR se constitua na convergência institucional da CAN e do MERCOSUL.
UNASUR se debate entre constituir-se sobre um tratado radical, como o proposto na Cúpula dos Povos em Cochabamba (dezembro de 2006), com a presença protagônica dos sujeitos sociais e políticos, ou de fundar-se sobre a convergência institucional da CAN e do MERCOSUL favoráveis ao processo de expansão capitalista, com uma agenda encabeçada pelo IIRSA (Iniciativa para a Integração da Infra-estrutura Regional Sul americana) que é o único acordo firmado entre os 12 países que inclui mais de 500 megaprojetos com um custo de mais de 400 bilhões de dólares, como projeto de integração física que tem como objetivo final principal, facilitar a extração da riqueza produtiva latino-americanas com a intenção de criar uma nova geopolítica do espaço territorial.
As Propostas
A América Latina tem diante de si três opções de integração internacional que terão profundas implicações econômicas, políticas, sociais no futuro do continente.
Aprofundamento da neocolonização com base em acordos de livre comércio e de proteção de investimentos com os Estados Unidos e seus satélites.
A aposta em um novo desenvolvimento capitalista, tal qual é realizado no MERCOSUL com o Brasil e a Argentina.
Inscrever-se nos processos com horizonte socialista na ALBA.
A integração pela União dos Povos é o que sugere a ALBA. A ALBA é um projeto político e soberano que substitui os princípios da competividade e do livre comércio, pela ética da solidariedade, perseguindo a complementaridade produtiva e o intercâmbio compensado. As propostas de integração da ALBA se alimentam da cultura coletiva dos povos originários valorizando o ‘bem viver’ frente ao ‘viver melhor’. A ALBA se fortalece com os Tratados de Comércio entre os Povos (TCP). A ALBA propõe integrar as capacidades humanas junto às riquezas territoriais para satisfazer necessidades de produção e reprodução da vida. Hoje, impulsionam essa proposta com uma clara vontade política antiimperialista, Cuba, Venezuela, Bolívia e Nicarágua. À ALBA se incorporam os movimentos sociais através de convênios de cooperação social.
A elaboração política dos convênios da ALBA exige que se discutam dois grandes problemas da agenda latino-americana: as nacionalizações e as finanças.
A nacionalização dos recursos naturais é um tema latino-americano, depende da decisão soberana de cada país, mas é chave para a utilização produtiva. A nacionalização não é apenas a antítese da REPSOL, da velha PDVSA, também é a antítese da PETROBRAS atual ou da PEMEX. Não se trata que a empresa seja formalmente estatal como a PETROBRAS, que com as suas ações limita o alcance da política soberana de Evo Morales. Necessitamos nacionalizações genuínas ao serviço dos interesses do projeto popular latino-americano.
As finanças. O problema da dívida não desapareceu como tema importante para certos países, ainda que não com a relevância imediata que se apresentava nas décadas passadas. Mas é como um câncer potente, não se pode esquecer que antes da crise de 82 não aparecia como problema e de repente estourou. Enquanto a dívida persista constitui-se em um perigo.
Outro problema é a discussão sobre o Banco do Sul. Temos que dar continuidade ao perfil que vem sendo adotado pelo Banco. Há Bancos muito importantes como o BNDES do Brasil, estatal, que pelo seu peso é quase um Banco do Sul e, o que faz é financiar as multinacionais. Não podemos chegar a ter um Banco do Sul que financie as transnacionais. Um dos perigos que corre o Banco do Sul é o de contribuir com a reorganização da arquitetura financeira continental em condição favorável para a resolução das crises a favor dos poderosos e não dos povos.
É preciso aproveitar a oportunidade que gera a crise do capitalismo e os avanços políticos na América Latina para dar passos até a transição ao socialismo. Um projeto de integração plena, socialista, tem muitos pontos em comum com os princípios da ALBA, mas vai para mais além. O central é a vida em comum com a natureza, a redução crescente das desigualdades sociais e o respeito pelos projetos pluriétnicos e multiculturais em um mundo sem explorados, nem exploradores. Os projetos populares avançam na medida em que se fazem reais com reformas sociais que lhe dão legitimidade. Uma contribuição importante desde a América Latina para o Fórum Mundial de Alternativas é destacar que em nossa região estão surgindo uma variedade de alternativas ao calor das rebeliões populares que possibilitam desenvolver uma importante consciência anti-neoliberal, antiimperialistas e anticapitalista rumo ao socialismo.
II.- DIMENSÃO SOCIOPOLÍTICA
1. A SITUAÇÃO EM NOSSO CONTINENTE
Abre-se um novo processo histórico na América Latina, caracterizado por acontecimentos que questionam radicalmente a vigência do modelo neoliberal e que abrem à possibilidade de mudanças profundas. Vivemos um período de transição que combina a luta contra o neoliberalismo, o capitalismo e o império em uma busca original na construção de alternativas pós-capitalistas e socialistas.
Atravessamos uma conjuntura de mudança que apresenta elementos e processos múltiplos que oscilam “entre o que não pode deixar de ser e o que, todavia não é”. Os movimentos sociais e organizações políticas em suas diferentes formas são protagonistas indiscutíveis da história regional contemporânea, em que está em jogo a configuração do Estado e sua institucionalidade, o exercício de uma cidadania que inclua setores historicamente excluídos, a convivência inter e multicultural e a democracia.
O processo de resistência e luta em nosso Continente tem diferentes tempos e ritmos. De um lado, estão os países onde estão se produzindo reformas radicais e transformações mais profundas; outros, em que os governos progressistas caíram na administração da crise, e outros, no qual os movimentos sociais desde a oposição, desenvolvem lutas contra o imperialismo e o sistema. Esta conjuntura abre expectativas para o triunfo de novos governos progressistas na região.
A presença dos atores sociais é múltipla e configura um panorama extremamente complexo onde se destaca a ação dos povos originários e dos movimentos indígenas que passaram da reivindicação étnica à luta pelo governo e o poder, das mulheres e dos trabalhadores de empresas públicas estratégicas. Esta participação se combina com o trabalho dos movimentos políticos revolucionários em diversos setores. A direção das lutas não é uniforme, em alguns casos, surge das bases e também da transformação de movimentos sociais em organizações políticas; em outros, vem desde cima, da iniciativa dos governos.
A combinação de tarefas, no período de transição, de resistência ao imperialismo e ao sistema com as de governo, tem recolocado a relação entre movimentos sociais, partidos políticos e governo e, em alguns casos, como tema não resolvido.
O discurso dos atores sociais mais fortes passou da defesa das condições de vida à defesa dos recursos naturais, à proposta de um Estado plurinacional, à convocação de Assembléias Constituintes.
Os processos eleitorais se converteram em um instrumento para o acesso das forças populares ao governo aproveitando as estruturas institucionais existentes. A convocação das Assembléias Constituintes é a aposta institucional dos movimentos.
O uso por governos progressistas dos excedentes gerados pela exploração de recursos naturais para financiar o seu desenvolvimento e a cooperação com outros países converteram-se em uma base para a integração regional. Cuba, por sua vez, contribui com um paradigma de solidariedade apoiando com seus limitados recursos a outros países da região.
2. Tarefas. O que é possível fazer em função do socialismo ou do pós-capitalismo?
Entre as diversas tarefas destacam-se as seguintes:
• Ter presente a presença ativa do imperialismo em sua fase atual e dos perigos que ele entranha para a humanidade e para os povos do terceiro mundo, concretamente para os povos da América Latina e os atuais processos de governos populares ou de esquerda.
• Prestar a atenção para as possibilidades que se abrem na atual conjuntura continental em cada país com o objetivo de articular as lutas de resistência com os processos eleitorais, entendendo os governos como instrumentos políticos para aprofundar o processo de mudanças e a construção do sujeito revolucionário, não como um fim em si mesmo. É importante para isso o papel vital que cumprem as Assembléias Constituintes baseadas na mais ampla participação popular.
• A organização política tem entre as suas responsabilidades e potencialidades a de superar a setorialidade e setorialização dos olhares, das lutas e as propostas e os atores, reconstruir o tecido social (a sociedade) e a consciência, ou seja, desenvolver redes sociais, econômicas e culturais etc.
• A construção do ator coletivo, força social e política capaz de protagonizar e impulsionar os processos de mudança: articular partidos, movimentos sociais, e outras organizações, criar frentes políticas, coordenações conjunturais, etc. Levar em conta o peso específico que tem os indígenas, negros e mestiços. Considerar também o papel que podem desempenhar as classes médias. Buscar temas e interesses para incorporá-los à plataforma alternativa.
• Assumir o lugar central da batalha cultural, nas distintas manifestações e âmbitos em que ela existe e se desenvolve: construção de subjetividades, imaginários, ideais, não apenas para combater a hegemonia dominante e de dominação, mas sim como meio para a conformação de uma cultura alternativa, socialista própria. Isso exige em primeiro lugar a transformação de nós mesmos.
• A transformação cultural supõe também a construção de um novo pensamento crítico, e também as vertentes indo-afro-latinoamericanas. Isto implica incluir a descolonização.
• Assumir a formação política como um elemento estratégico central de qualquer política na atualidade.
• Construir a unidade como articulação de identidades e referências diferentes e múltiplas, não como unicidade. Abandonar as relações hierárquicas e subordinantes entre os atores sociais e políticos e construir uma organização horizontal, sem confundir isto com o espontaneísmo, nem o basismo etc.
• Apostar na democracia social popular participativa e desde a base, como objetivo e meio. Recuperar direitos, colocá-los em exercício e construir cidadania ativa, crítica e transformadora que incorpore os setores historicamente excluídos.
• Trabalhar o desenvolvimento permanente do internacionalismo, alimentando-o com as lutas independentistas e anticapitalistas dos povos. • Tomar a solidariedade como base de um modo de vida superador do individualismo do mercado anticapitalista, incorporando-o à batalha cultural e ética pela nova civilização humana.
• Assumir o socialismo como perspectiva histórica de luta pela construção de uma nova civilização humana, assumindo a tarefa de atualizá-lo e revitalizá-lo com os ensinamentos das experiências do século XX e as novas experiências de luta dos povos, particularmente latino-americanos.
De imediato:
• Assumir as tarefas de formação política, de quadros e de base, articulando este trabalho estratégico com a batalha cultural.
• Estudar e dar continuidade às manifestações e forma de classe às lutas nas condições atuais.
• Trabalhar com os diversos atores políticos e sociais em nossos países para avançar no sentido dessas conclusões e outros conteúdos que possam surgir do trabalho coletivo.
III.- DIMENSÃO CULTURAL
Vivemos um momento de mudanças no terreno econômico e político, mas também no das idéias e da cultura. Um campo amplo e complexo, geralmente descuidado, quando não ignorado pelos atores sociais e políticos que lutam pela emancipação da humanidade.
Neste novo cenário, com as grandes mudanças tecnológicas da comunicação, as migrações, o consumismo, etc., se está produzindo aceleradamente uma fragmentação, desrritorialização e hibridação da cultura popular.
Frente a isto, apresenta-se o desafio que exige questionar as idéias e práticas passadas que foram superadas, mas resgatando a memória histórica e tradições para vincular às experiências e legados das lutas anteriores com as presentes.
Frente à cultura do sistema econômico hegemônico imperialista e sua lógica de mercado, é preciso promover uma ‘nova cultura’ que resignifique o econômico e reconstrua os mercados. Isto implica a revalorização dos diferentes espaços de encontro, e que estimulem o sentido da solidariedade e cooperação, o qual pede uma reaproximação dos espaços territoriais por parte das comunidades e diferentes organizações e movimentos sociais. Por exemplo, animar as redes para a recuperação de saberes, do sentido da produção e modos de consumo responsável.
A crise econômica está se convertendo em terra fértil para movimentos milenaristas fundamentalistas, que pregam a resignação, o fatalismo, constituindo um obstáculo sério para a construção de valores e do empoderamento da cidadania.
A democracia liberal está em crise, o seu modelo individualizante está colapsado, pelo que é indispensável ter presente os direitos coletivos e colocar em plena vigência os direitos dos povos originários que historicamente foram dominados, excluídos, etc, sob um sistema dominante de colonialismo interno.
Existe um maior reconhecimento da diversidade cultural, e diferentes iniciativas a promovem e a afirmam. Sem a aceitação da diversidade não se constitui identidade. O caminho é a unidade na diversidade.
Há práticas cotidianas de nossos povos que se referem ao econômico e o cotidiano familiar preservando diversos saberes, tradições e modos de relação intercultural. Em todos os níveis da sociedade estas práticas fomentam uma cultura de paz, incluindo a contribuição das artes e dos artistas na reconstrução cultural e criação de novos sentidos, desde a estética, ao lúdico e a festa.
Nesta perspectiva de transformações substanciais, cabe apontar para uma soberania cultural, do corpo e do ser, o que implica desenvolver um novo conceito da soberania para aplicá-lo à liberdade de decisão das pessoas, comunidades e organizações, não apenas do Estado-nação.
A recuperação da identidade é um componente substantivo na luta da emancipação. Nesse sentido, como um passo histórico de justiça se impõe o respeito e o reconhecimento da identidade indígena e afro-descendente, como parte da reconstrução da nação, sem dividi-lá, nem debilitá-la. O Estado-nação continua sendo um ponto de união importante; a luta pela libertação continua, mas inclui povos indígenas e afrodescendentes em um novo projeto de identidade de comunidade nacional e humana.
O impulso de autonomias integrais e o desenvolvimento auto-centrado se verá reforçado com a articulação dos diferentes grupos sociais que atuam autonomamente afirmando sua força nacional e internacional.
Quanto aos meios de comunicação é preciso inseri-los no campo da cultura, ainda que seja evidente que ao mesmo tempo transcendem esse aspecto convertendo-se em um poder político, pois o poder econômico lhes comprou e através deles controlam a esfera política. Atualmente, a televisão, o rádio e a grande imprensa são os lugares onde se disputa o poder político e os sentidos.
Na América Latina, as freqüências radioelétricas se distribuem (as concessões) basicamente por duas vias: o amiguismo político que alimenta a corrupção, e a subasta que apuntala os processos de monopolização. Esta ausência de equidade é a violação mais grave da liberdade de expressão, pois deixa a margem a sociedade. Uma distribuição eqüitativa deve considerar três setores: O Estado (para assegurar um serviço público e plural), a empresa privada (com finalidade lucrativa, mas que cumpra a finalidade de responsabilidade social) e a sociedade civil (movimentos sociais, jovens, indígenas, afrodescendentes, universidades, etc.). As freqüências digitais abrem a oportunidade para democratizar o espectro radioelétrico, mas os grupos monopólicos pretendem fazer delas um grande negócio.
Deve-se prestar uma atenção particular para a Internet, um espaço cada vez mais decisivo na crescente convergência dos meios, tanto para aproveitar as vantagens que oferece, como para impedir que prosperem as tentativas em curso para privatizá-la. O barateamento de custos que sobrevieram com as novas tecnologias é um fator que torna possível desenvolver uma capacidade de resposta consistente caso esteja acoplada a uma dinâmica de redes.
Os processos de integração em curso têm um sério desafio na dimensão cultural, porque as políticas neocolonialistas e imperiais, com a sua premissa de “dividir para vencer”, tem cimentado uma cultura de animosidade, hostilidade e até de rejeição entre nossos povos. É preciso reverter esse processo.
A partir da perspectiva das alternativas tem-se o desafio de formular propostas para que a dimensão cultural seja um eixo constituinte e constitutivo dos processos de integração. Temos um espaço de articulação: a ALBA, onde em matéria cultural já definiu uma programação estratégica. Também para o Fórum Mundial das Alternativas (FMA), este espaço deve ser um eixo de sua atuação futura na região tanto para propor/questionar, como para articular iniciativas. Particularmente, é preciso considerar o Fundo Cultural da ALBA para implementar alternativas nos diversos países da região, promovendo a integração das industrias culturais, a distribuição e circulação de bens culturais e a promoção de nossos valores.
Nesse marco, se deve impulsionar e afirmar a criação das Casas da ALBA, concebidas como espaços de encontro, informação e difusão de idéias e expressões culturais das mais diversas, procurando um signo anti-hegemônico.
Quito, 29 de fevereiro de 2008.
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Das resistências às alternativas. Fórum Mundial das Alternativas. Documento final - Instituto Humanitas Unisinos - IHU