02 Fevereiro 2008
Para o Frei Nestor Inácio Schwerz, “temos visto uma série de ações violentas contra grupos e pessoas de determinada religião, inclusive com vários assassinatos de missionários/as por parte de fundamentalistas”. No entanto, alerta ele, “essa tendência fundamentalista não existe só entre muçulmanos; ela se faz sentir também em outras religiões e em outras esferas da sociedade, embora em graus bem diversificados. É certo que não se pode cair na generalização. Há igualmente por toda a parte um esforço crescente para evitar a ação violenta de tais grupos”. O Frei trata desse e de outros temas, fazendo uma análise da presença da religião no mundo contemporâneo e destacando que “as religiões estão sendo ativas e visíveis no palco da sociedade atual”.
Schwerz é natural de Santa Cruz do Sul, é franciscano e membro da Província São Francisco de Assis, de Porto Alegre. É mestre em Ciências da Educação, pela Universidade Pontifícia Salesiana de Roma. Atua, desde 2003, como Secretário na Secretaria Geral para a Evangelização da Ordem dos Frades Menores, com sede em Roma. Sua função, que deverá se estender até 2009, implica em atuação junto às diversas Conferências Franciscanas Regionais e Províncias Franciscanas espalhadas nos cinco continentes, bem como na promoção de congressos, seminários, encontros e cursos.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – O que significa para o senhor esta experiência de, num curto período de tempo, entrar em contato com cenários humanos, políticos e religiosos tão diversificados?
Frei Nestor Inácio Schwerz – Antes de mais nada, significa uma enorme aprendizagem. Cada novo contato é uma nova possibilidade para aprender algo da riqueza e da particularidade da cultura local, da história desse povo e desse grupo humano, do seu modo de se organizar, de viver e de crer. Considerando que os contatos são breves e têm como finalidade determinadas atividades internas entre os confrades, não há tempo e condições suficientes para um conhecimento mais aprofundado. De qualquer forma, é uma graça extraordinária poder vivenciar essa multiplicidade de contatos diferentes. Isso me ajuda a compreender melhor e a experienciar de certa forma a chamada quarta fase de expansão da consciência, isto é, a da consciência planetária.
Percebo no concreto que o nosso planeta é relativamente pequeno e tudo está muito inter-relacionado, interdependente. Ao mesmo tempo, me convenço mais existencialmente que a imensa diversidade cultural, étnica, religiosa, e, em todos os sentidos, é uma riqueza e beleza que devemos aprender a respeitar, admirar, contemplar e conviver. Não consigo imaginar um mundo em que um certo processo de globalização queira nivelar tudo e invadir, dominar, destruir as particularidades locais de cada cenário humano. Do ponto de vista político, a experiência inicia com as exigências do visto e os controles nos aeroportos. Há cada vez mais controle das pessoas e mais facilidade de circulação de produtos. Sinto certa indignação dentro de mim quando vejo que alguém pelo fato de mostrar na pele que é de determinada raça, de determinado povo ou continente é posto de lado nas filas de controle e submetido a uma revista detalhada, muitas vezes humilhado.
IHU On-Line – Como o senhor percebe e avalia a situação das religiões nos diferentes continentes que tem visitado e no cenário internacional?
Frei Nestor Inácio Schwerz – Sem dúvida, as religiões estão sendo ativas e visíveis no palco da sociedade atual. É muito comum, nas viagens aéreas, encontrar grupos religiosos com seus sinais externos de identificação e, de forma desinibida, executarem certos ritos de oração em aeroportos. Mais ainda, é visível nos diferentes países a presença de todo o tipo de templos, muitos deles construídos recentemente ou restaurados, reformados. Na Europa, em particular na Alemanha, cresce o número de mesquitas e outros centros religiosos e diminui o número de igrejas cristãs, sendo muitas delas fechadas, dessacralizadas e vendidas. No leste europeu e em outros contextos de pluralismo cristão e religioso, considera-se importante restaurar igrejas que tinham sido semidestruídas ou ocupadas por certos sistemas ideológico-políticos para outras finalidades. É a busca por visibilidade, por afirmação das identidades religiosas e eclesiais.
Na minha percepção e avaliação, vejo três tendências atualmente em crescimento: as expressões de fundamentalismo, a indiferença e a sensibilidade em vista do bem comum. Em relação ao primeiro aspecto, os nossos confrades que vivem em países de predominância muçulmana, afirmam sentir claramente o crescimento de grupos fundamentalistas, que fazem pressão junto aos governos para maior rigidez no controle aos outros grupos religiosos, para dificultar a sua sobrevivência, também econômica, e vigiam os movimentos e atividades dos missionários, sobretudo cristãos, para denunciar qualquer sinal de proselitismo. O caso mais recente, num país islâmico, foi a negação de licença a uma firma de construção para edificar uma casa para nossos missionários pelo fato de serem cristãos. Ultimamente, temos visto uma série de ações violentas contra grupos e pessoas de determinada religião, inclusive com vários assassinatos de missionários/as por parte de fundamentalistas. Mas essa tendência fundamentalista não existe só entre muçulmanos; ela se faz sentir também em outras religiões e em outras esferas da sociedade, embora em graus bem diversificados. É certo que não se pode cair na generalização. Há igualmente por toda a parte um esforço crescente para evitar a ação violenta de tais grupos.
Com relação à indiferença, ela é notável nos ambientes ocidentais, por exemplo aqui na Europa. E não é só uma indiferença passiva. Cresce inclusive uma indiferença ativa no sentido de explicitamente rejeitar símbolos e valores religiosos, difamar figuras religiosas, acentuar a negatividade da história de certas religiões, especialmente do cristianismo. É claro que muito se explica por reação a um longo período de cristandade, com inúmeros privilégios para a Igreja e sua hierarquia, com expressões de poder e ostentação etc. Porém, mais do que valorizar a secularização, se defende uma certa laicidade extremista. O pior dessa indiferença se expressa no campo ético e social, no que diz respeito a pesquisas científicas e na relação com os mais pobres, aos idosos (deixados na solidão), aos imigrantes (todo o tipo de dificuldades para conseguirem documentos e explorados no mundo do trabalho), às mulheres estrangeiras (muitas delas exploradas sexualmente).
Uma terceira tendência se caracteriza pelo esforço de contribuir para o bem comum, de abertura às novas realidades dos tempos atuais, de resposta à sede por espiritualidade, de colaboração para uma convivência humana no respeito, na paz, na solidariedade com os mais pobres e sofredores.
IHU On-Line – O que isto significa para presença cristã e da Igreja nos diferentes cenários?
Frei Nestor Inácio Schwerz – O cristianismo é desafiado a ser verdadeiramente a religião do amor em que se crê no Deus Amor e em que acima de tudo se serve e se dá a vida por amor aos outros. Este aspecto é sumamente importante pelo fato que há tantos conflitos e nos quais se misturam também motivações religiosas. Efetivamente, em muitos contextos a presença cristã é marcada por uma enorme dedicação aos mais pobres, aos doentes, aos mais excluídos. Em diversos contextos conflitivos ou de feridas abertas por causa de guerras e genocídios recentes, os cristãos se dedicam a um paciente trabalho de reconciliação, de pacificação, de perdão, como é o caso na África do Sul, em Ruanda, em Burundi, em Bósnia e Croácia e outros lugares. Nossas missões franciscanas, como as de outras famílias religiosas, iniciam e põem particular ênfase à promoção da dignidade humana, dedicando-se à educação, a obras sociais em favor dos mais pobres, dos doentes, dos idosos, dos portadores de HIV etc. E isto é feito sem discriminação de religião. Em muitos casos, a maioria dos beneficiados são de outra religião, como no Egito e nos países de predominância muçulmana. Um frade africano, em missão num outro país do seu continente, onde o povo vivia numa situação de grande carência e sofrimento, dizia que se alguém quisesse aí falar de Jesus sem mostrar com atitudes e gestos concretos a sua sensibilidade para com as múltiplas necessidades das pessoas, simplesmente não seria escutado. “O povo ri dele e desliga. Mas, se ele se aproxima e se mostra solidário com as dores e carências, o povo o escuta e respeita.” O cristianismo na África está em significativo crescimento.
O cristianismo é também desafiado a ser a religião da esperança porque nele se crê que Deus em Jesus de Nazaré se revela como encarnado na história, permanece conosco e seu Reinado já inicia aqui e agora, chegando à plenitude no futuro, além deste mundo e desta história. Os cristãos têm razões para se engajarem já neste mundo em favor dos valores do Reino, em favor da vida digna, da paz, da justiça, da convivência respeitosa com o ambiente, cientes de que o Reino de Deus não se realiza plenamente na história. O nosso Papa Bento tem razão em estimular os cristãos, em seu último documento, a se empenharem para contribuir no sentido “de que o mundo se torne um pouco mais luminoso e humano, e assim se abram também as portas para o futuro.”
O desafio para a Igreja é apresentar-se acima de tudo com vigor espiritual, mais centrada no Evangelho, no anúncio de uma boa notícia a partir da fé em Jesus Cristo e da escuta, da leitura e interpretação da realidade, dos sinais dos tempos. Tal anúncio terá credibilidade se vier acompanhado de testemunho de vida em nível pessoal e comunitário, de engajamento e compromisso com as grandes causas da humanidade e do próprio planeta. Da mesma forma, espera-se da Igreja uma postura aberta ao diálogo em suas várias dimensões na relação com as outras Igrejas cristãs, com as Religiões e com a sociedade, bem como no âmbito interno. Ela é instituição e como tal ela pode jogar com seu peso político, não como demonstração de poder de imposição, mas como força em relação a causas importantes em favor da vida, da paz, da justiça, da dignidade humana, dos direitos humanos fundamentais etc.
IHU On-Line – Como o senhor vê a questão da pobreza e a questão da violência nesses diversos lugares?
Frei Nestor Inácio Schwerz – Nossos bispos na América Latina fazem bem ao descrever os vários rostos da pobreza, pois isto é uma realidade não só em nosso continente, mas pelo mundo afora. Há rostos de pobreza que permanecem e, ao mesmo tempo, aparecem novos. A pobreza que mais freqüentemente vejo e com a qual mais entro em contato é aquela resultante de um processo forçado de migração, ligado ao nosso atual modelo sócio-cultural-econômico. As pessoas e famílias se vêem forçadas a migrar e se concentrar nas cidades ou atravessar fronteiras de países e continentes. Atualmente, se assiste a uma gigantesca onda de migrações. A Europa está cheia de migrantes, muitos deles vivendo em condições desumanas (mulheres enganadas e levadas à prostituição, muitos vivendo na clandestinidade, muitos sobrevivendo na informalidade, muitos explorados em trabalhos pesados...). Um grande número, oriundo da África, da Ásia e da América Latina, tenta cada dia entrar de um jeito ou de outro nos países europeus. Embora conheça certas favelas do Brasil, tenho sentido impacto chocante em favelas na África (em Nairobi, em Luanda, em Johannesburg e cidades vizinhas...).
O mesmo se dá em certos países da Ásia. Dois fatores causadores de tal pobreza e miséria causam particular indignação: a escandalosa desigualdade e os mecanismos de violência que forçam a migração. A desigualdade vem sendo reforçada pelo atual capitalismo neoliberal globalizado. Mas também nos países do leste europeu no período do socialismo a desigualdade estava bem presente, embora um tanto camuflada. A violência que força a migração e o deslocamento de multidões se deve a conflitos e guerras de caráter étnico (Ruanda, Burundi, Congo...), de motivação religiosa-étnica (Sudão, Somália...), de aliança entre interesses político-econômicos internos e externos (Angola, Moçambique, Guatemala, América Latina em geral....). Fiquei comovido em Angola ao ver aquele povo acolhedor, bondoso, religioso, alegre, com muitas crianças e jovens, e saber que a ONU declarou ser o pior país para uma criança nascer devido à carência das condições básicas, depois de longo período de guerra interna. Também senti dor no coração ao ver multidões de crianças e adolescentes pelas estradas em Moçambique, indo às escolas, e saber que a idade média é de 30 e poucos anos, devido à expansão do HIV, à desnutrição, à malária, e também sofrendo as conseqüências de longa guerra interna em passado recente. Ambos são países em reconstrução, com esperança para o futuro.
Escutei histórias de verdadeiro terror numa favela em Bogotá em relação à violência cometida por gananciosos que forçavam famílias a deixar terras e as perseguiam. Também lá escutei histórias comoventes no que se refere aos milhares de seqüestrados. Colômbia é um país bonito, com cidades bem organizadas e de clima maravilhoso, mas também é um dos países de mais “desplazados”. Pude visitar áreas de extrema pobreza na África do Sul, um país atualmente bastante desenvolvido, como resquício do sistema de “apartheid” reinante por muito tempo em seu passado.
A violência tem igualmente rostos diferenciados. Existe a guerra explícita e declarada, como é o caso no Iraque e em Afeganistão. Existe a tensão interna em não poucos países entre grupos étnicos, grupos com determinadas forças econômicas e com diferentes apoios externos, como é o caso na Costa do Marfim, no Congo, em Sudão, no Timor Leste, na Somália etc., e que pode a qualquer momento explodir em violência generalizada. Não se pode dizer que a diferença étnica ou mesmo a diferença religiosa seja causa direta de violências e guerras, mas ela é facilmente manipulada por outros interesses, sobretudo de caráter político e econômico, e então se torna um fator explosivo a mais.
Em alguns países da África, como na África do Sul, em Quênia, para citar dois, há um alto índice de violência contra mulheres e adolescentes através de estupros. Diz nosso Conselheiro geral pela África que isso em parte se explica por uma crença de que tal prática levaria à cura da Aids. Outra categoria de violência é aquela tipicamente urbana: o roubo, o assalto, o seqüestro para extorsão de dinheiro, o tráfico de drogas, as gangues etc. E isso se encontra na maioria das grandes cidades pelo mundo afora, em graus diferenciados. Um fenômeno crescente de violência se verifica também entre jovens, no meio das novas generações dos países de bem-estar, como é o caso aqui na Europa. Tal violência se manifesta nos estádios de futebol, nos locais de consumo de bebidas alcoólicas, nas estradas com acidentes fatais após os programas de fim de semana (em casas noturnas, em locais de festas, de shows e diversão), nas escolas (ultimamente na Itália é tema de debate e análise esse fenômeno de agressividades entre colegas, com professores e de danificações materiais). É preocupante o crescente fenômeno de violências domésticas: altíssima porcentagem dos estupros é cometida por parentes e conhecidos; assassinatos cruéis de crianças, de mulheres, de idosos no interior do círculo familiar.
Isso tudo revela que a violência é um fenômeno complexo e que tem várias causas, várias expressões e, portanto, exige abordagem multilateral na busca de soluções e de educação para a paz.
IHU On-Line – E qual é o envolvimento das Igrejas locais com estas questões?
Frei Nestor Inácio Schwerz – Por toda a parte, há iniciativas e obras que vão ao encontro das vítimas da pobreza, miséria e violência. Muitas dessas iniciativas são da Igreja católica local, na maioria dos casos com envolvimento de Religiosos e Religiosas. Causa emoção e alegria ver Irmãs Franciscanas Missionárias de Maria (as conhecidas FMM) inseridas numa área urbana na África do Sul, em Soweto, fruto do Apartheid e de onde surgiram movimentos de reação, mas onde se encontra extrema pobreza e violência, onde a polícia não tem coragem de entrar, a Igreja praticamente não tem presença pastoral. Elas vivem lá numa pequena Comunidade, com um trabalho educativo de crianças, com contatos e visitas aos moradores, dando testemunho de uma vida simples, generosa, corajosa, religiosa. Igualmente, causa estupor e admiração entrar na maior favela de Nairobi, Kibera, onde vive quase um milhão de habitantes em 8 hectares, na mais absoluta pobreza, com ruelas cheias de esgoto, com todo o tipo de violência e encontrar atrás de um portão velho e mal feito uma pequena comunidade de Irmãzinhas de Charles de Foucauld, um verdadeiro oásis no deserto.
Elas são umas poucas irmãs, que se doam inteiramente àquele povão, como uma gota de água doce no oceano salgado. E junto a essa casa, ao lado, em colaboração com elas, se vê um grupo de pessoas leigas, não ligadas à Igreja e religião, se doando em favor dos portadores de HIV, que é realidade amplamente difusa. Recebem ajuda solidária do exterior e se tornam uma luzinha de vida e esperança em meio a um contexto de morte e sofrimento. E, logo mais adiante, em outra imensa favela, numa cidade com cerca de 5 milhões de habitantes, se encontra uma pequena capela, feia, muito simples, símbolo da presença frágil do amor de Deus encarnado. Ali, dois religiosos, sendo um deles capuchinho, generosos e corajosos, morando do lado de fora mas próximos da favela, acendem uma vela de presença eclesial. Investem na proposta de construir laços comunitários e de cultivar expressões de fé com envolvimento participativo das pessoas dispostas e abertas a esse convite. Já reúnem bom número de moradores, sobretudo de crianças, as quais são um verdadeiro encanto pela alegria, pela comunicação, pela capacidade de respeito ao espaço sagrado e de escuta, uma flor sem defesa, que resiste teimosamente num chão pisoteado e regado a sangue, a esgoto, a imundícies de todo tipo para ser pequeno e frágil sinal de esperança e de potencial de algum processo de vida nova. É algo que mexe com as entranhas.
Em relação às situações de violência, há gente de Igreja que corajosamente se arrisca para promover diálogo, pacificação, reconciliação. O início da pacificação em Moçambique foi obra de um bispo franciscano e depois levado adiante pela Comunidade Santo Egídio de Roma, um movimento eclesial católico de leigos/as, muito florescente, que aprimorou certo método de atuar em favor da paz em situações de conflito. Tais iniciativas podem ser encontradas pelo mundo afora, nos vários continentes, e a nossa Igreja, com a Vida Religiosa em seus diferentes carismas e com certos movimentos eclesiais, onde ela se faz presente, realiza sinais muito significativos do Reino de Deus e do Evangelho. Mas, é sempre em forma bastante tímida, frágil, sem uma opção mais corajosa e alargada. A tendência é manter obras basicamente de caráter assistencialista e desenvolver uma ação missionária e pastoral de cunho paroquial, sacramental.
Também em nossa Ordem, em suas províncias e nas mais diferentes presenças pelo mundo, prevalece uma forte tendência a se apegar às estruturas paroquiais, aos santuários, às escolas, sem grande criatividade e particular consciência crítica, sem especial sensibilidade para com os mais pobres. Inclusive em contextos missionários, nota-se freqüentemente pouco ardor e pouca motivação para ir ao encontro das reais necessidades do povo local, sobretudo dos pobres, e isso mais ainda por parte do clero local, dos religiosos nativos. Não se trata aqui de generalizar. Na medida em que entro em contato com as diferentes formas de ação em favor dos pobres, sempre mais me convenço que nós da América Latina temos algo de muito valioso a oferecer: a nossa opção eclesial pelos pobres, com uma determinada compreensão de caráter teológico, sócio-político-cultural, metodológico. No contato com nossas Províncias, há um certo reconhecimento de que nossa prática deixou de ser libertadora em boa parte, que nos movemos basicamente em duas eclesiologias: aquela dos documentos das Conferências do Celam, de muitas Igrejas particulares, de várias Conferências episcopais nacionais, e aquela da prática cotidiana, muito burocrática, centrada para dentro, para administração sacramental e institucional, bastante desligada da vida real do nosso povo.
IHU On-Line – Quais são os principais desafios da presença da Igreja em meio a povos tão diferentes?
Frei Nestor Inácio Schwerz – No meu modo de ver, ela é desafiada a ser essencialmente missionária-evangelizadora, no sentido de ser comunidade aberta e ir ao encontro dos diferentes povos para testemunhar e anunciar o amor universal de Deus em diferentes formas e com diferentes vias. A via primordial é sempre o testemunho, acompanhado do serviço aos pobres e sofredores, da solidariedade e do diálogo com todos. Nesse encontro, ela é desafiada a escutar, a aprender, a fazer suas as alegrias e tristezas, as esperanças e angústias das pessoas e dos diferentes grupos humanos, com sua particularidade cultural, religiosa, social. Existe uma preocupação muito grande pela garantia e aprofundamento da identidade especificamente cristã católica e eclesial, o que leva a um certo medo nas iniciativas de diálogo. No entanto, essa identidade se clareia e se constrói justamente na abertura e no diálogo com o diferente, com o diverso.
Há dois fenômenos típicos de nosso tempo que trazem implicâncias particulares ao dinamismo missionário/evangelizador da Igreja: o da secularização e o da migração. No contexto em que até recentemente reinava a cristandade, a Igreja é desafiada a abrir-se ao diálogo e entender esse mundo e essa cultura das ciências, das novas tecnologias, da liberdade pessoal, da subjetividade, do consumismo, de novos valores. Ela precisa ir ao encontro das multidões de batizados/as afastados/as da vida e das práticas religiosas comunitárias, distanciadas da proposta moral e ética da hierarquia e da doutrina cristã católica, sedentas por espiritualidade mais experiencial e por solidariedade concreta em seus múltiplos dramas humanos e sociais.
O fenômeno da gigantesca migração desafia para uma missionariedade mais “ad altera” (aos outros) do que “ad gentes”. Por toda a parte se encontram representantes dos diferentes povos. Além da exigência de sensibilidade social e solidária, significa uma nova possibilidade para o enriquecimento das comunidades. Em muitos países da Europa, como também nos Estados Unidos e em outros, imigraram multidões de cristãos e católicos, o que significa possibilidade de revitalização das comunidades eclesiais na medida em que forem acolhidos e integrados ou organizados em comunidades eclesiais. Por outro lado, grupos humanos de diferentes culturas e religiões se tornam próximos de nossas comunidades, o que representa um belo desafio para nossa vocação missionária e evangelizadora em base ao diálogo, ao testemunho, ao compromisso com a promoção humana.
Nesses diferentes contextos, ao encontrar a possibilidade do anúncio explícito de Jesus Cristo e formar comunidade eclesial, o grande desafio é o de favorecer a inculturação do Evangelho, com as suas diferentes exigências de linguagem apropriada, de catequese e liturgia encarnadas, de formação de missionários/as e evangelizadores/as locais/nativos, de organização comunitária adequada àquela cultura, de clareza sobre o essencial e inegociável da fé cristã etc.
IHU On-Line – Resumindo tudo isto numa imagem ou em poucas idéias, o que o senhor destaca como mais significativo?
Frei Nestor Inácio Schwerz – Eu nunca esqueço o que nos falou um jornalista italiano num Seminário sobre novas formas de presença e de evangelização nesta nossa sociedade atual: em primeiro lugar, dizia ele, não faz sentido ficar se lamentando, repetindo discursos moralizantes, condenando, pelo contrário o mundo precisa de pessoas esperançosas, que sejam capazes de dar cidadania e dignidade cultural à pobreza, não como frustração, como carência, como opressão, mas como liberdade e libertação diante da idolatria do mercado, do consumo; em segundo lugar, o mundo precisa de pessoas que marcam uma presença de tenda, como sinal de acolhida, de ternura, uma presença inteligente e inculturada, capaz de acolher as diferenças e a grande diversidade, escutar as perguntas que são feitas sobre tanta dor, angústia e sofrimento, sem ter pressa em repetir as respostas já aprendidas e decoradas; em terceiro lugar, o mundo precisa de pessoas religiosas que se misturem no meio do povo da rua e dos subterrâneos, que sejam capazes de andar de metrô, de ônibus, a pé e circular pelas ruas e praças das cidades para se encontrar com os que sofrem, que estão perdidos, que sonham, que lutam, que se alegram, mas também indo ao encontro dos jovens que se reúnem nos centros comerciais, nos pontos de encontro, nos ângulos escuros das praças, para escutá-los, compreendê-los, entrar no seu mundo, na sua linguagem, nas suas buscas. Igualmente, precisamos de pessoas de Igreja que circulem pelas universidades, que sejam capazes de aí entrar em diálogo e ler livros de autores que ajudam a compreender melhor o nosso tempo.
Neste mesmo Seminário, um bispo nos dizia que em nosso tempo precisamos percorrer com particular freqüência três caminhos, fazendo conexão com passagens bíblicas. O primeiro deles é o que vai de Jerusalém a Jericó, pois nele vamos encontrar multidões de caídos, de excluídos, de semi-mortos, de gente ferida, machucada, esquecida, vítimas de todo o tipo de violências e opressões. Neste caminho, somos desafiados a sermos pessoas e sermos Igreja com a prática do amor do bom samaritano. O segundo é o que vai de Jerusalém a Emaús, pois aí igualmente vamos encontrar multidões de gente desanimada, sem esperança, frustrada, desiludida em seus sonhos e projetos, em crise de fé, de vida comunitária, de vida eclesial e religiosa, conservando porém alguma chama acesa e a disposição para o diálogo. É o caminho que desafia para o diálogo em profundidade, para a partilha e para a disposição de fazer juntos mil ou dois mil passos até reencontrar pequenas esperanças e a grande esperança que nos faz viver, crer e nos doar em missão. O terceiro caminho é aquele que vai de Jerusalém a Gaza, pois por aí vamos encontrar pessoas em busca da verdade, pessoas abertas, na escuta, sensíveis, de boa vontade, dispostas a uma opção mais radical na sua vida. Só quem se deixa continuamente evangelizar, pode evangelizar e saberá encontrar a forma e o momento de anunciar a Palavra da Salvação.
Para concluir, faço referência a um texto de Carlo Martini sobre a beleza que salva o mundo. Para quem se reconhece amado e amada por Deus e se esforça por viver o amor solidário e fiel nas diversas situações da vida e da história, torna-se belo viver este nosso tempo, que embora pareça tão cheio de coisas feias e machucadas, está repleto de sinais do Amor Trinitário.
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"As religiões estão sendo ativas e visíveis no palco da sociedade atual". Entrevista especial com Frei Nestor Inácio Schwerz - Instituto Humanitas Unisinos - IHU